A Rússia vai declarar guerra à Ucrânia. A sério?

3 mai 2022, 22:06

Tem sido notícia a possibilidade de, a 9 de maio, Vladimir Putin anunciar que a Federação Russa declara guerra à Ucrânia, aproveitando a especial importância da cerimónia que, todos os anos, celebra o fim da Segunda Guerra Mundial.

A ser verdadeiro, este facto tem uma consequência interna. Nos termos constitucionais, Putin poderá a partir daí recorrer à mobilização de reservistas e assim continuar a alimentar o conflito na Ucrânia. Pode além disso, também no plano interno, procurar que a sociedade russa se envolva mais neste conflito, tanto ao nível da opinião pública como noutras dimensões, reforçando o sentimento de união nacional em torno de um “grande” objetivo. A guerra na Ucrânia fica, política e juridicamente, promovida de forma definitiva àquilo que sempre foi, um conflito armado, muito mais do que a farsa jurídica que consistia em caracterizá-lo como operação militar especial.

A vir a ser feita, a segunda consequência desta declaração de guerra, com uma tal intenção, será já externa, de natureza internacional, militar e política. Através desse sinal, a Federação Russa confirmará várias coisas que se afiguram cada vez mais nítidas.

Uma, um sinal de debilidade surpreendente. Se uma “potência” como supúnhamos que fosse a Rússia já está à míngua de meios e de combatentes antes de transcorridos cem dias de conflito, a verificação é das mais importantes.

Depois, é uma condenação dramática para a hierarquia do aparelho militar russo. Por muito que a resistência ucraniana seja notável, por bons que tivessem sido o treino e fornecimento de material militar à Ucrânia por parte dos seus principais aliados, ainda assim, o desfasamento entre expetativas e resultado é de tal forma profundo que a responsabilidade, ainda que parcial, recai sobre o próprio exército russo.

Em terceiro lugar, é um sinal internacional. Demonstra-se que a união mais do que razoável que tem sido mantida em torno do esforço defensivo da Ucrânia está a dar os seus frutos.

Questão diferente, além destes sinais e da sua possível leitura, é a da relevância da declaração de guerra. No passado, principalmente, até à segunda guerra mundial, a declaração de guerra, não sendo prática uniforme, era algo de bastante usual.

Algumas declarações de guerra são momentos históricos inesquecíveis. A declaração de guerra da Áustria-Hungria à Sérvia, a 28 de julho de 1914, que com inconsciência abriu as portas ao inferno da Primeira Guerra, que só se fecharam dezenas de milhões de mortos depois. Ainda na Primeira Guerra Mundial, é também interessante a declaração de guerra da Alemanha a Portugal, a 9 de março de 1916, quando o documento formal é entregue por Friedrich von Rosen, Embaixador alemão, ao então Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Soares. Veja-se a parte final, confirme-se a “educação” exemplar:

“O Governo Imperial vê-se forçado a tirar as necessárias consequências do procedimento do Governo português. Considera-se de agora em diante como achando-se em estado de guerra com o Governo português.

Ao levar o que precede, segundo me foi determinado, ao conhecimento de V. Ex.ª tenho a honra de exprimir a V. Ex.ª a minha distinta consideração.”

Outras declarações de guerra foram também interessantes, se é que pode haver alguma coisa de “interessante” numa decisão desta natureza. O Reino Unido e a França declararam guerra à Alemanha nazi a 3 de setembro de 1939, depois de, dois dias antes, os alemães terem invadido a Polónia.

No que se refere ao Reino Unido, foi Neville Chamberlain quem, na prática fez o anúncio em direto, uma vez que o Reino Unido fez um ultimato à Alemanha. Haveria guerra se, até às 11 horas do dia 3 de setembro, a Alemanha não anunciasse a intenção imediata de retirar as suas forças da Polónia. A Alemanha nem se dignou responder. E, assim, pelas 11h15m, o Primeiro-Ministro anunciava aos seus cidadãos, através de mensagem radiofónica, que tinha começado a guerra contra a Alemanha. A guerra começou naquele momento, para a França, seis horas depois. As horas, afinal, interessavam bastante pouco. Porque a guerra só viria a acabar mais de cinco anos depois.

Depois de 1945, o direito resolveu, basicamente, estes assuntos protocolares. A guerra, sobretudo por efeito da Carta das Nações Unidas e do desenvolvimento do direito internacional humanitário, perdeu a “graça”, passou a ser vista como é.

Juridicamente, a declaração para o seu início passou a ser inútil, um gongorismo. Se, antes, era este ato formal que transferia as relações entre dois Estados do direito da paz para o direito da guerra, agora os conceitos decisivos são o de conflito armado e o do uso da força militar. Onde houvesse esta (é claro que acima de um simples incidente de fronteira), passava a existir aquele, o que quer que entendessem o agressor e o agredido. A guerra, e de vez, passou a ser algo de objetivo, não algo que dependa de estados subjetivos.

Na guerra da Coreia, por exemplo, Truman recusou qualquer declaração de guerra e considerou que o envolvimento dos Estados Unidos correspondia a uma “ação de polícia” com o envolvimento direto das Nações Unidas. Uma ação de polícia? Bom, a guerra da Coreia durou de 1950 a 1953 e, quando acabou, os Estados Unidos tinham tido mais de 50.000 baixas. E acho que nunca nenhum historiador se referiu alguma vez à “ação de polícia” dos Estados Unidos na Coreia…

Ainda assim, se posso ter preferências nestes assuntos, talvez o episódio mais absurdo seja o da alegada declaração de guerra do Panamá do “general” Manuel Noriega aos Estados Unidos. O mais extraordinário é que o então Presidente dos Estados Unidos, George Bush, fez referência a tal declaração como uma das “justificações” (também das mais absurdas que a História recente recenseou) para a invasão do mesmo Panamá. A verdade, porém, é que nem sequer houve declaração de guerra coisa nenhuma.

O Presidente panamiano, que (é muito verdade) ninguém se atreverá a defender que fosse flor que se cheire, declarou, isso sim, que, perante as sucessivas “agressões” norte-americanas, nada mais lhe restava senão considerar que, de facto, o seu País se encontrava num “estado de guerra” com o vizinho dos andares de cima. Era uma “resposta”, não era uma “iniciativa”.

Na altura, como agora, as palavras podem ter um significado real muito diferente daquele que é o seu sentido literal.

Bem o sabe Vladimir Putin. Porém, a partir de certa altura, as palavras deixam de importar. Na Ucrânia, por estes dias, este tipo de palavras não importa nada. Mas mesmo nada.

Para ouvirem a declaração de guerra do Reino Unido à Alemanha, aqui.

Pode pensar-se o que se quiser de Neville Chamberlain, para quem a História foi dura, até cruel. Mas este é um discurso carregado, dramático. Neville Chamberlain sabia o que ia acontecer.

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