O diabo está nos detalhes

22 mar 2022, 14:40

Comentador da CNN Portugal olha para os conflitos no Kosovo, Iraque, Somália, Haiti, Ruanda, Afeganistão para compreender alguns dos problemas em discussão numa mesa de negociações que queira terminar o conflito na Ucrânia. "O mal ou males anteriores não bloqueiam a denúncia de um mal presente, a não ser que se defenda que voltámos à lei da selva", escreve.

No conflito entre Rússia e Ucrânia, vê-se ao fundo um papel de parede. É de 2014. Aí se concretizaram perdas territoriais significativas para a Ucrânia, tanto através da “incorporação” da Crimeia (a seu “pedido”) na Federação Russa como, também, uma amputação de facto, pela presença continuada no leste do País de entidades separatistas dependentes da Rússia.

Do ponto de vista do direito, não se perderá mais do que alguns segundos a tentar encontrar argumentos que justifiquem a anexação da Crimeia, porque não existem. Não existem à luz das regras que proíbem o recurso à força para resolução de quaisquer diferendos (arts. 2, 4 Carta; resol. 3314, que define a agressão, da Assembleia Geral). E não existem, além disso, segundo o regime jurídico-internacional do direito de autodeterminação dos povos. Estes são dois dos pilares mais importantes do direito internacional, porque cada um se espraia, depois, numa série muito alargada de consequências. E cada um destes regimes integra normas imperativas (se se quiser, normas inderrogáveis por acordo inter partes) de direito internacional geral.

A introdução vai longa e maçadora. Mas não vejo como evitá-la se quisermos compreender alguns dos problemas que vão estar em discussão numa mesa de negociações que queira terminar o conflito na Ucrânia.

Em 2014, uma forte maioria de Estados reprovou na Assembleia Geral das Nações Unidas a realização de um “referendo” na Crimeia organizado (evidentemente) por impulso da Rússia, esta, na altura, já com o controlo militar daquele território. Tratou-se, muito poucos o puseram em questão, de uma “consulta popular” nula e de nenhum efeito. E seria sempre inválida, caso algumas almas ainda tenham dúvidas, mesmo que a consulta tivesse sido razoavelmente “livre”, por duas razões simples. Primeiro, estava em causa uma lesão grosseira da integridade territorial do Estado Ucraniano, e este nada tinha feito que justificasse ou legitimasse uma separação unilateral da Crimeia. Em segundo lugar, porque a expressão e alcance daquela “consulta” aos habitantes do território se fez sob a ameaça das baionetas, no decurso de uma intervenção militar de um Estado estrangeiro.

Resultado? Praticamente nenhum Estado reconheceu a incorporação da Crimeia na Federação Russa, apesar de esta ter construído a sua argumentação com base na expressão (alegadamente) livre da vontade da população da Crimeia, invocando além disso o passado, desde 1954 aos anos imediatamente sucessivos à independência da Ucrânia, em 1991.

Portugal, naturalmente, como toda a União Europeia, manteve e mantém a sua posição de Estado amigo do direito internacional e de não reconhecimento de quaisquer aquisições territoriais que resultem do uso da força. Em síntese, esta ideia reduz-se a muito poucas palavras e a muito grandes consequências: onde tiver havido força militar ilícita, ilícita será a conquista e a aquisição territorial.

A Rússia, no entanto, fez o trabalho de casa em 2014, “justificou” o que estava a fazer, até invocou contra nós o precedente do Kosovo – e, pela surpresa, causou algumas dificuldades a certas chancelarias.

Ao contrário do que já li, muito ao contrário mesmo, nas relações internacionais não se hesita quanto aos precedentes. Como é evidente, podem e devem ser utilizados e analisados, porque são eles que constroem a aplicação e a interpretação de regras de convivência fundamentais.

No entanto, é dificilmente aceitável, em relação a alguns casos, fazer-se como aqueles macaquinhos sentados (não vi, não ouvi, não falo) e, em relação a outros, estar de megafone na mão aos pulinhos em cima de um banquinho no speaker’s corner de Hyde Park. Bom, talvez seja melhor mudar para o Jardim da Estrela, porque em Hyde Park falavam, entre outros, Karl Marx e Lenine (de facto, não sei se aquilo foi devidamente desinfetado, há quem seja sensível e sofra horrores só de ouvir aqueles nomes).

Vejamos, então.

Se o Sr. Tibúrcio tiver opinado em relação a casos anteriores com a sua sapiência (e só para começar depois do fim da Guerra Fria), da guerra do Golfo de 1991, passando depois pela Somália, Haiti, Ruanda e Operação Turquesa, Kosovo em 1999, Afeganistão em 2001, Iraque outra vez em 2003, não lhe faltam – para o bem, mas nem sempre – ocasiões para testar a coerência das suas posições. Ora, se o nosso Sr. Tibúrcio disparar a favor, ou contra, consoante as cores que defende, torna-se difícil dar-lhe crédito. Ó meu amigo, então disse o que disse daquele caso, e agora vem dizer o contrário?

Guerra do Golfo, 1991? Lícita, claro, mesmo porque autorizada pelo Conselho de Segurança (resol. 678, 29 de novembro de 1990). Somália e Haiti? Ações militares lícitas, claro, também elas ancoradas numa abordagem multilateral centrada no Conselho de Segurança – o que não invalida o desastre que foram as várias ONUSOM. Ruanda? Omissão que nos envergonha, licitude da operação Turquesa (executada pela França) para pôr termo à carnificina genocida. Intervenção militar no Kosovo, com invocação de um direito de intervenção humanitária? Ilícita, tornada inevitável devido ao ultimato de Rambouillet, pensado justamente para esse resultado.

Afeganistão, 2001? Evidentemente, ação militar lícita, com o Conselho de Segurança a reconhecer o direito de legítima defesa (resol. 1368, de 12 de setembro de 2001) e tudo feito “by the book”, incluindo na forma como se interpretou e aplicou o art. 5 NATO. Iraque, 2003? Intervenção ilícita, mesmo por outras várias razões além da trágica (e falsa) alegação sobre armas de destruição maciça, biológicas e bacteriológicas.

Daqui podem concluir-se, de modo intercalar, algumas coisas.

A primeira é básica. Qualquer que tenha sido a atitude ou posicionamento em relação a casos anteriores, em nada se altera a ilicitude grosseira da agressão militar russa contra a Ucrânia; pode é ficar diminuída a autoridade de quem avalia. O mal ou males anteriores não bloqueiam a denúncia de um mal presente, a não ser que se defenda que voltámos à lei da selva.

A segunda conclusão, básica é. Não existe um princípio de “acasalamento” obrigatório das situações. Assim, pode denunciar-se a invasão da Ucrânia, sem que tenhamos que tomar o canhenho de notas e repetir, de cada vez, “claro, sem prejuízo da ilicitude do Kosovo, do Iraque em 2003 e, quiçá, da invasão da Manchúria pelo Japão nos anos 30 do século passado” …

A terceira conclusão é um pouco mais elaborada. Pegue-se no caso do Kosovo, muitas vezes apresentado de cada vez que se fala da Crimeia. Promoveu-se ou não a amputação de uma parcela territorial da Sérvia? Sim, mas há uma diferença objetiva fundamental. No caso do Kosovo, nenhum dos Estados que usou a força contra a Sérvia se apropriou do Kosovo. Em 2014, a Rússia usou a força, exclusivamente, em benefício próprio, para se locupletar com aquele território. Segunda diferença muito importante: verificava-se, de forma objetiva, uma situação grave de violações sistemáticas de direitos humanos no Kosovo, nada de comparável (nada, mesmo) podia ser atestado na Crimeia. Finalmente, quando em 2008 o Kosovo decidiu proclamar a independência, esse foi um facto, não resultou do exercício de um direito (o Tribunal Internacional de Justiça assim o declarou, num parecer de 2010).

Muitos Estados já reconheceram o Kosovo, outros há que nunca poderão reconhecê-lo (por exemplo, Espanha, e nem é necessário dizer porquê) mas, tantos anos depois, ainda são os mesmos pouquíssimos a reconhecer a incorporação da Crimeia na Rússia. Alguma razão haverá, com certeza? Há.

Já vai a conversa algo longa. No plano das relações entre Estados, sobretudo se se tratar de Estados poderosos, a coerência de posições pode ser mais exigente do que em relação ao comum dos mortais.

Ora, no que se refere à prática recente relativa ao reconhecimento de aquisições territoriais, há elementos preocupantes, que não deixarão de ser utilizados por quem hoje agride e pretende apropriar-se de partes do território do agredido. Entre eles, e talvez à cabeça, algumas decisões norte-americanas dos últimos anos. Pense-se, nomeadamente, no reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, e na transferência da embaixada de Telavive para aquela cidade. Ou no reconhecimento da anexação dos Montes Golã por Israel. Ou no reconhecimento da compatibilidade de princípio com o direito internacional da construção de novos colonatos nos territórios ocupados. Ou no reconhecimento da incorporação do Sara Ocidental no território de Marrocos, em troca dos Acordos de Abraão e do restabelecimento de relações diplomáticas entre Israel e Marrocos.

Cada um destes casos é difícil, tem demasiada História por de trás. Mas, até agora, havia um consenso implícito: ser-se capaz de atender à complexidade, mas não formalizar qualquer reconhecimento que fragilizasse uma regra tão importante para dissuadir o infrator. E deixar que fossem as Nações Unidas a fixar os termos da questão, como estas sempre fizeram.

Quebrou-se um tabu, uma prática de recato que, com os defeitos que pudesse ter, funcionava sempre, em última instância, como proteção da parte mais fraca. Ao transmitir-se a ideia de que esse princípio do não-reconhecimento tem dias, ou critérios mais ou menos elásticos, quem ficará numa posição algo fragilizada nas negociações para se acabar, de vez, com este conflito? Ou alguém imagina que a Rússia não vai colocando do lado do “haver” cada uma destas decisões? Alguém acredita, realmente, que a Federação Russa é amadora? E se juntarmos a isto que, como agressor, a Rússia não tem dado provas de agir com boa-fé negocial, alguém estranhará que puxe para si, em seu benefício, as incoerências de outros?

É, o diabo está nos detalhes.

Voltemos ao princípio. Sucedem-se as notícias da frente, umas melhores, outras nem tanto. A pior das notícias, essa, surge sempre nas pantalhas e primeiras páginas dos jornais: continua a destruição de um país, o sofrimento de um povo (em especial, dos não combatentes).

Diz-se, também, que os russos só terão munições, combustível e alimentos para três dias. Quem dera, mas não. A Rússia já perdeu, e só com o tempo veremos quanto. Mas, no teatro de operações, o regime olha a partir de Moscovo e vê a vida passar-lhe à frente dos olhos. Joga a sua sobrevivência. A ironia é macabra: a Ucrânia luta para continuar a existir, e por isso enfrenta o agressor. O regime russo também luta para continuar a existir. E por isso continua a agredir.

No fim, só fica mesmo a guerra. A mesma guerra cuja crueldade sem limites foi descrita por Voltaire com requintes de sátira difíceis de alcançar no cap. III do “Candide”. Tempo para reler os clássicos, sabendo que, mais coisa menos coisa, mais tecnologia menos tecnologia, o resultado da violência é sempre o mesmo. E nunca é bonito ou glorioso de ver.

Em 1971 (há muitos anos, portanto) dizia D. António Ferreira Gomes numa Homilia que “o mundo não tem paz, porque não quer a paz. Por outras palavras, o mundo diz querer a paz, mas pelos caminhos da guerra; ou ainda, com outra expressão: a paz sim, mas colhendo nela os frutos da guerra”. Era bom se estivesse errado.

 

Ver, de D. António Ferreira Gomes, Aceitar o preço da Paz, 1 de janeiro de 1971, in Homilias da Paz (1970-1982), 1, Fundação SPES, Porto, 1999, p. 33.

De Molière, Candide, Cap. III, Magnard, 2013.

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