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A solidão da Rússia

3 mar 2022, 09:50

Vladimir Putin fez um evidente erro de cálculo. O mundo ocidental pode ter sido co-responsável nesse erro ao ter, muito cedo, deixado claro que a ajuda ao governo da Ucrânia e a fixação de um pacote de rigorosas sanções seriam o limite máximo da sua reação

Embora parecesse óbvio que os países da NATO não se disporiam a operar militarmente, no quadro da atitude a tomar perante uma possível invasão, atento o facto de, do outro lado, estar um poder nuclear, o “destrunfar” demasiado cedo do ocidente, em matéria de opções, terá feito com que o Kremlin pensasse poder ter desenhado, com algum rigor, os limites daquela que seria resposta americana e europeia. Daí o relativo à vontade com que a intervenção teve lugar.

Podemos especular sobre se as sanções não terão sido o fator mais equívoco neste contraste de perceções entre o ocidente e a Rússia. 

Do lado “de cá”, talvez houvesse a ideia de que o mundo económico russo, cuja influência junto de Putin alguns julgavam determinante, ficaria alarmado com a dimensão das retaliações que a Europa e os EUA estariam a pensar lançar e conseguiria convencer Putin a suster o seu impulso de invadir. Porém, aparentemente, o Kremlin teria uma autonomia decisória bastante menos dependente dessas influências daquela que prevalecia no passado. Deste modo, a racionalidade e bom senso esperados não viriam a confirmar-se.

Putin também terá sobrestimado, manifestamente, o que ele sabia serem as divergências existentes dentro da União Europeia, no tocante à tomada de atitudes muito drásticas em matéria de sanções, porventura acreditando que elas nunca seriam superadas, por virtude do natural e assimétrico efeito “boomerang” das medidas. Não terá contado, neste particular, com a rara indignação criada na opinião pública, em especial europeia, perante o caráter brutal da sua ação militar, flagrantemente não provocada e sem um motivo imediato compreensível. A arbitrariedade do gesto, somado à exploração pública da arrogância do líder russo, bem traduzida no nacionalismo datado que emanava da sua narrativa justificativa do conflito, criou um clamor que levou alguns governos europeus a assumir o risco de forçarem os seus setores económicos e financeiros a suportarem os custos decorrentes das sanções. A exclusão dos operadores russos do sistema Swift terá sido uma decisão limite com que Moscovo não contava, embora, com o decurso dos dias, a suspensão do Nordstream 2 já não devesse constituir uma surpresa.

A determinação - e, em especial, a unidade nessa determinação - do mundo ocidental em agir com rapidez, somada, de forma contrastante, a um arrastar da situação militar no terreno, que pode não ter feito parte dos cálculos russos, acabou por criar um ambiente de profunda e arrastada acrimónia contra a Rússia. Agora, com a espetacularidade das imagens da destruição, tudo piorará, dia após dia.

Constata-se que, quando os EUA e Europa se juntam numa ação conjunta, nela colocando todo o seu peso político e económico, se torna muito difícil à generalidade do mundo que com esses dois espaços tem uma forte ligação comercial, financeira e mesmo técnica, fugir a com ele ser solidário. A “bola de neve”, em termos de alinhamento, terá surpreendido os mais otimistas, com o caso da Suíça, ao quebrar a sua neutralidade quase identitária, a ser o exemplo mais flagrante do excecional poder dessa onda de influência.

O tal clamor, como é de regra nestas ocasiões, transfere para a “impotência” das Nações Unidas a sua indignação. Ora é sabido que a ONU, pela sua própria natureza, numa crise em que um dos membros permanentes do Conselho de Segurança esteja envolvido, quase fica sem capacidade de resposta. Foi, assim, sem surpresa que a Rússia, ironicamente e por mero acaso, a presidir àquele Conselho, fez abortar uma condenação da sua ação no território da Ucrânia. Levar a questão para a Assembleia Geral, utilizando um procedimento raro, era, na conjuntura, uma escapatória possível, embora se sabendo dos limites desse mesmo procedimento. Porém, o que aí aconteceu, uma vez mais, excedeu as expetativas.

A votação da condenação da Rússia na Assembleia Geral da ONU, pela sua expressão quantitativa, foi um bom barómetro do extraordinário isolamento em que a Rússia hoje se encontra. Não apenas o elevadíssimo número de Estados que alinharam contra a posição de Moscovo, mas igualmente algumas abstenções inesperadas (que não a da China, que tem mostrado uma espécie de “neutralidade colaborante”), terão feito perceber à Rússia que é quase esmagadora a reprovação da sua ação contra o governo ucraniano. Agora, Putin só pode recorrer ao argumento do “orgulhosamente só”, para nos mantermos no léxico que diz algo a memória da ação externa de outra ditadura que melhor conhecemos.

A Rússia não é a União Soviética. Na sua limitada, mas que era crescente, ação externa pelo mundo, Moscovo já não transportava um qualquer proselitismo doutrinário, como aquele que o comunismo representava. A Rússia estava agora a ser mais pragmática, procurando reforçar poderes autoritários em dificuldade, com ganhos materiais ou de proteção de interesses. Contudo, se olharmos para as últimas décadas, ficava evidente que a influência russa estava em expansão, já não como a potência global que a URSS fora, mas como uma “potência regional” (na designação depreciativa que Obama lhe deu) com algumas ambições de expansão de influência “out of area”. Onde fica isso agora? Quanto regrediu a Rússia, em escassos dias? E em que meios económicos e financeiros, com o verdadeiro embargo a que está sujeita, pode contar no futuro para sustentar essas ambições?

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