Justificação de falta

6 mar 2022, 20:54

Qualquer um terá já passado, no secundário, pela situação algo desagradável da dita de “justificação de falta” em que, havendo limite de ausências, convinha que a justificação fosse plausível. Ou então que, não o sendo, fosse q.b., como nas receitas de cozinha, para que o professor ou professora fingissem que acreditavam.

Lembrei-me disso quando, na última quarta-feira, a Assembleia-Geral aprovou uma resolução pouco comum, depois de dois dias e meio de intervenções dos representantes do Estados. Nesse documento, com uma dureza de redação pouco habitual, aquele órgão principal das Nações Unidas critica, severamente, o ato de agressão russo, exigindo, por isso, a cessação do ilícito e o restabelecimento plenos da independência e integridade territorial do Estado ucraniano.

Sim, foi já na quarta-feira (na pré-história disto tudo, ou seja, há mais de oitenta e tal horas!), mas, ainda assim, vale a pena parar e pensar um pouco nisto tudo.

Ora, então, foi assim. Debate e intervenções longos, alguns discursos de valia, Portugal bem, mas, só aqui entre nós, o que contava, o que contava realmente, era o resultado. Ganhamos por quantos, perguntava-se a maioria?

141/35/5. Foi este o resultado, num universo de 193 votantes.

141 votos a favor, é muito bom; 35 abstenções, parece bom; 5 votos contra, é excelente.

Fazer a autópsia da votação é ainda mais interessante. Perto de ¾ dos votos a favor é, sob qualquer perspetiva, um notável resultado, quando se trata de um texto que, em sentido literal, se pode ter como virulento em relação ao destinatário (a Rússia). 35 abstenções parece bom, mas é afinal bastante mais do que isso. Veremos já porquê, agora temos as contas mais fáceis, os votos contra.

Colocaram-se ao lado da Rússia, em sentido formal, quatro Estados: a Coreia do Norte (até se levaria a mal que tivesse sido outro o sentido do voto), a Síria (era evidente) a Bielorrússia (que surpresa) e a Eritreia (que ainda não consigo explicar). Ou seja, mais ou menos 2% dos membros das Nações Unidas.

Nas abstenções, e até nos votos a favor da condenação da Rússia, com invocação da resolução 3314 e tudo (aquela que define a agressão), detetam-se algumas decisões surpreendentes. A Sérvia vota a favor, e muitas bocas terão ficado abertas de surpresa. Nas abstenções – que em alguns casos são um “não posso mesmo votar a favor” – destacam-se Cuba, Índia, Irão (Irão?), e China.

Depois, ficam os ausentes, os que não votaram. Na lista, a Venezuela. Logo houve quem destacasse que este era um sinal, nem o regime de Nicolas Maduro apoiava a Rússia, estava o Mundo para acabar e outras coisas que tal. Verdadeiramente, a razão era bastante menos espetacular, bastante e tristemente prosaica: a Venezuela não votou porque está excluída do voto, não pagou as suas contribuições anuais para com a Organização das Nações Unidas. Não votou por qualquer salto ideológico ou de reposicionamento. Não. não votou por castigo, por dívidas. Por recato, e porque nada há acrescentar, fica assim justificada a falta

Talvez não tenha relação nenhuma, é quase certo que não. Mas, naquele momento da votação em que se percebe que o resultado vai ser único, imaginei o representante da Federação Russa, tão solitário, com tantos amigos a afastarem-se de forma mais ou menos ostensiva, com outros a nem sequer aparecerem, a trautear baixinho a canção e poema imortais de Jacques Brel (tradução minha):

Não me deixes / É preciso esquecer / Pode esquecer-se tudo / Que já se afasta / Esquecer o tempo / Dos mal-entendidos / E o tempo perdido / A tentar saber como / Esquecer aquelas horas / Que por vezes matavam / A golpes de porquê / O coração da felicidade / Não me deixes (4x)

Ao contrário da canção, porém, não é sequer concebível esquecer o ferro e o fogo que desabaram sobre a Ucrânia a partir de 24 de fevereiro. Estamos obrigados a documentar, a juntar testemunhos, a registar.

Atenção, não se trata de uma vingança coletiva. É detestável a ideia de que, se uma comunidade for ferida por um agressor, todos os que integram a coletividade de onde o agressor provém ficam marcados com o ferrete da culpa e haverão de ser castigados, um a um, até a expiação estar consumada.

É uma questão de civilização: já há vários séculos, acabaram as cartas de represália passadas pelo monarca, que autorizavam o súbdito que tivesse sido lesado por súbdito de outro a, munido desse documento, recorrer a quaisquer meios para obter reparação. Também, já há vários séculos que o direito penal expulsou de dentro dos seus muros a a responsabilidade coletiva de povos. Mas, então, o quê? Como fazer?

Parecerá estranho, ou acesso maniento, mas a verdade é que tudo aquilo de que se tem falado a propósito da guerra na Ucrânia tem, sempre, por efeito de espelho, um reflexo tópico no direito internacional. Mas não é menos preocupante que, de uma forma bastante menos sofisticada, estejamos, desde o tal início da agressão russa, a sentir o olor fétido da hipótese de um cenário de confrontação global.

Talvez um dos maiores pastelões da história do cinema tenha sido uma coisa dos anos oitenta, “The Day After”, numa altura em que ainda a Europa tinha perante si a probabilidade não absurda de uma guerra nuclear. Hoje, por razões de sanidade, podemos fazer de conta que estamos com uma consola nas mãos, num qualquer jogo de guerra em que, na pior das hipóteses, carregamos em “new game” e seguimos adiante. Mas não estamos, não há consolas disponíveis, mas também não se trata de alarmismo despropositado. Trata-se de ter presente, de aceitar que, se o opositor anda falho de ações razoáveis e age de forma errática, teremos de ser nós a reagir sem medo. Mas multiplicando a razoabilidade e a sensatez por dois. Ou três, ou quatro.

A versão que prefiro do Jacques Brel, Ne me quitte pas:

Do “The Day After”, apenas um muito breve excerto (já nos chegam estes dias!):

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