opinião
Embaixador e Comentador da CNN Portugal

Uma estratégia russa

27 jun 2022, 13:40

“The recognition of the Donetsk People’s Republic (DPR) by other countries is just an interim stage while it is more important for the Donbass republics to get integrated into Russia, Chairman of the DPR Public Chamber Alexander Kofman told TASS on Sunday.” (O reconhecimento da República Popular de Donetsk (RPD) por outros países é apenas um estádio intermédio, dado que o mais importante para as repúblicas do Donbass é serem integradas na Rússia, disse à Tass, neste domingo, o presidente da Assembleia Pública da RPD, Alexander Kofman).

Em fevereiro último, antes da invasão da Ucrânia, durante uma reunião do Conselho de Segurança da Federação Russa, transmitida pelas televisões, o mundo teve oportunidade de assistir a uma intervenção de um dignitário do regime que, num evidente lapso, disse estar de acordo com a integração das repúblicas de Donetsk e Luhansk na Federação Russa. Putin, com humilhante veemência, interrompeu-o, dizendo que essa não era a questão que ali estava a ser discutida. E não era: na ocasião, tratava-se apenas de decidir se a Rússia iria reconhecer, como Estado, essas auto-denominadas repúblicas, aproveitando a luz verde para tal, que dias antes fora dada pela Duma (parlamento). A personalidade que interveio tinha-se precipitado, mas o que disse era algo bem revelador.

A questão tem algum tempo e Moscovo não tem seguido um percurso linear para atingir o que lhe importa.

Em 2008, na sequência da tentativa do governo da Geórgia de retomar a soberania sobre as regiões secessionistas da Abcásia (separada desde 1993) e da Ossétia do Sul (separada desde 1991), a Federação Russa interveio militarmente em favor do poder “de facto” existente em ambas e decidiu reconhecê-las, no seu auto-atribuído estatuto de Estados independentes. O argumento foi o de que as populações russas, que, maioritariamente, viviam nesses territórios, estavam a ser atacadas ou ameaçadas. Desde então, a Ossétia do Sul, que só a Rússia e um número ínfimo de países reconhece, tem vindo a adiar a convocação de um referendo interno para a integração plena na Federação Russa. Não há ainda nota de idêntica intenção por parte da Abcásia, que vive sob um reconhecimento internacional análogo, mas a forte tutela russa sobre esse “Estado” é muito evidente e há a convicção de que, acaso a Ossétia do Sul faça o esperado pedido para se integrar na Rússia, os abcazes procederão de forma idêntica.

Em 2014, duas regiões no Donbass, no Leste da Ucrânia, Donetsk e Luhansk, auto-declararam-se autónomas do controlo do governo central. O presidente do país, oriundo dessa área e da minoria russa do país, havia sido afastado por um processo político extra-constitucional que colocou no poder, em Kiev, um regime abertamente pró-ocidental e considerado  discriminatório face às populações russófonas do país. De forma mais ou menos discreta, o governo russo apoiou então (e, muito provavelmente, estimulou), com recursos materiais e humanos, essa revolta regional. Moscovo, quiçá por razões táticas, não reconheceu então essas duas “repúblicas populares”, mas deu-lhes constante apoio, a partir de então, para a guerra de baixa intensidade que elas mantiveram com o regime de Kiev.

A Rússia operou, nessa mesma altura, na península da Crimeia, um “golpe de mão”, ocupando rapidamente a região, sob a impotência militar da Ucrânia, organizando um apressado referendo para a “independência” do território, que logo pediu a sua integração na Federação Russa.

Já neste ano de 2022, pretextando não ter sido concluída a autodeterminação regional prevista no Acordo de Minsk (para a regulação político-constitucional entre Luhansk e Donetsk e o poder central em Kiev, negociado em 2014/2015, sob mediação franco-alemã) e tendo-se tornado iminentes, na perspetiva de Moscovo, as ameaças às populações russas no Donbass, que correriam o risco “genocídio”, a Rússia invadiu militarmente a Ucrânia, a “convite” desses dois “Estados”, que entretanto, rapidamente reconheceu como ”Estados independentes”.

Agora, olhando o decurso da guerra e modo como ela está a decorrer, pode prever-se que um processo similar venha a suceder futuramente à região meridional de Kherson (uma das primeiras a serem ocupadas em fevereiro, ao que se julga pela importância de assegurar o abastecimento de água à Crimeia e facilitar o respetivo acesso russo por terra, garantido com a tomada de Mariupol). As medidas de russificação em curso, desde o uso do rublo à internet e à expansão dos media russos, apontam nesse sentido.

Numa perspetiva maximalista, se o avanço russo no sul da Ucrânia, para ocidente, conseguir chegar à fronteira moldava, é mais do que provável que a comunidade russa na Transnístria (zona separatista da Moldova, que dá regulares sinais no sentido de querer ligar-se institucionalmente a Moscovo) venha a pedir à Duma russa o seu reconhecimento (como sucedeu com as duas repúblicas do Donbass) e assim se inicie o processo para a respetiva integração na Federação Russa.

A declaração com que iniciei este texto vem dar corpo, em absoluto, àquilo que se tem ouvido de Vladimir  Putin, desde as semanas que antecederam esta guerra. A doutrina parece cristalina: as áreas da antiga União Soviética onde vivam cidadãos russos ou pertencentes a comunidades étnico-linguísticas russas, que tenham dificuldade de afirmação dos seus interesses específicos enquanto comunidade, no contexto dos novos países de que passaram a fazer parte, são vistas pela Rússia como fazendo parte da sua esfera de legítima tutela. A Rússia estimula a expressão “nacional” e a pulsão autonomista dessas comunidades, dá-lhes o rótulo de “repúblicas” e, num derradeiro passo, acabará por integrá-las na Federação Russa, estendendo-lhes depois a proteção, em especial em matéria de segurança, que lhes será conferida pela soberania russa.

No limite, e no futuro, podemos interrogar-nos sobre se quaisquer atos de natureza militar que venham a ser empreendidos por parte dos governos dos países de que se cindiram (Geórgia, Ucrânia e Moldova), para recuperação da soberania que lhes é reconhecida pela ONU e pelo Direito Internacional, não serão interpretados por Moscovo como ações de agressão militar contra a Rússia e o seu território, com todas as consequências que daí podem derivar, em termos de resposta defensiva.

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