Entrevista com Rui Madeira. “Nós também somos vítimas da guerra na Ucrânia”

José Miguel Sardo e María Piñeiro
3 jun 2022, 22:00
Rui Madeira. Fotografias de José Miguel Sardo e María Piñeiro

Desde há mais de oito anos a colaborar com diversos teatros e festivais de teatro da Ucrânia, o diretor da Companhia de Teatro de Braga não se resignou a acompanhar o conflito do longe. Com vários espetáculos anulados em cidades ocupadas ou ameaçadas pelas forças russas, Rui Madeira partilha desde há um mês a sua cena em Braga com uma dezena de artistas ucranianos sem palco. “Os Pássaros” de Aristófanes são o ponto de partida

Desde 2014, pouco antes da anexação da Crimeia pela Rússia, que Rui Madeira colabora com vários teatros nacionais e regionais da Ucrânia. Depois de ter organizado várias coproduções com o Teatro de Opereta de Kiev ou o Festival de Teatro de Kherson, o diretor da Companhia de Teatro de Braga, dedica-se desde o início do conflito a fazer com que a guerra não interrompa vários projetos em curso.

O conflito obrigou a companhia de teatro bracarense a suspender o espetáculo “Pedro e Inês”, previsto em Kherson em maio, quando permanece incerta a representação de outra obra, “Os Cegos”, de Maurice Maeterlinck, cuja estreia estava prevista para o próximo ano em Kiev. Sem poder prosseguir as coproduções no território, o encenador português decidiu acolher os artistas das companhias mais afetadas pela guerra durante um ano em Braga. Rui Madeira fala de um projeto solidário para ajudar artistas que foram forçados a abandonar os palcos e de uma forma de defender uma liberdade que considera ameaçada pela ofensiva russa. Um relato, na primeira pessoa, de como, desde a chegada dos artistas ucranianos, a guerra na Ucrânia se trava também no palco de Braga.

Como começa a relação da Companhia de Teatro de Braga com a Ucrânia?

Desde 2014 que temos uma relação muito forte com a Ucrânia. Tínhamos iniciado essa colaboração precisamente pouco antes da Rússia anexar a Crimeia. Temos relações com vários teatros mesmo na região do sudeste do país. Estou a falar de Kherson, Mikaelev, Odessa, Kiev, Lviv, são cidades com as quais trabalhamos e conhecemos bem os diretores dos teatros regionais e locais. A colaboração prende-se não só com deslocações ao país para realizar espetáculos e festivais, mas também para realizar ações de formação. Em dezembro, fiz parte do júri do grande festival de teatro internacional organizado todos os anos pela União de Artistas de Teatro da Ucrânia. Alguns destes teatros têm vindo a Portugal. Tínhamos e temos uma relação muito forte. 

Como é que a guerra abalou essa relação?

Eu deveria ter estreado em maio o espetáculo “Pedro e Inês”, coproduzido com o Teatro de Kherson. Tinha agendado para o próximo ano um espetáculo no Teatro Nacional de Opereta de Kiev com a obra “Os Cegos” de Maurice Maeterlinck, também sobre a situação na Ucrânia. Agora está tudo parado, estamos à espera de ver como evolui a situação.

Quando decide acolher aqui em Braga uma dezena de artistas de teatro ucraniano? Foram eles que lhe ligaram?

É preciso conhecer os ucranianos para entender que ninguém me telefonou, fui eu que lhes telefonei. Eu era para estar em Kiev no dia em que começou a invasão russa. Três dias antes, perguntava ao meu amigo Bogdan, presidente da União de Artistas de Teatro da Ucrânia, se podia mesmo ir e ele respondia-me que sim, que tudo estava sob controlo. Sempre foi assim, essa capacidade de resiliência, de acreditar, é muito forte nas pessoas ucranianas e por isso estão a aguentar o que estão a aguentar. Não, ninguém me pediu nada.

Neste momento o diretor do Teatro de Kherson, Alexander Kniga, está em Lviv de onde está a tentar organizar o Festival Internacional de Teatro que se realiza todos anos na cidade, mas via Internet, e nós também vamos participar, assim como outras companhias. Há uma energia muito forte e um querer muito grande na Ucrânia e penso que é exatamente por isso que a Rússia invadiu o país, porque não consegue viver ao lado de um povo que tem uma vontade indomável de crescer e de aprofundar a democracia e de acreditar na liberdade.

Estes artistas ucranianos vão permanecer um ano em Braga...

Tudo isto é possível porque a companhia tem por detrás um patrocinador que garante, durante um ano, a dez pessoas - que no fundo são 10 pessoas e 5 crianças e um adolescente - um salário mensal de mil euros e um apartamento. O trabalho da companhia é ocupá-los, de trabalhar com eles naquilo que já fazíamos antes na Ucrânia mas desta vez aqui em Braga, uma vez que não existem condições para nos deslocarmos ao terreno. O nosso patrocinador tem também uma galeria, a Zet Gallery, que financiou igualmente uma bolsa para oito artistas plásticos, da fotografia à pintura e escultura, e estamos a organizar uma colaboração entre todos os artistas.

Qual é o objetivo desta colaboração artística?

Os objetivos são claros: durante este ano, a companhia vai trabalhar com os atores ucranianos, os encenadores ucranianos vão trabalhar com os atores ucranianos, os dramaturgos vão escrever peças, uma diretora ucraniana vai trabalhar com os atores da companhia, o diretor da companhia trabalha com os atores ucranianos. Vamos estar sempre a trabalhar, é esse o objetivo. E sempre que possível vamos integrar neste trabalho, tanto a sociedade de Braga como a comunidade ucraniana da cidade.

O que podemos esperar em cena?

No final de Junho vamos representar “Os Pássaros” de Aristófanes, que na verdade não vai ter pássaros, mas pessoas, e essa é a história da peça, das pessoas que tiveram que se arribar das suas casas na Ucrânia. A 5 de julho vamos estrear um espetáculo dirigido e escrito por um dos diretores e dramaturgos que estão aqui, que se chama “O Pequeno Hitler”. Na segunda parte do ano vamos fazer outro espetáculo e no início do ano que vem ainda outro.

Porque decidiu iniciar este projeto com uma tragédia grega?

É um espetáculo sobre a situação na Europa e na Ucrânia. Os personagens principais, Evélpides e Pisetero, são uma espécie de Putin e Lukashenko dos tempos modernos. Esta peça já estava prevista, mas em torno do tema dos refugiados. Com a guerra na Ucrânia e o acolhimento de artistas nesta cidade decidimos apertar o foco para falar não só dos refugiados, mas também da guerra na Ucrânia. Nós temos estado a trabalhar nos últimos quatro anos sobre o tema das fronteiras - este é o último ano que abordamos este tema - a partir de 2023 vamos trabalhar durante quatro anos sobre o tema do medo. De alguma forma as nossas produções atuais têm a ver com esse tema das fronteiras.

Duas dramaturgas ucranianas vão estar encarregues da parte do coro da tragédia.

O coro é composto só de pessoas da Ucrânia que chegaram agora nesta leva da guerra. Recusámos, por exemplo, integrar pessoas que já estavam em Braga desde 2014, porque não têm essa experiência. Têm uma experiência de fora muito parecida com a nossa, embora tenham família no país. Eu não vou trabalhar o coro, é uma tarefa das encenadoras ucranianas sobre a sua própria experiência. Eu só pedi que o coro tivesse telemóveis e que estivessem a comunicar como estão no dia a dia com a família, e que estivessem a ler, ou seja, a ler a partir da realidade, que é o que estamos a fazer também. É um trabalho violento para os atores.

Violento de que forma?

É um trabalho muito violento porque os atores têm sempre a tendência a fazer um trabalho bastante escolástico, de falarem do passado, de se descomprometerem, de ficarem numa atitude de récita. E aqui é tudo o contrário, na vontade de entender o texto no confronto com o outro. E é um processo muito violento no sentido de tomar o texto de Aristófanes como nosso, nesse confronto com o outro. É um processo muito violento porque o texto deixa de ser algo simplesmente recitado.

Como é que os artistas estão a viver daqui o que se passa na Ucrânia?

Sinceramente, não sei. Eles já passam o dia ao telemóvel a acompanhar a situação e a vida deles não é fácil, mas não queremos agravar isso. Uma atriz contou-me que a sua casa em Kherson foi ocupada por uns russos, mas nós tentamos não fazer essas perguntas. Aqui estamos a integrá-los na medida do possível e sobretudo a ocupá-los.

Convidar artistas ucranianos a prosseguirem o seu trabalho em Braga é também uma forma de resistência?

Penso que isso vai-se ver refletido de alguma forma no teatro. ‘Nós somos nós e as nossas circunstâncias’, como dizia o filósofo, e penso que isso vai surgir no espetáculo. Ao mesmo tempo, as pessoas na Ucrânia continuam a fazer teatro e as artes prosseguem no país. Nós vamos participar no festival de Kherson que será em formato online, com a peça “O pequeno Hitler” cujos ensaios estão a decorrer aqui em Braga, entre o diretor e os atores ucranianos.

A guerra na Ucrânia tornou-se também um fio condutor da vossa produção artística com três peças atravessadas pelo tema.

É um facto de que a guerra alterou a nossa vida, não só na Ucrânia, uma vez que estamos todos os dias a viver a guerra também na Europa. Nós somos também vítimas dessa guerra. Uma companhia de teatro, sim, também vai sofrer essa influência e é normal que tenhamos consciência dessa questão. A chegada destas pessoas vai também interferir no dia a dia da companhia e não há melhor forma de interferir do que no confronto artístico e, portanto, estas três peças estão cosidas, sim, mas pela realidade.

VEJA TAMBÉM: Entrevista a Bogdan Strutinsky, presidente da União dos Artistas de Teatro da Ucrânia. “Repudiamos todas as formas de cultura russa. E queremos rejeitá-la como lixo”

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