A urgência do tempo ucraniano

28 jun 2022, 13:44

Tivemos na última semana dias francamente maus, com avanços das forças russas em Lugansk, com o penacho da conquista de Severodonetsk e a previsível queda próxima de todo o oblast nas mãos do invasor. Como não há mal que sempre dure, a reunião do G7 (terminada ontem) e a Cimeira da NATO em Madrid (que começa hoje) dão-nos razões para acreditar que ainda há muito para jogar.

No plano operacional, deve dar-se o devido desconto à propaganda permanente e já cansativa que nos diz que a Rússia é incapaz desde há meses e está quase a colapsar ainda há mais tempo. Tenha-se presente que o conflito ainda não tinha começado há um mês e já os jornais reportavam que o Ministério da Defesa ucraniano “acredita que as forças russas têm apenas munições, combustível e alimentos suficientes para três dias”.

Ainda assim, há análises mais sustentadas que apontam para a probabilidade elevada de o agressor não conseguir continuar por muito mais tempo o conflito com esta intensidade e supremacia. Nenhuma capacidade é infinita, e a Rússia está a gastar a um ritmo muito rápido e intensivo. Por isso, a Ucrânia, ainda que com baixas muito importantes e a destruição de capacidades também significativas, tem a seu favor o tempo: a torneira que alimenta o seu esforço militar tem várias proveniências que não vão ser interrompidas. Ora, por exemplo, a torneira norte-americana não será inesgotável, mas, mantendo-se a vontade política, não andará longe disso.

O reiterar deste compromisso na reunião do G7 e, certamente com muito mais solenidade, na reunião da NATO, será a pior das notícias para a Rússia, uma vez que acrescenta ao torno cada vez mais apertado das chamadas sanções. Fossem só “sanções”, e estaria mais descrente quanto ao resultado do conflito ucraniano. Fosse só o apoio militar à legítima defesa ucraniana, e descrente estaria. É a conjugação destes dois processos que tenderá a confluir para uma alteração relevante do estado de coisas no teatro de operações e, espera-se, para o fim do conflito em condições que não representem uma vitória russa ou que esta possa apresentar como tal.

Ainda assim, a intervenção de ontem do Presidente ucraniano durante a reunião do G7 trouxe algo de novo além do habitual pedido/exigência de mais armas e sanções. De facto, Zelensky pediu aos seus aliados que ajudassem a Ucrânia a terminar a guerra até ao Inverno uma vez que, se assim não fosse, as forças ucranianas ficariam sujeitas a condições especialmente difíceis. Pode considerar-se que este pedido de ajuda com tempo definido vale em sentido literal e com as razões apresentadas pelo líder ucraniano. Pode considerar-se, de forma um pouco diferente, que se trata de acrescentar pressão, para que aumente o fornecimento de armamento pesado e sistemas defensivos.

Ou, então, pode ser tudo isto e alguma coisa mais: uma mudança nos tempos do conflito.

Até agora, vivíamos com um tempo não finito. A Ucrânia não tinha de negociar, tinha de resistir ao invasor e, do lado dos que a apoiam, a garantia de um apoio incansável. Quanto tempo durava o conflito? O tempo que tivesse de durar, e, pelo menos (retomando a posição dos Estados Unidos) até que a Rússia ficasse incapacitada durante muito tempo de retomar projetos agressivos.

Zelensky terá percebido que, afinal, o tempo é finito e que, sobretudo, o decurso do tempo pode vir a mostrar-se favorável para a Rússia. Se vier a ocupar na totalidade o Donbass (como até alguns serviços de informações ocidentais preveem que vá acontecer), a Rússia terá sob o seu domínio a quase totalidade da faixa sul e leste ucranianos, com uma continuidade territorial que a beneficia.

É legítimo dizer-se tudo. Que, do ponto de vista estratégico, a Rússia já perdeu, porque não conseguiu o que pretendia no início do conflito; que vai ficar destruída economicamente; que é um pária internacional; que a reconstrução da Ucrânia será paga com o dinheiro russo; o que quisermos. E tudo será provavelmente verdade. O problema é que, no entretanto, ferida que esteja, a Rússia está a consolidar, e vai continuar a reforçar posições nos territórios que ocupa. Quer ser, o mais possível, como uma lapa, com várias linhas defensivas muito difíceis de tomar. Depois, com o tempo, vai sendo cada vez mais difícil que a tirem de onde está, com custos humanos incalculáveis e o cansaço, aquele cansaço que se vai instalando depois de tantas mortes e tanta violência.

Zelensky vê, de repente, o espelho daquilo que a Ucrânia deu a provar à Rússia, depois de consolidar posições defensivas durante oito anos. As baixas que causou às forças russas foram muito pesadas. Mas, e agora, quais serão as baixas ucranianas a fazerem o percurso inverso? O agressor até pode vir a ceder, mais tarde ou mais cedo. Mas o sangramento do povo ucraniano pode tornar-se, pura e simplesmente, insuportável se se der tempo que chegue à Rússia para fazer o seu trabalho de casa defensivo. Porque, depois, dirá: venham, cá vos espero, tenham o armamento e as capacidades que tenham.

Nesta medida, é possível agora que o sentido de urgência na guerra seja não só russo como ucraniano. De facto, a invocação do Inverno, desse famoso general, vale para ucranianos como para russos, e ambos sofrerão. Mas, por exemplo, o Inverno será sempre mais duro para quem ataca ou lança uma contraofensiva, como a Ucrânia fará mais tarde ou mais cedo (e tem testado e “treinado” na região de Kherson).

O líder ucraniano disse ainda na reunião do G7 (inconfidência dos franceses) que, por ora, não aceita negociar. E que só o fará, se possível por alturas do Inverno, quando já estiver em posição de força.

O que seja uma “posição de força” é a questão para o Euromilhões. Não é a condição de recuperação prévia total do território ucraniano, porque nesse caso não seriam negociações, era um “diktat”, um acordo de paz com o derrotado a assinar sem ler o documento que lhe pusessem à frente. Poderá ser, talvez, uma situação em que a Ucrânia toma a iniciativa e ataca, de forma consistente e com ganhos verificáveis, as posições do ocupante. Nesse caso, mais se compreende a nova “urgência” de Zelensky e o sentido que faz o seu apelo.

Mas, há mais elementos que justificam esta nova pressa.

Até agora, a Rússia não usou a arma atómica “jurídica” que ainda tem no seu arsenal, e não deveríamos cometer o erro tremendo de a subestimar. O caldo estará definitivamente entornado, mesmo do ponto de vista simbólico, se a Rússia invocar o direito de autodeterminação dos povos e organizar referendos para, a pedido das “populações”, incorporar no seu território parcelas da Ucrânia, Kherson ou outras – porque é quase certo que o Donbass está já “fechado” para esse desígnio. Não muda nada, porque essas anexações nunca serão reconhecidas, mas, para a Rússia, muda tudo – e, se muda para a Rússia, não o devemos ignorar. A partir desse momento, se alguém atacar o Donbass, ou Kherson, ou Mariupol, estará a atacar território russo e, por conseguinte, a violar a sua “soberania” e “integridade territorial”. Isso quer dizer, tão simplesmente, que a Rússia interpretará essas ações como ato direto de guerra, e poderá (sempre na sua visão) exercer legítima defesa com todos os meios que tiver ao seu dispor – incluindo os nucleares.

É crucial interromper esses processos no terreno? É, naturalmente. O problema é que estamos a assistir a uma escalada ininterrupta do conflito desde o primeiro dia, em que cada uma das partes vai a jogo de cada vez que a outra sobe a parada. E, portanto, como escrevi logo no início do conflito, o gelo que pisamos está cada vez mais fino.

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