Há mais um míssil russo: o 9M729 foi usado 23 vezes. Esta é uma história longa com o propósito único de pressionar a Europa

31 out, 20:19
Míssil 9M729 (AP)

Este foi o míssil que fez os Estados Unidos desistirem do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário em 2019. Contudo, o início de tudo remonta à Guerra Fria e envolve os Tomahawks norte-americanos

Depois do supertorpedo Status-6 Poseidon e do míssil de propulsão nuclear 9M730 Burevestnik, o míssil cruzeiro 9M729 - também referido pela NATO como SSC-8 - é a mais recente arma russa a ganhar destaque na imprensa ocidental.

Num exclusivo da Reuters publicado esta sexta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Andrii Sybiha, denunciou que a Rússia já atingiu a Ucrânia com 23 mísseis 9M729 desde agosto. Neste momento deve estar a pensar porque é que este míssil de alcance intermédio e sem uma propulsão nuclear é relevante depois dos testes do Poseidon e Burevestnik? A explicação prende-se, sobretudo, por este ser o míssil que fez com que Trump, ainda no seu primeiro mandato como presidente dos EUA, ordenasse a saída do INF - Intermediate-Range Nuclear Forces Treaty (Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, em português).

“Os comentários de Andrii Sybiha são a primeira confirmação de que a Rússia utilizou o míssil 9M729 em combate - na Ucrânia ou em qualquer outro lugar”, destaca a Reuters, que dá ainda conta que uma fonte anónima adiantou ainda que estes mísseis já atacaram solo ucraniano 23 vezes, sendo que em 2022 a Ucrânia só tinha identificado dois ataques com este tipo de míssil.

O major-general Agostinho Costa explica que, de modo simplista, este míssil é uma "adaptação de um míssil naval para míssil terrestre". O militar experiente refere que o que Moscovo está a fazer é a "pegar num míssil de cruzeiro Kalibr que é lançado a partir de plataformas navais em navios e está a colocá-los em plataformas terrestres". "A Ucrânia tem a mesma capacidade para destruir os 9M729 que para destruir os outros mísseis de cruzeiro, mas é muito mais fácil e seguro para os russos lançarem um míssil a partir do seu território do que a partir do Mar Negro, confere maior sobrevivência ao ponto de lançamento", destaca.

"Este sistema é muito recente e é normal que tenha sido testado na Ucrânia. Não me admira nada, porque a Ucrânia é num laboratório de experimentação militar", diz o major-general Agostinho Costa.

Apresentação do míssil 9M729 em Kubinka, Moscovo, a 23 de janeiro de 2019. (Fonte: AP)

O que é afinal o 9M729?

O 9M729 é um míssil de cruzeiro lançado a partir do solo e com um alcance de até 2.500 km, especifica o site Missile Threat, produzido pelo Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington. Tem entre seis e oito metros de comprimento, 514 milímetros de diâmetro, transporta uma ogiva única de 450 kg (que pode ser convencional ou nuclear) e é produzido pela empresa russa NPO Novator. A NATO começou por o apelidar de SSC-X-8, sendo que deixou cair o "X" assim que o deixou de ser uma arma experimental e passou a ser operacional.

Se ainda tem dúvidas sobre o que pode ou não pode transportar, o major-general Agostinho Costa simplifica: "Neste momento, qualquer coisa que voa acima de 155 milímetros de calibre, lançado de um tubo de artilharia ou de um míssil, pode transportar uma ogiva nuclear. Isso é indiscutível".

A Rússia deu início ao desenvolvimento deste míssil nos anos 2000 e começou com os testes de voo em 2008. O ainda protótipo foi testado pela primeira vez em julho de 2014 e, posteriormente, no dia 2 de setembro de 2015. Em ambas as ocasiões, tanto Washington como Moscovo reconheceram que o míssil não voou além dos 500 quilómetros como estipulado pelo ainda em vigor INF.

Este míssil não é uma novidade soberba, mas sim, de modo altamente resumido, uma modificação de um míssil 3M-54 Kalibr da Marinha Russa. A adaptação faz com que este míssil possa ser lançado do solo e não do mar, sendo que este é um detalhe que pode levantar preocupações tanto para a Ucrânia como para a Europa.

Acerca deste míssil, existe ainda uma linha temporal sobre como a NATO foi reagindo progressivamente ao seu surgimento: 

  • Janeiro de 2014: EUA informa aliados da NATO sobre um míssil russo que violava as regras do INF com alcance de 500 a 5.500 quilómetros.
  • Novembro de 2016: EUA solicitam a formação de uma comissão especial de verificação para lidar com a alegada violação do Tratado INF pela Rússia. Moscovo argumenta que o SSC-8 não violou os princípios do Tratado INF, e a comissão não avança.
  • Novembro de 2017: EUA respondem ao SSC-8 com o desenvolvimento de seu próprio míssil terrestre de alcance intermediário.
  • Outubro de 2018: Trump anuncia que EUA estão a ponderar abandonar o INF devido às violações russas.
  • Janeiro de 2019: Rússia exibe publicamente o míssil SSC-8 pela primeira vez.
  • 2022: Ucrânia denuncia dois lançamentos de SSC-8
  • Outubro de 2025: Reuters noticia 23 lançamentos de SSC-8 em cerca de três meses na Ucrânia

O Ministério da Defesa da Rússia ainda não quis comentar o tema.

Agostinho Costa lembra que, perante os avanços tecnológicos russos, também os EUA começaram a desenvolver o sistema Typhon (vídeo abaixo), "que não é mais do que a colocação numa plataforma terrestre dos mísseis BGM-109 Tomahawk". O major-general recorda, aliás, que os Tomahawk, quando foram idealizados, era para serem lançados de plataformas terrestres e que de certo modo estão ligados à criação do INF, porque a Rússia acabou por responder com uma criação semelhante - os mísseis SS-20 - e, perante tudo isto, "houve uma pressão europeia contra o perigo de uma guerra nuclear tática na Europa".

A 5 de outubro, míssil 9M729 percorreu 1.200 km antes de atingir a Ucrânia

A fonte anónima da Reuters garante ainda que um 9M729, disparado a 5 de outubro, percorreu 1.200 quilómetros, violando as regras do INF que estipulava um limite de alcance máximo de 500 quilómetros.

O uso do míssil 9M729 amplia o arsenal russo de armas de médio e longo alcance para atacar a Ucrânia. Para além disso, encaixa no padrão de Moscovo de enviar "recados" à Europa enquanto Trump tenta um acordo de paz.

"Putin está a tentar aumentar a pressão como parte das negociações com a Ucrânia", aponta à Reuters William Alberque, investigador sénior associado do think tank Pacific Forum, realçando, mais uma vez, que o míssil 9M729 foi, desde início, projetado com apenas um propósito: atingir alvos na Europa.

Agostinho Costa concorda, porque "um míssil, sendo lançado do mar, tem de percorrer distâncias muito maiores". "O INF destinava-se a tirar pressão à Europa e sobre a frente europeia, era um acordo da Guerra Fria", explica o major-general. Agora, o que Putin está a fazer é precisamente o oposto e a tentar incrementar a pressão sobre a União Europeia.

O míssil 9M729 é intercetável, mas é muito fácil e seguro para os russos lançarem um míssil destes a partir do seu território. (Fonte: AP)

Na semana passada, a Rússia testou o míssil cruzeiro Burevestnik, movido a energia nuclear e, na quarta-feira, anunciou um um lançamento do torpedo também movido a energia nuclear, Poseidon.

"Caso se prove que a Rússia está a usar mísseis de alcance intermédio, que podem facilmente ser nucleares, na Ucrânia, então esta é uma questão de segurança para a Europa, não apenas para a Ucrânia", destaca à Reuters John Foreman, ex-adido britânico em Moscovo e Kiev.

A Reuters acrescenta ainda que analisou as imagens dos destroços do ataque russo de 5 de outubro, em que um prédio residencial foi atingido e quatro pessoas morreram na vila ucraniana de Lapaiivka, a mais de 600 quilómetros do território russo. Os registos mostram que dois fragmentos de míssil, incluindo um tubo contendo cabos, estavam marcados com a designação 9M729.

"Isso dá-lhes trajetórias de ataque ligeiramente diferentes, o que é difícil para as defesas aéreas, e aumenta o número de mísseis disponíveis para os russos", refere Lewis, investigador de segurança global no Middlebury College e membro da equipa que analisou as imagens.

Agora, qual é a diferença entre um míssil ser lançado do mar ou do solo? O tratado INF não proibia mísseis com alcances superiores a 500 quilómetros, mas que fossem lançados do mar. A ideia subjacente ao acordo é que os mísseis lançados do solo têm lançadores que são móveis e relativamente fáceis de ocultar, logo representam uma ameaça maior.

Douglas Barrie, investigador sénior em assuntos aeroespaciais militares do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, destaca ainda que a Rússia, ao usar o 9M729 para realizar ataques lançados do solo, pode passar a fazê-lo a partir de locais mais seguros no interior do país.

No plano teórico, só faltava à Rússia testar este armamento num ambiente real de campo de batalha na Ucrânia... escrevemos "faltava" porque 23 lançamentos já implicam uma finalidade militar, tal como refere Douglas Barrie.

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