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Coordenador de Grande Reportagem e editor de Religião e Cidadania TVI/CNN Portugal

“Senti o eco a ressoar nas paredes do Kremlin”

13 mar 2022, 08:00

O muro de Berlim tinha sido derrubado. A crise de 1993 dissolvera o Soviete Supremo, com a ascensão de Boris Yeltsin. Mas, entre cristãos russos, prevalecia a memória de longo alcance, como se a passagem do tempo e os sinais da história não fossem suficientes – tal o trauma de mais de meio século de perseguição.

Quando, em Agosto de 1996, um grupo de cristãos, católicos e ortodoxos, visitou Fátima, ouviram-se ainda orações direcionadas. O jornal Voz da Fátima relatava no mês seguinte o sentimento de um padre russo, de nome Ludvik: “durante a oração, à noite, senti o eco a ressoar nas paredes do Kremlin e das igrejas de São Petersburgo”.

Podíamos dar este episódio como exemplo de uma devoção que se adapta a cada momento, como se cada momento da história fosse um estímulo proativo à própria devoção.

Embora tratando-se de um símbolo mariano em contexto católico, foram muitos os ecos devocionais das igrejas ortodoxas durante o regime soviético e a guerra fria. Só se compreende a dimensão de Fátima relendo as circunstâncias em que ela se afirma e o século XXI repete os argumentos da guerra e da paz sobre os quais a devoção se afirmou no século XX.

A Europa de leste, em concreto, faz parte da dinâmica da chamada “mensagem de Fátima”. O apelo à “conversão da Rússia” era uma provocação religiosa e espiritual com consequências políticas.

Fátima deve ser lida também nos meandros da cortina de ferro, num fervor militante contra o ateísmo referenciado sob o domínio soviético comunista. Mas, sobretudo, foi na aflição da guerra e no desejo de paz que emergiu a grande devoção à “senhora” de branco, transformando-a num fenómeno religioso global.

Não se estranhe, por isso, o pedido do arcebispo greco-católico de Lviv, para uma ida à Ucrânia de uma “imagem peregrina” da “senhora de Fátima”. O santuário aceitou de imediato e vai enviar a imagem nº 13. Esta é uma tradição que remonta a meados do século XX. Com tantas solicitações das comunidades cristãs de todo o mundo, o santuário encomendou outras imagens da “senhora de Fátima”, mantendo-as como uma espécie de “réplicas” oficiais, disponíveis para estes périplos devocionais. A globalização da devoção, a partir dos anos 50, explica-se também com estas viagens da “imagem peregrina”, que, por onde passa, gera movimentações devocionais e de fé com grande comoção.

A guerra na Ucrânia recriou as circunstâncias. Há um duplo pano de fundo a estimular os sentidos devocionais. Com mais de 100 anos de distância, os contextos geopolíticos são diferentes. Mas, como nas primeiras décadas do século passado, há uma guerra medonha a atormentar o mundo e ressoa o nome da Rússia.

O gesto do santuário tem grande simbolismo religioso, espiritual, devocional e, há que admitir, político. Convém lembrar que a ideia de “conversão” agregada à “mensagem de Fátima” pressupõe mudanças sociopolíticas e a defesa inequívoca da paz – embora, no decorrer do século XX, a devoção tenha sido instrumentalizada, sem grande resistência da hierarquia católica, para legitimar a beligerância, como foi o caso da guerra colonial e do posicionamento diante da guerra fria. 

Não é comum, neste tempo secularizado, a valorização política da dimensão religiosa. Este gesto reafirma, de forma inequívoca, a relevância da religião, nos símbolos e nas lideranças, em contextos de rutura, seja diante da imprevisível finitude, seja quando as armas se sobrepõem à razão.

Uma escultura simbólica, de maternal inspiração, ampliará a esperança onde prevalece o desespero. E Fátima recria-se. Agora, a leste. Porque, a leste, como no resto do mundo, não há nada de novo quanto ao essencial da natureza humana. Que diria hoje aquele padre russo que, há quase 30 anos, na Cova da Iria, durante uma oração, dizia sentir “o eco a ressoar nas paredes do Kremlin”?

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