Falta de soldados, munições e problemas de comunicação entre unidades estão a levar a Ucrânia a perder numa área que pode partir a linha defensiva ucraniana em dois. Mas Kiev pode ter um truque debaixo da manga.
Metro a metro, quilómetro a quilómetro, as forças russas continuam a avançar na região do Donbass. Depois de largos meses de avanços muito lentos, a ofensiva de Moscovo está a ganhar velocidade e todos os olhos estão agora postos na cidade de Pokrovsk, uma cidade que funciona como quartel-general logístico da Ucrânia na zona onde ficam Lugansk e Donetsk. Da frente chegam relatos dramáticos e os especialistas alertam que, se cair, pode colocar em causa a capacidade ucraniana de reabastecer toda a frente, na região de Donetsk.
“A perda de Pokrovsk é dramática para a Ucrânia, porque cria as condições para a queda da região de Donetsk. Como é o principal centro logístico de toda a região, torna o apoio às unidades muito mais difícil. Se esta cidade cai, a Rússia fica com o caminho quase aberto para o Donbass. Seria um descalabro”, alerta o major-general Agostinho Costa, especialista em Defesa.
A cidade, que tinha uma população de 60 mil pessoas antes da invasão russa em 2022, é o principal alvo de Moscovo no curto prazo. Trata-se de um centro ferroviário e rodoviário que liga o resto do país à província de Donetsk. É a partir desta localidade estratégica que a Ucrânia recebe e distribui todo o apoio logístico para as unidades que estão na linha da frente. De acordo com o grupo de analistas de Defesa ucranianos Frontelligence Insight, a queda de Pokrovsk arrisca colocar em causa todo o apoio logístico ao exército ucraniano na região.
E os avanços de Moscovo fazem temer o pior. Depois de quatro meses de violentos confrontos, a cidade-forte de Adviivka caiu em mãos russas no dia 17 de fevereiro, os avanços russos têm acontecido a um ritmo sem precedentes. Uma após outra, várias localidades têm caído em mãos russas, com Moscovo a avançar mais de 30 quilómetros no território ucraniano. Imagens de satélite analisadas pelo grupo finlandês de investigação open-source Black Bird mostram que as tropas russas já estão a apenas oito quilómetros de Pokrovsk e muitos analistas – incluindo ucranianos – mostram-se alarmados com a velocidade a que a Ucrânia perde território.
“Honestamente, eu nunca vi nada assim. Está tudo a cair tão depressa. Pokrovsk vai cair muito mais depressa do que caiu Bakhmut”, lamenta um militar ucraniano da 93.ª Brigada Mecanizada que combateu em Bakhmut, na rede social X.
Updated map showing Ukrainian advances in Kursk oblast and Russian advances on the Pokrovsk and Toretsk fronts.https://t.co/pdiAuGJQFshttps://t.co/uxgE2ogILt https://t.co/eVJcRH4nWF pic.twitter.com/l4SJ3HDmtj
— Rob Lee (@RALee85) September 1, 2024
O cenário descrito é de “completo caos”, mas as suas causas são complexas. Durante várias semanas, analistas criticaram a incapacidade do exército ucraniano em construir posições defensivas na retaguarda de Advdiivka, para evitar um avanço rápido russo. A deputada e membro do comité de Defesa do parlamento ucraniano, Mariana Bezuhla, escreveu uma publicação no Facebook onde aponta as culpas à rotação de unidades militares na frente. A política ucraniana dá o exemplo de Novohrodivka, a sul de Pokrovsk, onde existiam fortificações construídas com qualidade, prontas para fazer frente a uma ofensiva russa, mas, quando as tropas de Moscovo chegaram, não havia ninguém a defendê-las. Estavam completamente vazias.
"As trincheiras em frente a Novohrodivka estavam vazias. Não havia praticamente nenhum exército ucraniano na cidade que chegou a ter 20 mil habitantes", revela a deputada ucraniana.
Mas há quem aponte a exaustão e falta de militares ucranianos como uma das principais causas do avanço russo. Com outras partes da frente de batalha estáveis, as forças russas concentraram nesta pequena região os seus principais recursos, colocando as tropas ucranianas numa desvantagem numérica de 4 para 1, nesta região. Com a ofensiva em Kursk, no dia 6 de agosto, a Ucrânia empregou algumas das suas principais reservas e a situação não melhorou. Apenas nas últimas três semanas, desde que começou a ofensiva em Kursk, a Rússia conquistou mais de 24 localidades ucranianas nos arredores de Pokrovsk, com pouca resistência.
“Rússia e Ucrânia estão a fazer um jogo muito parecido. A Rússia quando abriu uma nova frente em Kharkiv, pretendia forçar a Ucrânia a deslocar unidades da reserva para desguarnecer Donetsk. Quando a Ucrânia atacou Kursk, pretendia fazer exatamente o mesmo. Estão a jogar o mesmo tipo de jogo”, explica o major-general Isidro de Morais Pereira.
Russian forces recently advanced in the Pokrovsk direction amid continued offensive operations in the area on September 1.
— Institute for the Study of War (@TheStudyofWar) September 2, 2024
Geolocated footage published on September 1 indicates that Russian forces recently advanced west of Mykhailivka and within central Dolynivka (both southeast… https://t.co/BB494Ttacu pic.twitter.com/eYxuBzyQIZ
O próprio chefe do Estado-Maior das forças armadas ucranianas, Oleksandr Syrksyi, admitiu que a situação na frente de Pokrovsk era “extremamente dura”, com os russos a “lançar tudo o que têm para a batalha”, tentando furar as defesas ucranianas. Num comunicado, publicado na passada quinta-feira, o general ucraniano diz estar a trabalhar para fortalecer as defesas na região e garantir que as brigadas ucranianas têm o pessoal e o material necessário para fazer frente às ameaças.
Apesar das palavras da liderança ucraniana, os relatos de “caos” e de falta de desorganização entre unidades militares ucranianas multiplica-se. E as forças russas não estão a querer deixar escapar esta oportunidade para tentar conquistar o Donbass. Com recurso a pequenas unidades ligeiras móveis, o exército russo tenta chegar o mais longe possível até encontrar resistência ucraniana. Assim que se encontram debaixo de fogo ucraniano, as tropas russas utilizam a sua superioridade de artilharia para bombardear as posições inimigas. Os comandantes ucranianos afirmam que a Rússia tem uma superioridade de 10 para 1 em munições de artilharia. Mas nenhuma arma é tão letal como as famosas bombas planadoras KAB-1500, capazes de destruir até mesmo algumas das posições mais fortificadas.
À frente das forças russas está o líder do agrupamento central do exército russo na Ucrânia, o experiente coronel-general, Andrey Mordvichev, de 48 anos. Este militar foi responsável por algumas das principais conquistas militares russas na invasão da Ucrânia. Foi sob a sua chefia que caiu a cidade de Mariupol, nos primeiros meses da guerra, depois de um cerco que durou mais de dois meses, levando à rendição de centenas de militares ucranianos. Em 2024, conseguiu o que muitos acreditavam ser impossível e expulsou as tropas ucranianas da cidade-fortaleza de Avdiivka, que resistia aos ataques russos desde 2014.
"Mordichev é um adversário com experiência de combate e não é por acaso que é colocado aí. Face ao historial anterior dá garantias ao ministério da Defesa russo de que consegue conquistar Pokrovsk", afirma Isidro de Morais Pereira.
O think tank de Defesa Instituto para o Estudo da Guerra (ISW) acredita que os planos de Mordvichev passam por um ataque contra Myrnohrad e Hrodivka, numa tentativa de cercar os ucranianos na cidade, precipitando o seu abandono. Mas a queda de Pokrovsk não virá sem luta, apesar de estar a levar a cabo o que os especialistas militares dizem ser “uma ação retardadora”, trocando terreno pôr tempo e vidas. O general ainda tem várias brigadas de reserva e aparenta estar a preparar a localidade para o pior, ordenando a retirada da população civil.
Os próprios russos estão a estranhar a velocidade a que os avanços russos estão a acontecer. Vários bloggers militares ligados ao Kremlin tem sugerido que a Rússia pode estar a cair numa armadilha. Isto porque, no passado, mesmo quando perderam território, os militares ucranianos fizeram-no depois de apresentar uma defesa feroz, que custou perdas pesadas ao lado russo. “A defesa na direção de Pokrovsk é tão desorganizada que os próprios russos não acreditam nos seus avanços. Infelizmente, o comando superior ainda recebe relatos sobre “a situação controlada”, que está longe de ser controlada”, refere Serhii Sternenko, um ativista ucraniano.
“É muito possível que o comandante militar ucraniano esteja a criar uma armadilha aos russos. Oleksandr Syrskyi ainda tem uma força de dez brigadas em reserva operacional. Por isso é que os russos têm medo. Estão a achar estranho os ucranianos não estarem a dar um combate decisivo. Pode estar a ser planeada uma ação decisiva de contra-ataque”, sugere Isidro de Morais Pereira.
Mas essa possibilidade não demove o Kremlin. O general Mordvichev coordena dezenas de ataques em direção a Pokrovsk, mantendo a pressão sobre as tropas ucranianas exaustas. O objetivo, defende o general Isidro de Morais Pereira, é atrasar a ofensiva final até à chegada das primeiras chuvas, que tornam a utilização dos descampados impossível a veículos blindados, obrigando as forças russas a ter de utilizar as principais estradas para conduzir os ataques.
“A Ucrânia vai tentar defender-se e vender mais caro a conquista. Vai ser uma batalha tipo Bakhmut, mas, de qualquer forma, com o encurtar da distância, já começa a ter dificuldade em utilizar os hubs logísticos”, defende o tenente-general Marco Serronha.