Hostomel: a batalha que permitiu à Ucrânia sobreviver

18 nov, 22:00
Soldado ucraniano olha para o destruído Antonov An-225 (Celestino Arce/NurPhoto via Getty Images)

MIL DIAS DE GUERRA || Vitalii Rudenko não sabia, mas ele e os seus homens estavam prestes a salvar a Ucrânia. Com apenas 120 soldados ao seu comando, o militar ucraniano da Guarda Nacional estava pronto a ser atirado para o epicentro de uma operação tão ambiciosa que fez lembrar os tempos da União Soviética e até da Segunda Guerra Mundial. A CNN Portugal escolheu sete batalhas que vai recontar ao longo da semana

A guerra parecia inevitável. Um pouco por toda a fronteira, de norte a sul, os sinais que surgiam eram preocupantes. Milhares de soldados, carros de combate, aviões e até hospitais de campanha com vastas reservas de sangue estavam a acumular-se. O mundo ainda não sabia o que o Kremlin há muito tinha decidido: a Ucrânia tinha de cair.

Os generais de Vladimir Putin planearam as movimentações até ao mais ínfimo detalhe. Surpresa, velocidade e força eram a receita que ia fazer com que o exército ucraniano colapsasse. Para Kiev, "a mãe das cidades russas", estava preparado algo especial, um ataque relâmpago com forças especiais contra o aeroporto Antonov, nos arredores da capital. Se tudo corresse como planeado e a pista fosse tomada, milhares de militares russos que atravessavam a fronteira com a Bielorrússia lançariam um ataque contra a capital ucraniana, utilizando este aeroporto como base de apoio logístico para fazer chegar reforços e mais meios. Daí, as tropas russas iriam atacar Kiev e capturar a liderança ucraniana.

Também conhecido como Hostomel, este aeródromo, a pouco mais de dez quilómetros da capital, era ideal para o plano russo. A longa pista construída para aguentar com o maior avião de carga do mundo, o Antonov Na-225, fez com que esta estrutura fosse utilizada como o principal aeroporto de carga da capital ucraniana. Era o local é perfeito para quem quisesse fazer chegar milhares de toneladas de equipamento militar em poucas horas.

No seu caminho estavam apenas Vitalii Rudenko e os seus 120 soldados. Uma semana antes da invasão russa, o então líder do exército ucraniano, Valerii Zaluzhnyi, tinha ordenado que esta unidade da Guarda Nacional, composta por militares conscritos inexperientes, se instalasse no aeroporto para a possibilidade de ter de o defender, caso uma invasão russa viesse mesmo a acontecer. O general ucraniano pressentia que a guerra era inevitável e retirou da unidade de Rudenko os homens mais experientes e destacou-os no Donbass, onde julgou estar a ser preparado o ataque principal do exército russo.

Do outro lado da fronteira, na Bielorrússia, as forças russas acumulavam meios para o ataque. Dezenas de helicópteros de combate e de transporte preparavam-se para a derradeira missão: fazer chegar a Hostomel 300 paraquedistas da 31.ª Brigada de Guardas de Assalto Aéreo e uma unidade da 45.ª Brigada de Spetsnaz, as forças especiais russas, onde tinham como missão eliminar qualquer resistência e controlar todo o perímetro do aeroporto, para permitir o reforço. Tropas de elite do exército russo, algumas das mais bem treinadas, equipadas e temidas. Além de gozarem de um enorme prestígio entre militares, eram também dos soldados mais bem pagos e motivados das forças armadas russas.

Durante as primeiras horas da manhã, as unidades aerotransportadas atravessam a fronteira ucraniana a baixa altitude, de forma a evitar serem detetadas pelos sistemas de defesa antiaérea que protegiam a capital. As aeronaves seguem o curso do rio Dnipro, em direção a Kiev, até chegar à barragem da central hidroelétrica de Kiev. Aqui, as unidades russas cortam para oeste, em direção ao aeroporto, mas acabaram por ser detetadas pelas forças ucranianas e sofrer as primeiras baixas, com dois helicópteros abatidos. Era preciso ajustar a estratégia. São os primeiros vestígios de que, para os generais, as primeiras vítimas da guerra são sempre os seus planos.

A norte da pista estão 20 militares ucranianos que contam com uma arma antiaérea ZU-23-3. Estes soldados eram responsáveis pela maioria da defesa aérea da base. Nas primeiras horas da manhã são acordados pelo comandante com a notícia que não queriam ouvir. Os russos estavam a caminho e eles era o seu alvo. Cientes da utilidade que a conquista de Hostomel teria para a Rússia, estes militares estacionaram dezenas de veículos ao longo da pista, de forma a impedir que a Rússia pudesse aterrar qualquer aeronave pesada.

Juntos aos edifícios administrativos do aeroporto estão os restantes 180 militares liderados por Vitalii Rudenko. Só que o seu equipamento era demasiado ligeiro para defender Hostomel contra um ataque de grande dimensão. A vantagem numérica russa era de 3 para 1 e os ucranianos tinham apenas metralhadoras ligeiras e algumas armas antiaéreas portáteis, como os sistemas 9K38 IGLA. O inimigo tinha vários helicópteros equipados com mísseis e metralhadoras pesadas.

Às 11:00, as primeiras explosões começam a chegar a Hostomel. Os helicópteros russos dividem-se em dois grupos, com as aeronaves de ataque Ka-52 a voarem em direção à ponta da pista para neutralizar a arma antiaérea. Uma destas aeronaves de ataque é atingida por um míssil antiaéreo ucraniano enquanto se dirige para a pista e acaba por se despenhar no meio da pista do aeródromo de Hostomel. Este viria a ser o destino de pelo menos mais três Ka-52.

A pressão russa foi imensa. Os soldados inexperientes defendiam a pista como podiam, mas os meios que tinham ao seu dispor não eram capazes de travar o poderio russo. Os primeiros paraquedistas russos acabam por conseguir aterrar a norte da pista e obrigam a guarnição de 20 militares ucranianos que defendem este setor a render-se.

Com o norte da pista limpo, as forças russas continuam a fazer descer os paraquedistas na pista, identificados com uma fita laranja e preta - as cores de São Jorge. Assim que as forças russas se reagrupam, não perdem tempo em lançar um ataque contra os edifícios administrativos do aeroporto, onde estava a maior parte da guarnição ucraniana.

Sem capacidade de fazer frente ao poder de fogo russo, as tropas ucranianas foram obrigadas a abandonar as suas posições depois de duas horas de combate, recuando para o abrigo de vários prédios habitacionais na região. As tropas de elite russas hasteiam a bandeira no aeroporto, mas o combate não ia ficar por aqui.

Nesse preciso momento, 18 aviões de transporte de grandes dimensões IL-76 levantam voo em Pskov, na Rússia. A bordo seguiam mil militares russos. A sua missão era render os paraquedistas russos e expandir o perímetro do aeroporto. Só que, ao mesmo tempo que os reforços russos descolavam, o comando militar ucraniano começava a compreender a ameaça da queda de Hostomel.

O general ucraniano Valerii Zaluzhnyi organizou um contra-ataque imediato, ordenando a elementos da 72.ª Brigada Mecanizada, localizada em Kiev, e da 4.ª Brigada de Intervenção Rápida, para avançarem em direção a Hostomel. Ao contrário da unidade da Guarda Nacional, liderada por Vitalii Rudenko, a 72.ª Brigada tinha ao seu dispor equipamento pesado, particularmente artilharia e alguns veículos blindados.

Chegados a Hostomel, as forças ucranianas não perderam tempo. As unidades de artilharia iniciaram o bombardeamento da pista, tornando-a inoperacional, obrigando as unidades militares russas que vinham de Pskov a cancelar o voo com mil militares e a aterrar de emergência na Bielorrússia.

Por volta das 15:30, o próprio presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, afirma que as forças ucranianas cercaram o aeroporto. Pouco depois, a batalha começa. Apoiados por alguns elementos da Força Aérea que sobreviveram à primeira campanha de bombardeamentos russa, os militares ucranianos causam pesadas baixas nos paraquedistas russos, que são obrigados a recuar. Por fim, as forças ucranianas reconquistam o aeroporto.

Mas na manhã seguinte chegam os reforços russos. A coluna de veículos blindados do exército russo que atravessou a fronteira vindo da Bielorrússia conseguiu quebrar as defesas ucranianas mais a norte, apesar de sofrer várias emboscadas pelo caminho. Ao mesmo tempo, as forças russas lançaram uma nova ofensiva aerotransportada contra o aeroporto, obrigando as forças ucranianas a recuar, mas não sem antes lançar a sua própria campanha de bombardeamento contra a pista de forma a impedir a sua utilização.

Apesar de não ter dado para conseguir manter o controlo do aeroporto Antonov, o esforço dos militares ucranianos nas primeiras horas do início da guerra foi fundamental para atrasar as forças russas o suficiente para conseguir fazer chegar reforços ucranianos à região de Kiev, onde os generais ucranianos não esperavam um dia ser atacados.

Nas semanas seguintes, as forças tentaram abrir caminho em direção a Kiev, mas acabaram por ficar travados em Bucha e Irpin, onde o general Oleksandr Syrskyi montou a primeira linha de defesa da capital. No dia 1 de abril a Rússia anunciou a retirada dos seus militares desta região, passando a focar-se exclusivamente no Donbass e no sul da Ucrânia

Relacionados

Europa

Mais Europa

Patrocinados