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Coordenador de Grande Reportagem e editor de Religião e Cidadania TVI/CNN Portugal

A religião num conflito que não é religioso

26 fev 2022, 10:48

Considerado já um gesto “inusitado”, a visita sem precedentes do Papa Francisco à embaixada russa no Vaticano desenha-se nos contornos da alta diplomacia

É a primeira vez que o “chefe” da Igreja católica vai, ele mesmo, ao encontro do representante diplomático de um país causador de um arriscado e imprevisível conflito armado. O porta-voz do Vaticano diz que o Papa se limitou a “expressar preocupação com a guerra”. É pouco conteúdo para “mais de meia hora” de conversa...

O embaixador russo, Aleksandr Avdeyev, acrescentou que Francisco “pediu proteção” para as crianças, os doentes, os que sofrem e a população em geral, mas negou, em declarações a uma agência de notícias russa, que o Papa tivesse proposto mediar o conflito.

Havendo uma pequena minoria de católicos na Ucrânia, não seria prudente o Papa dar tal passo, sob risco de uma reação negativa das maioritárias igrejas cristãs ortodoxas, indiretamente envolvidas no conflito. Nem Putin poderia, pelo mesmo motivo, aceitar tal disponibilidade papal.

Francisco atua no domínio das palavras e dos gestos simbólicos, à semelhança de Pio XII na 2ª Guerra Mundial. Foto: Gergorio Borgia/AP

1. Este não é um conflito religioso, mas a dimensão religiosa não deixa de estar presente e há contornos religiosos nos contornos do conflito.

Bergoglio foi das primeiras vozes com impacto global a alertar para a possibilidade do que veio a verificar-se. Não bastava a ideia de uma “terceira guerra mundial aos pedaços”, que tem acompanhado, há anos, muitas das suas intervenções. Durante as últimas semanas reforçou a necessidade da via do diálogo e da negociação, evitando palavras mais incisivas que pudessem ter interpretações contraproducentes.

Francisco atua no domínio das palavras e dos gestos simbólicos, à semelhança de Pio XII na 2ª Guerra Mundial. Não é de estranhar esta contenção papal. Um dos objetivos ecuménicos do pontificado – mais sonho e vontade do que genuína possibilidade… – é a visita à Rússia, para se encontrar com o patriarca Cirilo, líder da Igreja Ortodoxa de Moscovo, com quem esteve em Havana, em fevereiro de 2016, durante uma breve e concertada escala a caminho do México. Na ocasião assinaram um documento, no qual realçam a urgência de um “trabalho comum entre católicos e ortodoxos, chamados a dar ao mundo, com mansidão e respeito, a razão da esperança”. Avisando contra a “nova guerra mundial”, os dois líderes religiosos mostraram-se empenhados em “dar uma resposta comum” aos “desafios do mundo contemporâneo”.

A perspicácia diplomática do Papa argentino acrescenta criatividade, risco e ousadia, à ponderada, discreta e, por vezes, enigmática diplomacia vaticana, auxiliada por uma presença concreta no terreno. A Igreja católica, sabemos, tem a maior rede de informação, especializada na construção de pontes entre beligerâncias, habituada, desde os primórdios das missões de evangelização, a estabelecer, relações de confiança nos meios mais adversos dos quatro cantos do mundo para erigir e manter comunidades de crentes.

2. Se o Papa mantém, na invasão russa da Ucrânia, o cauteloso poder das palavras medidas, a Igreja católica não deixa de ter um caminho alternativo para se expressar.

O arcebispo greco-católico de Kiev, Sviatoslav Shevchuk, pediu aos ucranianos que defendam o país, dizendo que é um direito, uma responsabilidade e um dever de cidadania. O prelado defende que o ucraniano católico tem o dever de construir a paz, mas não pode abdicar de se defender e à sua pátria. Não é a diplomacia oficial, da realpolitik, mas a astuta ação da Igreja católica no terreno. Os greco-católicos representam 10% da população ucraniana, sendo a maior comunidade católica, com 5 milhões de fiéis, no mundo ortodoxo.

Se a diplomacia formal da Igreja católica é exercida a partir do Vaticano, das intervenções do Papa às nunciaturas (embaixadas) e enviados especiais, salvaguardando as igrejas locais, as igrejas locais não deixam de ser um canal diplomático e é nesta ação complementar que se amplia o espectro da ação.

As palavras do Papa são medidas à sílaba. Um apoio declarado do Vaticano à Ucrânia ou uma crítica mais aguda a Moscovo, pode comprometer a pretensão de visitar a Rússia. Ao invés, uma visita do Papa nesta altura a Moscovo, podia ser vista como uma traição pelos católicos ucranianos e pela Igreja Ortodoxa da Ucrânia. Mas não seria de estranhar uma eventual disponibilidade de Francisco para ir em breve a Moscovo, negligenciando a critica da comunidade internacional, se isso levasse à paragem das armas.

3. Convém rever a história recente do cristianismo na região para entender o papel da religião neste conflito.

Embora a tradição ortodoxa mantenha como primus inter pares (primeiro entre iguais) o patriarca de Constantinopla, atual Istambul, a Igreja Ortodoxa de Moscovo continua a assumir-se como a potência do cristianismo ortodoxo, a “terceira Roma”, herdeira da tradição bizantina após o cisma com a Igreja de Roma e o Papa.

Se a Igreja ortodoxa foi mártir durante a União Soviética, as independências após a queda do muro trouxeram um novo problema. Pela tradição ortodoxa, cada país tem a sua liderança eclesial. Quando a Ucrânia se tornou independente, os bispos ucranianos reivindicaram a criação de uma igreja autocéfala. Foram criadas duas, rivais, mas também houve cristãos ortodoxos que se mantiveram fiéis a Moscovo.

O patriarcado de Moscovo insiste que é a única autoridade ortodoxa legítima na Ucrânia, mas, em 2018, o Patriarca de Constantinopla – primus inter pares – reconheceu a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, resultante da fusão das duas Igrejas rivais, selando a autonomia e mantendo a tensão religiosa entre Moscovo e Kiev.

Sendo autocéfalas, as Igrejas ortodoxas correm um risco maior de agregação ou cooptação pelo Estado. Arrastadas pela circunstância ou instrumentalizadas, acentuam o nacionalismo e podem servir interesses geopolíticos nacionais e regionais.

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