EXCLUSIVO. Oficial russo revela como arriscou tudo para sair da guerra de Putin

CNN , Uliana Pavlova
22 mai 2022, 14:00
Tanques russos. Alexander Ermochenko/Reuters

Depois de semanas a dormir em caixotes de granadas, um oficial russo cheio de sentimentos de culpa decidiu desistir. Arriscou tudo quando se recusou a lutar.

Foi preciso passar algumas semanas a dormir em caixotes de granadas, usando-os como cama, e a esconder a cara aos ucranianos num crescente sentimento de culpa, até que este oficial subalterno russo chegou à conclusão: esta não era a sua batalha.

"Estávamos sujos e cansados. As pessoas à nossa volta estavam a morrer. Eu não queria sentir-me parte disso, mas eu fazia parte disso", conta o oficial à CNN. Foi ter com o seu comandante e renunciou à sua comissão.

A CNN não está a identificar o oficial, nem a incluir detalhes pessoais que ajudariam a identificá-lo, para sua segurança.

Eu não queria sentir-me parte disto, mas eu fazia parte disto". Oficial russo

 

A sua história é notável, mas pode também ser uma entre muitas, de acordo com opositores da guerra na Rússia e na Ucrânia que dizem ter ouvido falar de muitos casos de soldados - tanto profissionais quanto recrutados - que se recusaram a combater.

As tropas russas têm tido dificuldades com um baixo moral e pesadas perdas na Ucrânia, de acordo com avaliações de autoridades ocidentais, incluindo o Pentágono. A Agência de Inteligência, Cibernética e Segurança do Reino Unido diz que alguns até se recusaram a cumprir ordens.

O Ministério da Defesa russo não respondeu a um pedido de comentário da CNN.

Uma missão desconhecida

O oficial que conversou com a CNN disse que fazia parte do ajuntamento maciço de tropas no oeste da Rússia que desencadeou medos globais pela Ucrânia. Mas disse que não pensou muito sobre isso, mesmo em 22 de fevereiro deste ano, quando ele e o resto do seu batalhão foram, sem qualquer explicação, solicitados a entregar os seus telemóveis quando estavam estacionados em Krasnodar, no sul da Rússia.

Naquela noite, passaram horas a pintar listas brancas nos seus veículos militares. Depois, foram instruídos a lavá-los, disse. "A ordem mudou, desenhe a letra Z, como a do Zorro", lembra-se de ter ouvido.

O símbolo Z, aqui visto numa coluna de veículos militares russos, tornou-se um motivo usado na invasão da Ucrânia.

"No dia seguinte, fomos levados para a Crimeia. Para ser honesto, pensei que não iríamos para a Ucrânia. Não pensei que chegaria a isso", conta.

Enquanto a sua unidade se reunia na Crimeia – a região ucraniana anexada pela Rússia em 2014 – o presidente Vladimir Putin lançou a sua nova invasão da Ucrânia a 24 de fevereiro.

Mas segundo o oficial, ele e os seus companheiros não sabiam, pois nenhuma notícia lhes foi passada, e eles, sem telefones, estavam fora de contato com o mundo exterior.

Não fomos martelados com qualquer tipo de retórica de 'nazis ucranianos'. Muitos não entenderam o porquê daquilo tudo, nem o que estamos a fazer aqui". Oficial russo

 

Dois dias depois, eles próprio foram mandados para a Ucrânia, afirma o oficial à CNN.

"Alguns tipos recusaram-se. Escreveram um relatório e foram-se embora. Não sei o que lhes aconteceu. Eu fiquei. Não sei porquê. No dia seguinte, fomos", diz.

O oficial garante que não conhecia o objetivo da missão; que as afirmações bombásticas do presidente russo, Vladimir Putin, de que a Ucrânia era parte da Rússia e precisava de ser "desnazificada" não chegaram aos homens convocados para lutar.

"Não fomos martelados com qualquer tipo de retórica de 'nazis ucranianos'. Muitos não entenderam o porquê daquilo tudo, nem o que estamos a fazer aqui", diz.

O oficial confidencia à CNN que esperava uma solução diplomática, e que se sentia culpado por a Rússia ter invadido a Ucrânia. Mas acrescenta que não era muito versado em política.

Em conflito

A primeira coisa de que o soldado se lembra depois de a sua unidade atravessar a fronteira numa longa coluna de veículos foi ver caixas de rações russas espalhadas por toda parte e pilhas de equipamentos destruídos.

"Eu estava sentado no KAMAZ [camião], segurando uma arma firmemente encostada a mim. Tinha uma pistola e duas granadas comigo", conta.

A força seguiu para noroeste, na direção de Kherson. Ao se aproximarem de uma aldeia, um homem com um chicote saltou e começou a chicotear o comboio e a gritar: "Vocês estão todos f**idos!" lembra o oficial.

Durante a primeira semana, mais coisa menos coisa, eu estava em estado de choque. Não pensei em nada”. Oficial russo

 

"Ele quase trepou à cabine onde nós estávamos. Os seus olhos estavam lacrimejantes de tanto chorar. Isso causou-me uma impressão forte", acrescenta. "Em geral, quando víamos moradores, ficávamos tensos. Alguns escondiam armas debaixo da roupa e, quando se aproximavam, disparavam."

O oficial diz que escondia a cara por vergonha e segurança, porque se sentia envergonhado de ser visto ali por ucranianos. Na sua terra.

E conta que os russos também sofreram ataques mais pesados, com morteiros apontados a eles no segundo ou terceiro dia em que estiveram na Ucrânia.

“Durante a primeira semana, mais coisa menos coisa, eu estava em estado de choque. Não pensei em nada”, disse à CNN. "Eu apenas ia para a cama a pensar: 'Hoje é 1º de março. Amanhã eu vou acordar, será 2 de março -- o principal é viver mais um dia.' Várias vezes os projéteis caíram perto. É um milagre que nenhum de nós tenha morrido", diz.

Reações nas fileiras

O oficial assegura à CNN que não era o único soldado preocupado ou confuso quanto ao motivo de terem sido enviados para invadir a Ucrânia. Mas também se lembra de ficarem animados quando souberam que os prémios de combate seriam pagos em breve. "Alguém teve uma reação: 'Ah, mais 15 dias aqui e vou conseguir pagar o empréstimo'", relata.

Ele disse-se que poderia haver um processo criminal. Que rejeição é traição. Mas mantive-me firme”. Oficial russo

 

Depois de algumas semanas, o oficial foi posicionado mais perto da retaguarda, acompanhando equipamentos que precisavam de reparações, diz. Lá, continua, ficou também mais consciente do que estava a acontecer e teve mais tempo e energia para refletir.

"Tínhamos um recetor de rádio e podíamos ouvir as notícias", diz à CNN. "Foi assim que soube que as lojas estão a fechar na Rússia e que a economia estava a entrar em colapso. Senti-me culpado por isso. Mas senti-me ainda mais culpado por termos vindo para a Ucrânia."

A sua determinação endureceu ao ponto de restar apenas uma coisa que poderia fazer.

"No final, reuni as minhas forças e fui ao comandante para escrever uma carta de demissão", diz ele à CNN.

Ao princípio, o comandante rejeitou a abordagem e disse-lhe que era impossível recusar-se a servir.

"Ele disse-se que poderia haver um processo criminal. Que rejeição é traição. Mas mantive-me firme. Deu-me uma folha de papel e uma caneta", conta o oficial à CNN, acrescentando que escreveu a sua renúncia naquele mesmo momento.

Relatos de mais 'refuseniks'

Tem havido outros relatos na rigidamente controlada comunicação social russa de soldados a recusarem-se a lutar.

Valentina Melnikova, secretária executiva da União dos Comités de Mães dos Soldados da Rússia, disse que foram ouvidas muitas reclamações e preocupações quando as primeiras unidades saíram da Ucrânia para descansar.

"Soldados e oficiais escreveram relatórios de demissão, dizendo que não poderiam regressar com sucesso", disse ela à CNN. "As principais razões são, em primeiro lugar, o estado moral e psicológico. E a segunda razão são as convicções morais. Eles escreveram relatórios na altura e estão a escrever relatórios agora."

Melnikova, cuja organização foi formada em 1989, disse que todas as tropas têm o direito de apresentar relatórios, embora reconheçam que alguns dos comandantes podem recusá-los ou tentar intimidar os soldados.

A sua organização dá muitas vezes aconselhamento a soldados sobre como redigir esses relatórios, fornecendo aconselhamento jurídico.

A Diretoria de Inteligência da Ucrânia informou que, em várias unidades russas, especificamente na 150ª Divisão de Fuzileiros Motorizados do 8º Exército do Distrito Militar do Sul, entre 60% e 70% dos soldados estavam a recusar-se a servir. A CNN não pode verificar esse número.

Na Rússia, disse Melnikova à CNN, houve "muitos" casos de soldados que se recusaram a lutar na Ucrânia, mas recusou-se a dar detalhes, citando preocupações legais e de segurança.

Aleksei Tabalov, ativista de direitos humanos e diretor de uma organização que ajuda recrutas russos, disse à CNN que consultou pessoalmente dois soldados que se demitiram das forças armadas.

"Os mesmos tipos que se recusaram a lutar e viraram-se para nós, eram dois, mas da brigada que deixaram mais 30 pessoas recusaram-se a lutar", disse Tabalov à CNN.

Tabalov disse que, ao pedir demissão, os soldados afirmaram que não tinham concordado em participar numa operação especial contra a Ucrânia quando assinaram contrato.

Ausentar-se sem licença do exército russo é uma ofensa criminal punível com penas de prisão. No entanto, aqueles que servem sob contrato têm o direito legal de pedir demissão no prazo de 10 dias após a saída do serviço, com uma explicação quanto ao motivo da saída.

"Não posso dizer que este seja um fenómeno de massa, mas é um fenómeno muito forte. Se se estimar todos os casos de outras organizações e somar informações indiretas, o número ultrapassa os mil", disse Tabalov à CNN. E acrescentou que o recrutamento ainda está em andamento no país, e que os novos soldados geralmente vêm de regiões mais pobres com menos perspetivas.

O que vai acontecer a seguir - não sei”. Oficial russo

 

Milhares de soldados russos foram mortos na Ucrânia desde o início da guerra. As Forças Armadas da Ucrânia estimam mais de 22 mil perdas russas. A última vez que o Ministério da Defesa russo relatou perdas foi a 25 de março, relatando a morte de 1.351 militares.

O ministério não respondeu ao pedido de atualização da CNN.

O oficial que falou com a CNN está agora com sua família. " O que vai acontecer a seguir - não sei", diz. "Mas estou feliz por estar de volta a casa."

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