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A falácia do pacifismo

2 mai 2022, 21:56

Em 1941 houve quem nos EUA se opusesse a apoiar a Europa e o Reino Unido na luta contra Adolf Hitler. Propunham que se fizesse “a Paz” com o ditador nazi.

Décadas decorridas, milhões de mortos depois, cidades arrasadas, regressa o mesmo discurso, substituindo-se Hitler por Putin. Contemplando a cinza quente da destruição e a brutalidade da guerra, perante o tormento enlouquecedor dos bombardeamentos alguns tolhem-se. Gela-se-lhes o sangue perante a ameaça nuclear. A esse propósito quero partilhar algumas reflexões.

Começo com Marguerite Duras e a sua passagem do infinitivo para o condicional e depois para o conjuntivo, “escrever é tentar descobrir o que escreveríamos se escrevêssemos”. Pôr-se no lugar do Outro, ou seja, viver esse lugar, é tentar descobrir como viveríamos se vivêssemos. No fundo, a verdadeira questão de princípio na atual guerra na Ucrânia não é a de se devemos armar e apoiar a Ucrânia ou se devemos reforçar os nossos orçamentos militares. A verdadeira questão é: quem queremos ser e como queremos viver. Com medo ou com dignidade?

Há guerras que os manuais de história não registam. A luta para preservar a dignidade face a esbirros ao serviço de um czar possuído por uma obsessão megalómana não pode ser uma delas.

O que se passou com a Ucrânia é o equivalente estatal a uma violação pelo ex-marido ou companheiro, com a ameaça de destruição caso a vítima se defenda. Argumento absurdo e obsceno, à medida que vamos conhecendo dia após dia que meninas e mulheres ucranianas têm sido violadas. E que os testemunhos delas arranham na rocha dura da indiferença de alguns.

À Ucrânia está a ser dito: “Querida, entrega-te ou ele mata-te e mata as nossas famílias”. A preocupação não é o bem-estar da Ucrânia, das mulheres e meninas ucranianas, dos homens e rapazes ucranianos, dos idosos ucranianos, mas o medo e a cobardia próprios.

Não nos esqueçamos que, desde o início, a liderança russa definiu esta como uma guerra contra o Ocidente. Estamos marcados com o apontador vermelho do sniper, mesmo que nos deitemos de barriga para cima como um cachorrinho medroso à espera de conforto, ou por mais apaziguamento que se tente.

Anna Akhmátova escreveu um verso triste e indelével “agora sei como é que a dor traça as rudes páginas cuneiformes na face”. A poeta escreveu sobre as filas de mulheres em frente a prisão de Leningrado e conheceu na primeira pessoa o sofrimento: o primeiro marido foi fuzilado, o segundo morreu no Gulag, o filho passou dez anos na prisão. A pele de Anna não é apenas uma metáfora. Calar-se em público, escreveu o filósofo Demócrito, defensor da democracia e da liberdade e tão subversivo em tantos aspetos do seu pensamento, era “o melhor adorno feminino”. Na democracia ateniense, a palavra pública pertencia apenas aos homens. Como dizia o protagonista de Sim, Senhor Ministro: “Temos de escolher o melhor para o cargo, à margem do seu sexo”. Apesar da história da Literatura começar de forma inesperada – o primeiro autor do mundo a assinar um texto com o seu próprio nome é uma mulher, a poeta e princesa Enheduanna, que o fez mil e quinhentos anos antes de Homero – as mulheres foram apagadas da literatura, da política, dos assuntos militares. “Eu afirmo que alguém se lembrará de todas nós”, escreveu Safo. Trinta séculos depois quero dar razão à poetisa grega. E falar mulheres e com elas falar num povo.

É curioso que, tantos séculos depois de Heródoto ter escrito a sua obra, esta comece de forma atualíssima: a falar de guerra, de diferentes versões sobre os mesmos acontecimentos, de factos alternativos e de mulheres convertidas em mercadorias, vítimas de vingança, despojos de guerra. Muitos séculos mais tarde, o filósofo Emanuel Levinas, judeu, sobrevivente da Shoah e que perdeu toda a sua família em Auschwitz, escreveria: “O meu acolhimento do outro é facto decisivo através do qual as coisas se iluminam”. É ao contemplarmos o Outro que definimos quem somos.

É humano dizer-se que se tem medo da própria coragem, é legítimo dizer que antes cobarde e vivo do que corajoso e morto. O que não se deve confundir é “pacifismo” com o que é uma kòutóu (vocábulo chinês para uma vénia de joelhos desonrosa para quem a efetua) perante o direito do mais forte, ou exigir a capitulação de um povo para apaziguar o medo de sermos nós os próximos. “Como nós não sabemos exatamente o que a Rússia entende como declaração de guerra, decidi hoje não pôr a louça na máquina”, o tweet irónico-absurdo de Sascha Lobo remete-me para a minha questão inicial: como queremos viver? A que acrescento: como queremos morrer?

Na nossa geografia confortável não estamos habituados a lidar com fanáticos. Muitos pensam que bastam boas palavras e um livro de cheques para resolver a situação. Putin desiludiu-os a todos, não quer negociar, quer a vitória total. Quem sofre da síndrome de Heróstato – quando foi torturado, confessou ter incendiado o mais belo edifício do mundo, o Templo de Artemísia, para ficar para a história – não se importa de ver o seu nome amaldiçoado, ri-se dos que brandem a Realpolitik, faz scroll sem se deter nos acordos e propostas de acordos.

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