A situação é mais séria do que inicialmente Moscovo previa, com a Ucrânia a ocupar várias localidades e a obrigar o Kremlin a fazer escolhas difíceis
Nos primeiros dias de agosto, um grupo de reconhecimento de soldados russos atravessou a fronteira de Kursk, na Rússia, para a província de Sumy, na Ucrânia. Assim que entraram em território ucraniano, foram detetados e atacados pelo exército ucraniano. Ninguém sobreviveu para compreender o que se estava a passar, mas os militares russos tinham acabado de esbarrar numa força militar ucraniana que se preparava para invadir a Rússia. Quatro dias depois, na manhã de terça-feira, a Ucrânia lançou uma ofensiva relâmpago em território russo, capturando dezenas de soldados russos e deixando um rasto de destruição no coração do território inimigo.
“As forças armadas russas foram completamente apanhadas de surpresa. Não estavam a contar ser atacadas em Kursk. Esta operação ucraniana estava muito bem planeada e foi bem preparada. O ataque foi coordenado e as tropas ucranianas fazem-se acompanhar de sistemas antiaéreos. A Ucrânia já abateu, pelo menos, dois helicópteros, um Ka-52 e um Mi-8. A ação de drones é intensa”, explica o major-general Agostinho Costa.
A situação, mais séria do que inicialmente Moscovo previa, motivou mesmo uma reunião de emergência no Kremlin, com a presença de Vladimir Putin, o ministro da Defesa, Andrey Belousov, e o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Valery Gerasimov. O resultado foi o decretar do estado de emergência na região para travar os “mais de 300 soldados” apoiados por, pelo menos, 11 carros de combate e 20 veículos blindados que a Rússia diz terem entrado em território russo. Dessa incursão resultou a captura de várias localidades.
A fronteira russa, defendida de forma dispersa por um misto de unidades de serviços de fronteiras, unidades do Serviço Federal de Segurança (FSB) e por militares russos, não estava pronta para a velocidade da operação ucraniana. Em poucas horas, carros blindados ucranianos fintavam as localidades de Korenevo e Sudzha e empurravam a linha da frente para mais de 10 quilómetros no interior do território russo, perto de um dos principais centros de transmissão de gás natural russo.
Apanhadas de surpresa, as forças russas na linha da frente não foram capazes de montar uma defesa capaz e dezenas de militares russos foram capturados pelas forças ucranianas. Várias unidades militares ucranianas apressaram-se a publicar nas redes sociais as imagens captadas por drones de soldados ucranianos a reunir e capturar um número significativo de militares russos.
There are several images and videos of dozens of Russian soldiers being captured by Ukrainian Forces 🇺🇦 in the Kursk Region of Russia in the past two days
— Ukraine Battle Map (@ukraine_map) August 7, 2024
Well over 100 Russian soldiers are reported to have surrender in Kursk pic.twitter.com/WcT7Coftab
A Rússia, por seu lado, apesar de admitir que a situação é “difícil”, garante que já infligiu 315 baixas à Ucrânia - entre mortos e feridos -, embora reforce que “apenas” 300 soldados ucranianos invadiram Kursk. Do mesmo modo, o alto comando russo diz ter destruído 50 veículos, um número superior aos 31 que garante estarem a ser utilizados por Kiev. Os combates continuaram na noite de quarta-feira.
Mas o propósito por detrás do ataque permanece um mistério. Vários analistas têm questionado a pertinência destes ataques, numa altura em que a falta de militares no leste do país tem vindo a fazer com que a Rússia tenha conseguido ganhar território a um ritmo que não era visto desde o primeiro ano da guerra. A situação é particularmente complicada nos setores de Pokrovsk e de Chasiv Yar.
“Analisando o plano táctico, esta operação é um sucesso. Mas se olharmos para esta guerra como um todo, não me parece boa altura tendo em conta o que se passa no Donbass. A zona mais crítica é Pokrovsk, que é o centro logístico do Donbass e que pode provocar o colapso da frente”, considera Agostinho Costa.
Na última semana, o exército russo avançou 15 quilómetros na região de Pokrovsk e nos arredores de Toretsk. Ao mesmo tempo, soldados russos ocuparam algumas partes do leste da cidade de Chasiv Yar, uma cidade que ocupa uma região geograficamente favorável e que é vista como a principal defesa da região do Donbass, depois da queda de Bakhmut e de Advdiivka. A queda destas cidades colocaria os bastiões de Kostyantynivka, Druzhkivka, Kramatorsk e Slovyansk na linha da frente.
A situação deve-se a uma combinação mortífera de fatores. Devido à dificuldade da liderança política em encontrar um consenso para aprovar uma nova lei de mobilização, várias unidades das forças armadas ucranianas estão a relatar uma severa falta de soldados. O documento, aprovado em abril, promete resolver estes problemas, mas os seus efeitos só devem ser sentidos no final deste verão. Além disso, a liderança militar não foi capaz de fortificar o terreno à velocidade necessária e as unidades militares na linha da frente estão a ressentir-se.
Mas para saber qual o intuito do ataque é preciso perceber qual a dimensão do mesmo. A Rússia mobilizou 30 mil militares para a operação em Kharkiv, que teve como objetivo obrigar a Ucrânia a desviar recursos da frente de batalha para estancar os avanços de Moscovo nos arredores da sua segunda maior cidade. Para já, pouco se sabe quanto à dimensão do ataque em Kursk e ao número de unidades utilizadas. Sabe-se apenas que a 22.ª brigada mecanizada está envolvida, embora não seja claro que esta esteja a utilizar todas as suas unidades.
Para os especialistas, os próximos dias serão cruciais para perceber as verdadeiras intenções de Kiev. A Ucrânia pode reforçar as ações ofensivas na região e obrigar a Rússia a deslocar mais unidades de outras partes da frente de batalha para recuperar esta região, mas também pode utilizar esta ofensiva como ação para distrair as forças armadas russas para a verdadeira ofensiva, focada noutro ponto da frente.
“Os indicadores falam de que isto é apenas o primeiro nível da ofensiva ucraniana. É provável que a Ucrânia reitere esforços. Não é expectável que a Ucrânia faça uma ofensiva na Rússia para capturar território russo, parece-me que há vontade de desequilibrar o dispositivo russo. Mas pode também ser um ataque de apoio a uma outra ofensiva que ainda estamos para ver”, alerta Agostinho Costa.