O conflito irradiante

3 abr 2022, 08:00

A unidade é boa, mas q.b.

A comoção coletiva em torno da agressão russa contra a Ucrânia, o sentimento comum de solidariedade com um povo que sofre, a decisão política fundamental de adotar medidas sistemáticas e eficientes contra quem violava o direito de uma forma tão grave: estes são alguns elementos nos marcaram, volvido bem mais de um mês sobre o início das hostilidades.

A marca-de-água, a “unidade”. Unidade em torno da qualificação dos factos (o que, às vezes, não acontece), unidade entre NATO e União Europeia, duas organizações cujo papel se afigurava incontestável, unidade no eixo transatlântico. Unidade nas Nações Unidas, em que a Assembleia Geral adotou uma resolução que, não sendo vinculativa, mostrou uma posição esmagadora da comunidade de Estados contra as ações da Rússia e o Secretário-Geral Guterres foi o mais assertivo possível sobre a questão.

Mas a unidade, depois de tantas vezes declarada de forma enfática, importa sobretudo se for praticada, ainda que de forma nada espetacular.

De facto, com o decurso do tempo, é inviável manter o mesmo nível de entusiasmo e de mobilização militante. Não se consegue estar, sempre, emocionado com aquilo a que estão a ser sujeitos os ucranianos, e neles os combatentes, mas, sobretudo, os não combatentes. Não se consegue, nem isso era bom, ocupar em permanência o espaço mediático com o conflito. Mas verificação elementar como esta não nos desobriga do essencial, que é o dever de diligência continuado de, por um lado, apoiar sem falhas a Ucrânia e, por outro, pressionar a Rússia, pelo menos até que esta cesse a intervenção militar. Pelo andar da carruagem, um (apoio) e outro (pressão) podem ser exigências muito prolongadas, a confirmar-se o prognóstico de uma possível “vietnamização” do conflito.

Sobre quem incide este dever?

A resposta menos complicada, talvez cómoda, é de se ir reafirmando o compromisso da NATO e da União Europeia para com a Ucrânia. Depois, esperar para ver se os diferentes apoios prestados na esfera do armamento, das munições e das capacidades defensivas da Ucrânia confirmam o desgaste – que parece evidente – das forças russas no teatro de operações. Não se esqueça, aliás, que mesmo antes da guerra e desde 2014, os EUA tinham financiado a defesa da Ucrânia em 2,7 mil milhões de dólares; e que, para o bem e para o mal, as forças armadas ucranianas estiveram a treinar-se desde 2014 para o que desse e viesse, desde logo no leste do País. E ver, por outro lado, que mossa causam as contramedidas que se foram adotando contra a Federação Russa e aqueles que temos qualificado como “os oligarcas” (tem-se descoberto que é um termo exclusivamente aplicável a cidadãos russos).

A resposta mais funda, contudo, assume sem complexos que a unidade e constância nos nossos propósitos não tem de ser absoluta, pois que um tal desiderato não é realista. Nesse sentido, aposta antes na necessidade de definir, a prazo, os protagonistas do compromisso, e qual o caderno de encargos que a cada um caberá assumir. Em segundo lugar, aceita sem drama que a unidade do nosso apoio vai, naturalmente, abrir aqui e ali fissuras sem daí vir mal especial ao mundo. Bastante mais importante do que procurar as eventuais falhas é, sob este prisma, dar por verificada a consistência na realização destes objetivos.

A proposta mais valiosa, por conseguinte, não passará por uma noção de unidade algo beata (embora de invocação indispensável no plano político), porque ela tem a desagradável tendência para se aproximar da unicidade ou do unanimismo.

É de notar que, atualmente, quarenta Estados estão a aplicar sanções à Federação Russa. Quarenta, em cento e noventa e três, mas quarenta com capacidade para ferir gravemente a economia russa. Mas, quarenta. E, entre eles, só para referir os mais visíveis, não estão nem a China nem a Índia.
Monica Hakimi chamou há anos a atenção para isso: o direito e as relações internacionais convivem bem com o conflito (com a divergência), não o têm como negativo, e o conflito não corrói a comunidade internacional, antes a reforça e lhe garante um desenvolvimento dinâmico. O importante, por conseguinte, é que um conjunto de regras regule, enquadre os conflitos e os diferendos.  Apenas, na sua regulação, existe um limite inultrapassável, que é o da proibição da ameaça ou uso da força para uma das partes levar a sua avante. Se este limite for sistematicamente violado, o sistema colapsa e o conflito não regulado irá acabar por impor mudanças assentes, apenas, em relações de força. Nesta perspetiva, a resposta consistente, forte, de oposição ao agressor e de apoio ao agredido não apaga o desvalor da agressão. Mas, por outro lado, confirma a regra proibitiva e robustece-a.

Depois, o conflito ou divergência, encarados normalmente, não impõem uma solução. Podem até, perdurar de forma pachorrenta durante séculos. Portugal, por exemplo, convive em paz absoluta com Espanha, e o facto não contende com aquilo que desde a guerra das laranjas nos inícios do século XIX, nos divide a respeito de Olivença – embora seja um poucochinho irritante pensar-se em Manuel Godoy a enviar à Rainha de Espanha, à nossa custa, o tal ramo de laranjas que deu nome ao conflito. Paciência para nós, pois paciência é coisa que não nos falta: mantemos a nossa posição sobre Olivença já lá vão mais de dois séculos. Nenhum de nós estará cá para o confirmar, mas daqui a mais dois séculos, ouvir-se-á sempre alguém a dizer “Olivença é nossa!” e alguém a responder, do outro lado: “no, señor!”

São as coisas curiosas, e já vem isto meio a despropósito: a guerra começou depois de um ultimato espanhol a Portugal (se quiserem, leiam Ucrânia) para que renunciássemos à aliança que tínhamos com Inglaterra (se quiserem, leiam NATO ou Estados Unidos). Esta coisa dos amigos, dos adversários, dos aliados e dos inimigos é conatural ao sistema internacional. O que mudou, e mudou tudo, foi a proscrição da violência e a forma como, num plano comunitário mais alargado, a guerra assumiu um desvalor como nunca teve na História. É também isso que a Rússia de Putin não alcançou – a Ucrânia está próxima, e nas costas dela vemos as nossas, no seu presente vemos, potencialmente, o nosso futuro.

O caso prático da Hungria

Todo este arrazoado começa a poder ser exemplificado por algumas situações às quais convirá não atribuir demasiada relevância, porque eram certos como o destino. Um deles é aquele que, na União Europeia, semeou a cizânia entre os Estados do Grupo de Visegrado, que faziam frente comum sem quaisquer fissuras (bem se dispensaria tal frente comum) – República Checa, Eslováquia, Polónia e Hungria. A propósito da Rússia, por onde quebrou? Pela Hungria, naturalmente, sendo mais do que conhecida a ligação muito forte do seu líder a Vladimir Putin. Como se esse isolamento “entre” amigos não lhe bastasse, Viktor Orbán e o seu projeto vão a votos neste domingo, 3 de abril, enfrentando uma oposição unida de seis partidos. Os seus parceiros e vizinhos não estarão, propriamente, a torcer por ele. A Ministra da Defesa checa, Jana Černochová, não disse há dias, de uma forma incisiva, que Orbán valorizava mais o petróleo russo do que o sangue dos ucranianos? Se o poder na Hungria mudasse de mãos (não é provável), o bloco anti-russo fechar-se-ia, até geograficamente.

Admita-se, no entanto, que sem especial surpresa (mas nunca se sabe) na Hungria tudo como dantes e Orbán caminha para um quarto mandato consecutivo. Mesmo assim, nada a fazer: já está confirmado o efeito irradiante do conflito na Ucrânia e a forma como promoveu de forma acelerada reajustamentos no xadrez internacional e até na esfera interna dos Estados.

O líder húngaro, com efeito, tem atacado várias vezes, durante a campanha, os seus vizinhos e agora menos amigos, por interferência no processo eleitoral; e, por outro lado, responde zurzindo na oposição por, diz, ela estar disposta (ganhando as eleições) a fornecer armas à Ucrânia, a deixar passar armamento pelo território húngaro em direção à Hungria e a colocar a população húngara à míngua de gás e de petróleo, desse gás e petróleo russos de que, por enquanto, a Hungria tanto depende (respetivamente, 85 e 64%). A guerra, sempre ela, esmaga esta campanha eleitoral. A Hungria, reconheça-se, não tem sido avara no acolhimento aos refugiados ucranianos – por ali entrou mais de meio milhão. Só que, com a guerra, a Hungria vê-se confrontada com duas hipóteses de mundividência diferentes. O partido no poder, Fidesz, tem um slogan principal que repete até à exaustão: “Paz ou Guerra”. Até à exaustão até no sentido mais cansativo, para dizer a verdade, uma vez que o poder dispôs de oito vezes mais de tempo de antena do que todos os partidos da oposição juntos. E a oposição, qual é o lema que a une? É também ele sintomático do quanto a Rússia é uma protagonista que bem o dispensaria: “Orbán ou a Europa”.

Não é que se duvidasse. Não há hoje nada que, na esfera internacional, não possa mais tarde ou mais cedo afetar, condicionar, modelar ou influenciar o que se passa nas nossas sociedades. Por um argumento de maioria de razão, o conflito russo obrigou todos a tomar (mais ou menos) partido e, em alguns casos, a tomar uma noção vívida de como as escolhas são ou podem ser determinantes para a opinião pública.

Os erros da Rússia e o valor imutável da informação

Vejamos, agora, o contexto.

A Rússia, todos concordarão, cometeu vários erros importantes. Não sei se os operacionais e logísticos terão sido os maiores, mas são os que mais evidentes nos parecem. A mudança brusca de estratégia, as notícias sobre a reorganização das forças russas ou o recrutamento de “voluntários” sírios pagos a peso de ouro (vivos, ou se morrerem, representam um sanguinolento “russomilhões” para as respetivas famílias), tudo aponta, segundo a melhor interpretação, para uma operação até ver mal sucedida. Perguntar-se-á, qual a melhor interpretação? Não há segredo nem qualquer erudição na resposta: é, quase sempre, a que for mais razoável ou plausível à luz dos dados de que se dispuser em cada momento.

Não se presumem problemas psicológicos ou uma qualquer doença do líder russo, não se extrapola de eventuais ataques cardíacos do Ministro da Defesa russo, olha-se com alguma reserva para a informação de que as chefias militares estarão a esconder a realidade de Vladimir Putin. Putin, aquele que se formou…no KGB, onde, como é “sabido”, é irrelevante a informação e a cujos ex-agentes deve ser fácil esconder informação ou enganar com falsa informação.

Aliás, se Putin proíbe no espaço sob sua jurisdição a informação ocidental (ou, mais em geral, qualquer órgão de comunicação social independente), canais de televisão, redes sociais ou imprensa, alguém será capaz de garantir, segundo a tal abordagem de razoabilidade, que ele não aceda a esses conteúdos se, quando e como quiser? Aqui entre nós, a ideia de um líder alienado e afastado daquilo que está a suceder não o coloca numa posição de quase inimputabilidade, a caminho da irresponsabilidade?

A informação, sempre a informação.

Éric Vidaud, responsável pelos serviços de informação militares franceses, foi afastado por não ter conseguido, ao contrário dos seus congéneres americano e britânico, prever a invasão russa. Estava há pouco tempo no cargo, e teve azar. Não só “falhou” esta previsão como, além disso, não viu chegar a tempestade quando a Austrália cancelou, na vigésima-quinta hora, o contrato colossal para aquisição de submarinos à França. Uma, ainda vá que não vá. Duas, transbordou o copo. Ainda neste campo, algo mais sombrio. O Presidente ucraniano “demitiu” dois generais acusando-os de traição (não sabe o comum dos mortais o que justificou esta decisão) e, não longe, a Alemanha acusou um oficial na reserva de espionagem entre 2014 e 2020 em benefício da Rússia. O prémio, a ser verdade o que corre nas notícias, seria ridículo: o malandrim receberia convites para eventos oficiais na Rússia.

A Guerra Fria II, um pouco de Rússia e muitas China

Há, como se vê, um cheiro a Guerra Fria II como não se sentia há décadas. Só que esta Guerra Fria II é muito mais estranha e complexa do que a I: o adversário não é um, são vários, com “competências” e “poderes” não sobrepostos. Era simples, antes: bloco de leste e URSS, bloco ocidental e Estados Unidos, a certa altura a China e, com a consolidação das independências, conceitos e realidades como o Terceiro Mundo (expressão o mais pejorativa possível) e os não-alinhados. Depois, grupos vários, como o grupo dos 77, nas suas várias versões, agora na fase “Grupo dos 77 e China”. Contavam-se as espingardas, mas, de facto, íamos sempre dar à União Soviética. Mas, e agora? A Federação Russa como sucessora da União Soviética?

Os menos novos talvez se recordem que, em 1988, houve um debate televisivo entre os dois senadores candidatos à vice-Presidência dos Estados Unidos. De um lado, o senador Bentsen, democrata. Do outro, Dan Quayle, republicano.

O debate, enquanto tal, presumia-se de uma irrelevância absolutíssima. Mas não foi totalmente, por causa de uma “boutade” e só por causa dela. A dado momento, e talvez porque o diziam fisicamente parecido com J. F. Kennedy, Dan Quayle não esteve com meias medidas e comparou-se ao que fora Presidente dos Estados Unidos até ser assassinado em Dallas. A resposta de Bentsen foi demolidora e passou à história: “Trabalhei com Jack Kennedy. Conheci Jack Kennedy. Jack Kennedy era meu amigo. Senador, o senhor não é Jack Kennedy”. Nas imagens desse momento, e é fácil encontrá-las, Quayle estaca, lívido, sem réplica. Ora, olhando para a Rússia, para esta Rússia que tenta reverter um passado que passou, apetece dizer “Rússia, a senhora não é a União Soviética”! Mas, mesmo na ironia, convém atuar com medida. Certo, certo, é que a União Soviética perdeu, e que George Bush ganhou. Logo, Quayle ganhou e ficou a Vice-Presidente e Bentsen perdeu, e ficou com nada; e a Rússia, não pode ganhar esta contenda.

Uma Rússia a limitar estragos?

Com mais ou menos boa-fé da Rússia (é melhor partir da segunda hipótese) com mais ardil ou menos ardil (é melhor partir da primeira hipótese), vai medrando a convicção de que o agressor estará a limitar o seu raio de ação em território ucraniano – abandonando de vez a ideia de se locupletar com metade do território, deixando a outra metade, mais ocidental, para quem a quisesse. Os Estados Unidos e o Secretário-Geral da NATO pedem cautela e caldos de galinha, dizendo que poderá tratar-se de uma pausa técnica, e que nada garante que a Rússia não recomece, mais tarde ou mais cedo, a história iniciada em 24 de fevereiro, com ataques em larga escala contra o território ucraniano. Não parece. Mas se há coisa que neste processo se aprendeu a não desvalorizar foi a qualidade da informação dos Estados Unidos.

Mesmo assim, é difícil nestas circunstâncias antecipar uma capacidade de recomposição tão grande, porque do outro lado a Rússia vê uma oposição com duas forças que se têm reforçado com o tempo: combatentes cada vez mais moralizados e “testados”, equipamento defensivo, e não só, em cada vez maior quantidade, qualidade e capacidade letal. 

A Rússia, não se esqueça, ainda tem em mãos o assunto Mariupol, e é possível que o venha a alcançar. Custa aceitá-lo, depois termos assistido, impotentes, à forma como a cidade arrostou um dilúvio de fogo e destruição com uma coragem impensável e a insensatez que só o heroísmo consegue alimentar. Um relatório recente dá conta que, só para a reconstrução de Mariupol, vão ser necessários 10.000 milhões de euros. Poderá ser exagerado, digamos metade. Continua a ser um espelho de horror e destruição.

A acontecer que Mariupol tombe exangue, fechar-se-á pouco a pouco o cerco sobre Lugansk e Donetsk, dois objetivos que tinham, e agora muito mais têm, uma importância determinante para a Rússia. Ali se definirá, não já se a Federação Russa ganha, mas se não perde demasiado.

A Rússia tem a vantagem militar e psicológica de, escolhendo estes, ou quase só estes alvos para as suas forças, poder concentrar sobremaneira os esforços, e além disso abrir duas frentes contra a defesa ucraniana, uma a partir das “repúblicas” separatistas, outra a partir de sudeste ou até do Norte (e assim se percebe como Mariupol ainda é um travão importantíssimo).

Ao mesmo tempo, esta vantagem da Rússia não é menos vantagem da Ucrânia, uma vez que alocará todos os recursos de que disponha ao desgaste, passo a passo, blindado a blindado, do inimigo. A Ucrânia poderá folgar as costas lá onde, até agora, tinha de ser desdobrar em ações de defesa: e ir roendo, aqui e ali, posições da Federação russa. Neste jogo do gato e do rato, a Rússia pode ter de aceitar uma inversão de papéis que bem dispensaria. Tinha alvos, passa em algumas situações a ser alvo.

Na pior das hipóteses, a Ucrânia ver-se-ia perante um desafio que corresponde, em termos gerais, ao melhor e mais otimista dos cenários com que se lançou a jogo: a hipótese de perda (de facto, não de direito) da parcela do Leste que controla. No entanto, mesmo em relação a isso é melhor esperar para ver e só depois tomar a decisão de jogar a cave. Realmente, muitos dos que apoiam sem reservas a Ucrânia estavam convencidos de que o luto pelo País era inevitável, a desproporção de forças era demasiada, dizia-se. O luto não era inevitável e não vai haver necessidade de o fazer. É cada vez mais expectável que, mesmo nesta fase, mesmo com a tal reorganização russa, os ucranianos confirmem ser um osso extremamente indigesto além de duro de roer. Esperemos que sim.

Na sequência do antecedente, a Rússia anunciou a 1 de abril que a Ucrânia tinha atacado com dois helicópteros MI-24 um depósito de combustível em território russo, não longe da fronteira ucraniana (muito perto, aliás). Estes helicópteros são bem um símbolo de tudo aquilo de que se esteve a falar. Feitos e concebidos pelos soviéticos no início dos anos 70, já participaram em mais conflitos do que sei lá o quê. Passaram os anos, foram utilizados em 2014, tanto na Crimeia como no Donbass. E aqui estão eles, ou poderão estar, pela primeira vez em território russo.

Inicialmente, a Ucrânia não confirmou o ataque; depois veio negá-lo, com as razões já quase costumeiras: ou foi acidente, ou foram os russos que o fizeram explodir para imputarem o facto à parte ucraniana. Admitamos que não foi um acidente e que foi mesmo um raide ucraniano, porque a tese dos russos a mandarem pelos ares aquela estrutura é de difícil explicação lógica (para que é que o fariam, se estão envolvidos de uma tal maneira no conflito?).

Poderia a Ucrânia ter agido ofensivamente em território russo? Podia, porque a Ucrânia tem do seu lado o exercício do direito de legítima defesa. Mas este episódio não foi um “ataque”, ainda por cima num território que não aquele que está sob ataque? Não, às duas dúvidas. O Estado que está a ser atacado tem, no mínimo, o direito a uma resposta proporcional ao ataque, e a melhor opinião é até aquela que diz que a avaliação não é de simetria, uma vez que se favorece o Estado agredido. Este, sendo assim, não poderá agir em excesso de legítima defesa, e as ações que empreender destinam-se a fazer cessar a agressão.

Aqui, se tiverem sido as forças ucranianas, não houve, de certeza, excesso de desproporção na defesa (pense-se, não é preciso ir mais longe, na destruição de infraestruturas essenciais na Ucrânia em virtude dos bombardeamentos da Federação Russa). Por isso, não só não houve “ataque”, como estão preenchidos os requisitos da necessidade, proporcionalidade e adequação. Fica, apenas, a questão de ser um alvo em território russo, que é de simples resposta: é claro que, se tiver sido uma ação ucraniana, ela foi lícita, uma vez que o “alvo” da defesa da Ucrânia é, no seu conjunto, o Estado agressor, qualquer que seja a forma da agressão: ou as forças no território ucraniano, ou alvos legítimos do agressor, mesmo que fora do território ucraniano.

Tenha esta ação sido ucraniana, não aumenta as hipóteses de escalada no conflito? Parece-me difícil ver que mais escalada poderia acrescentar-se àquilo que a Rússia fez desde o início das hostilidades. A Rússia declarou que, com isto, fica mais complicada a decisão de um cessar-fogo. Talvez. Mas o fogo já cessou alguma vez?

Neste mês que continua fero, quando a guerra parece começar a desvanecer-se (mas não), bem escreveu T. S. Eliot no poema “O enterro dos mortos”: “Abril é o mês mais cruel, gera / Lilases da terra morta, mistura / A memória e o desejo, agita / Raízes dormentes com chuva da Primavera”.

De T. S. Eliot, “Poemas Escolhidos”, Relógio de Água, 2016

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