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Coordenador de Grande Reportagem e editor de Religião e Cidadania TVI/CNN Portugal

Entrelinhas racionais num emotivo gesto religioso

27 mar 2022, 18:42

A história contada na velocidade dos dias mediáticos faz-se de retratos episódicos, de flashes que se fixam nas memórias curtas. Mas é no contexto perene da experiência religiosa, (re)interpretada em cada tempo, que se deve entender o acontecimento de 25 de março. Se houve emoção na ponte entre Roma e Fátima, não faltou razão no gesto a que assistimos. Fez-se um retrato pragmático do mundo em que vivemos. 

1. A consagração ao Imaculado Coração de Maria ganhou forma nas narrativas de Fátima, pelas circunstâncias beligerantes da primeira metade do século XX e pela perseguição religiosa na, então, União Soviética. A começar pelo Papa, o ato, em si, seria sucessivamente reeditado no decorrer das guerras, aflições e solicitações dos crentes. O mais simbólico terá sido em 1984, quando João Paulo II consagrou o mundo perante a imagem da devoção, levada da capelinha das aparições para a Praça de São Pedro, a pensar ainda na emenda dos “erros da Rússia”, conforme solicitação da vidente Lúcia. 
 
2. O pano de fundo pode parecer semelhante, mas não é necessário, desta vez, o enquadramento das leituras hermenêuticas ou dos multifacetados caminhos devocionais, nem os segredos fixados numa era ou os enigmas escatológicos, para ler, na fórmula do ato de consagração, o que somos e, sobretudo, o que não somos ou podíamos ser enquanto humanidade. Há uma causa e há um efeito que nos atravessa.

A introdução no texto proposto pelo papa Francisco para a oração suplicante é suficientemente explícita, faz estremecer qualquer consciência em discernimento.

“Perdemos o caminho da paz. Esquecemos as tragédias do século passado (…). Descuidamos compromissos assumidos como Comunidade das Nações e estamos a atraiçoar os sonhos de paz e as esperanças dos jovens. Adoecemos na ganância, fechamo-nos em interesse nacionalistas, deixamo-nos ressequir pela indiferença e paralisar pelo egoísmo. Preferimos (…) alimentar a agressividade, suprimir vidas e acumular armas, esquecendo-nos que somos guardiões (…) da casa comum”.

Nesta indiferença em relação a todos(as) e a tudo, “diluiu-se a fraternidade”, perde-se a humanidade. 
 
3. A consagração resume assim boa parte da linha de pensamento e preocupações do pontificado, mas assenta em grave argumento: “preservai o mundo de uma ameaça nuclear”. É a banalização que faz soar o alarme. Francisco advertiu já, mais do que uma vez, para o risco de se verbalizar a possibilidade do uso de armas nucleares, como classificou de “loucura” o anunciado grande investimento em armamento no lado ocidental.

Três dias depois da consagração, em palavras dirigidas a fieis após a oração do ângelus a partir da praça de São Pedro, Francisco apertou a ferida: “A guerra não pode ser algo inevitável. Não nos devemos acostumar à guerra! (…) Diante do perigo da autodestruição, a humanidade entenda que chegou a hora de abolir a guerra, de apagá-la da história humana antes que ela apague o homem da história”.

Estamos, afinal, entre o paradigma da permanência e a força da contingência. Há aqui uma certa lucidez utópica na defesa do diálogo e das palavras, que o Papa faz prevalecer sobre o pragmatismo bélico: "É preciso repudiar a guerra, um lugar de morte onde pais e mães sepultam seus filhos, onde os homens matam seus irmãos sem sequer tê-los visto, onde os poderosos decidem e os pobres morrem".
 
4. A súplica da consagração desenvolve-se neste percurso. Porque estamos numa “hora escura”, pede-se a conversão e o consolo para “desatar os nós do nosso tempo”. Na envolvência do culto mariano, de uma maternidade simbolicamente maior – como mãe que pode convencer um filho, que é Deus, a “desatar os nós” –, os crentes entregam-se incondicionalmente, confiando na intercessão do Alto “enquanto o rumor das armas não se cala”.

Uma consagração está no mais elevado grau da entrega em contexto de fé. Quem é consagrado deixa-se envolver pelo invisível. Na origem etimológica, transporta-se a ideia de união jurada com carater definitivo – sagrada –, que implica uma mudança comportamental. Não se trata apenas de esperar uma intervenção, mas de assumir uma entrega proativa, com consequências práticas. Pressupõe que os envolvidos se reconhecem incapazes, apenas e só porque já tudo terão feito no propósito para o qual pedem uma intervenção divina.
 
5. Na penúltima frase do texto, alude-se ao trabalho delicado na busca das relações redimidas: “fazei de nós artesãos de comunhão”.

Este gesto de profundidade espiritual e sentimento transbordante não serve apenas para consolar ou alimentar a piedade popular, nem se restringe aos parâmetros da leitura religiosa e das circunstâncias. É expetável que os crentes abarquem todas as dimensões “artesanais” da vida, passando até pelos comportamentos eclesiais – do clericalismo abusivo à tentação do poder – que, traindo o evangelho, também destroem pessoas e minam comunidades. 
A amplitude da consagração vai muito além. O momento é dilacerante, mas não se chega à paz calando apenas as armas. Na perspetiva cristã, é nas lutas do coração e da alma – o termo evangélico é metanoia – que tudo começa.
 
6. Desde o início da guerra na Ucrânia que Francisco tem vindo a endurecer intervenções. Na expectativa de um papel mais interventivo, eventualmente mediador – o Papa entende-se missionário no mundo para fazer “pontes” –, começou por evitar críticas incisivas ao regime de Moscovo. O decurso da guerra fá-lo-ia deixar as cautelas verbais para criticar dura e diretamente Putin e responder a Cirilo, o patriarca ortodoxo de Moscovo, que tem legitimado a posição de Moscovo ao insistir que Rússia, Ucrânia e Bielorrússia constituem uma unidade administrativa eclesial – “uma só nação”, afirma –, com origem na chegada do cristianismo àquela região pelo território que hoje é a Ucrânia.

Prevalece a lógica do poder religioso e a oportuna utilização deste para fins políticos. Cirilo ainda tenta a quadratura do círculo ao alegar que “o contexto político é negativo”, mas não se livra da acusação de colagem ao regime de Moscovo e já teve a resposta fraterna do Papa. Não estamos diante de uma operação militar especial, como alega o presidente russo, mas de um “massacre” em cenário de guerra, diz Francisco, que, após uma videoconferência com o patriarca ortodoxo de Moscovo, esclareceu, em comunicado da Santa Sé, o papel das lideranças cristãs: “A Igreja não deve usar a linguagem da política, mas a linguagem de Jesus, (…) buscar caminhos de paz, apagar o fogo”.
 
7. Embora o fogo não se apague, a consagração ocorreu quando se vislumbram ténues sinais de uma aparente aproximação entre as partes, irremediavelmente distantes. Diante da complexidade religiosa da Rússia, uma mediação do Papa é inverosímil, mas uma ida à Ucrânia não é impossível. A acontecer, colocaria Francisco noutro cenário de risco, como no Iraque, em 2021, onde percorreu cidades parcialmente destruídas pela guerra, trazendo à memória pormenores do denominado “segredo” de Fátima, cuja narrativa descreve a morte de um “bispo vestido de branco”, alvejado por “soldados” no topo de um monte, depois de percorrer “meio trémulo, com andar vacilante”, uma cidade “em ruínas”. Na interpretação oficial, “o bispo vestido de branco” é o Papa.

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