Manter o sangue-frio

11 jun 2022, 21:50

O que é que queremos na Ucrânia? De forma serena, quais são os nossos “objetivos” neste conflito? Continuam a ser os que foram enunciados, nomeadamente, enfraquecer de forma duradoura a capacidade bélica da Rússia? Para evitar equívocos, estas perguntas têm de ser repetidas, com resposta clara e inequívoca. De facto, a diferença entre as declarações de amor e a prática nunca deve ser demasiada. E é mais ou menos assim com a guerra e o apoio que declaramos - e depois levamos à prática – a uma das partes.

Se nos sentimos capazes de ir até ao fim, siga.

Se, por estas ou por outras, estamos a ficar permeáveis a este ou àquele fator, económico, de rotina, político ou outro, então mais vale estarmos quietos e darmos a conhecer esta limitação com brutal franqueza. Se queremos, a título principal, retirar força ao agressor, mas sem garantirmos ao agredido que, mesmo que a prazo, tem possibilidade de se defender, é nosso dever dizê-lo de vez.

É de notar que, entre uma e outra opção, entre apoiar ou não, nem é decisivo falar-se em justiça, em direito, ou apoiarmo-nos no realismo mais cru. É, infelizmente, mais básico do que isso. Só pode perceber-se o alcance, a natureza e o tempo do compromisso se aquele que pede ajuda souber aquilo com que pode contar. Porém, se lhe for prometido este mundo e o outro e, a meio do caminho, ficar o apoio sem fôlego, o impacto negativo será devastador.

Na Ucrânia, isso não “pode” acontecer, ouvimos dizê-lo sobejas vezes. Porém, desde a queda de Azovstal, mudaram as expectativas, foi-se a euforia, de uma forma racionalmente pouco fundamentada.

Sabemos que, através de Volodimir Zelensky, protagonista máximo, Kiev acreditou que, aumentando a cada dia a pressão, sendo cada vez mais incisivo (e agressivo) na comunicação – pense-se no discurso do Presidente ucraniano perante o Conselho de Segurança –, os diques que travavam o apoio militar contra o agressor russo acabariam por ceder. Não é isso aquilo a que assistimos, e nota-se, em geral, menos paciência relativamente à palavra do líder ucraniano. Nem é crítica nem reparo, é a verificação de uma certa rotina que se está a instalar, um fastio que vem da repetição e daquela que começa a ser uma rotina.

A estratégia inicial acentuava o otimismo, a invencibilidade e caráter heróico da resistência ucraniana. Era como se só morressem soldados russos. Apenas, depois, mais depressa ou mais devagar, a mancha vermelha que ia desenhando no mapa os avanços do agressor foi-se “consolidando”. Nas últimas semanas, a estratégia comunicacional parece a oposta. É verdade que continua a dizer-se, sem vacilar, que no fim a Rússia será derrotada. Porém, reforça-se o dramatismo das baixas em combate (200 por dia? Mais?) para definir este como o ponto crítico de toda a guerra.

No Donbass, joga-se tudo, em Severodonetsk, joga-se tudo, esta é “a” batalha na guerra da Ucrânia. Esta tem sido a posição da Ucrânia, que não tem sido a dos Estados Unidos ou da Europa. Eu diria que aquela é uma estratégia de comunicação compreensível, mas de dois gumes. De facto, ou consideramos que não se joga “nada”, e que ainda falta a segunda parte (e logo se verá se o jogo acaba aos 90’ ou se vai a prolongamento) ou, se o Donbass “cair”, estamos a assumir a derrota, com efeitos de desmoralização evidentes.

Ainda por cima, é a própria Ucrânia que hoje já o aceita (além de muitos outros): o tempo do conflito é mais longo. Primeiro, era maio. Depois, o fim do ano. Agora, já afirma que, embora com diminuição de capacidades, a Rússia consegue aguentar este conflito durante mais um ano. Maio de 2023, portanto.

Há duas zonas de fratura possível cujo risco começa a surgir perante os nossos olhos. A primeira diz respeito às “sanções” adotadas contra a Federação Russa.

A diminuição da dependência energética dos europeus é indiscutível, gostando muito embora alguns que ela já fosse muito mais nítida e radical. Também vou lendo que, mais tarde ou mais cedo, os efeitos na economia russa se farão sentir. Continua é sem ver-se confirmada de forma sólida a premissa de que, desta vez, pelo consenso alargado, as tais contramedidas vão funcionar, decapitando a capacidade de reposição de meios no teatro de operações.

A segunda zona de fratura é a discrepância entre as capacidades transferidas para a Ucrânia e aquilo que a Ucrânia gostaria de ter. Já se sabe, fosse pela Ucrânia e nunca chegaria. É normal, nenhum de nós sabe ou consegue imaginar o que seja o seu próprio país, cidade, casa, aldeia a serem bombardeados e destruídos por quem agride.

Seja por que razões forem, mas principalmente porque nenhuma das partes mostra capacidade para derrotar a outra no imediato, o conflito na Ucrânia (melhor: no Donbass) cada vez se parece mais com a guerra de trincheiras da Primeira Guerra Mundial a partir de janeiro de 1915, quando franceses e alemães se confrontaram na frente ocidental, entre a Alsácia e a Flandres. Pouco mexia cada lado, mas foi uma carnificina; pior, de cada vez que um deles tentava uma grande ofensiva, era pior. Verdun pagou-se com 700.000 vidas de fevereiro a dezembro de 1916, mas há quem considere que passou em bastante o milhão. 70.000, por mês, só ali.

Ora, nesta guerra de atrição, a artilharia assume enorme protagonismo, e tanto mais quanto uma das partes (a Rússia) domine, essencialmente, os ares – sujeitando a artilharia do opositor, de menor alcance, a um desgaste muito importante.

Antes do conflito e nos primeiros dias depois de 24 de fevereiro, sobrestimámos a capacidade da Rússia, o ambiente internacional era de choque e velório. Depois, quando os ucranianos começaram a mostrar a sua têmpera, passámos para o outro extremo, subestimámos em demasia a Rússia e achamos que, com estes ucranianos, a vitória estava ao alcance da mão. Aquilo é que era, mais dia menos dia a Rússia ia ceder, pensaram muitos, enquanto bebiam doses industriais de shots da nossa própria propaganda. Lembram-se quando foi divulgado, com a máxima seriedade, que a Rússia tinha para uma semana, antes de fechar a loja?

Talvez, digo só talvez, fosse avisado parar-se um pouco para refletir. Percebo que a questão da adesão da Ucrânia à UE seja, politicamente, um momento marcante. Mas a discussão acesa em torno da atribuição àquele País do estatuto de candidato parece surreal. Não vai evitar nem uma morte no conflito, não vai alterar nada de nada, porque a Ucrânia vai esperar muitos anos até poder ser membro da UE. Ocupa-nos durante uns dias. Mas, e depois? Note-se, não estão em causa instituições e muito menos pessoas, mas leituras da realidade. Nesse plano, só nesse, a Rússia tem jogado melhor a sua máquina de propaganda, e recuperou terreno. O seu jogo é brutal, seco, amoral, sem regras, tem assentado na retaliação direta e na escalada (como nos julgamentos de prisioneiros de guerra). É um jogo muito para dentro, como se vê pelo episódio em que Putin se compara a Pedro, o Grande, e ainda sorri. Porém, está a começar a deixar marcas fora.

Melhor será que, mais “experientes”, deixemos de navegar tanto à vista e que o nosso tempo seja mais estável, para evitarmos ruído em torno deste desígnio. Exemplo de ruído? O Presidente Joe Biden declarou que Zelensky não quis acreditar que a Rússia ia invadir, e veio a resposta na volta do correio de que, antes disso, já a Ucrânia tinha pedido sanções. E a Rússia, com este micro-episódio? Sorriu, claro. Como sorri de cada vez que, na União Europeia ou na NATO, se dão a conhecer divergências de forma pública.

Em síntese, melhor será que a Ucrânia saiba, de uma vez por todas, até onde podem ir os seus amigos (todos os amigos, sem exceção), mesmo que deteste a resposta e pugne por mais ajuda ou mais meios. É um daqueles casos em que se trata de política, de política e de política. Temos mais hipóteses de levar a nossa avante se agirmos com esta transparência. Se mantivermos o sangue-frio e agirmos com a razão, nada está decidido, e a Rússia e os seus apoiantes terão sorrido e “festejado” cedo de mais. É como diz o povo, “quem ri por último ri melhor”.

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