Entrevista a Bogdan Strutinsky. “Repudiamos todas as formas de cultura russa. E queremos rejeitá-la como lixo”

José Miguel Sardo e María Piñeiro
3 jun 2022, 22:00
Strutinski Madeira e Fran Nunez. Fotografias de José Miguel Sardo e María Piñeiro

A invasão russa ameaça não só a soberania, mas também a identidade e a cultura ucranianas, defende o presidente da União dos Artistas de Teatro da Ucrânia. “Se pudéssemos fazer uma radiografia à alma ucraniana, veríamos um buraco”. Os russos querem “alvejar-nos na cara e pelas costas, senão com balas, pelo menos com palavras”. Entrevista com um encenador convertido em protagonista de uma resistência cultural, de passagem por Braga. “Não acredito nos ‘russos bons’, porque não existem”. Planos? “Saber como vamos celebrar a vitória nesta guerra”

Na cidade dos arredores de Kiev, onde os russos teriam massacrado milhares de civis durante a ofensiva falhada sobre a capital, Bogdan Strutinsky perdeu amigos e vizinhos e a casa em que habitava, destruída por um míssil russo nas primeiras semanas da invasão. Mas o massacre na cidade, entretanto retomada pelo exército ucraniano, não fez com que o encenador perdesse a determinação de manter a data do festival de ópera e artes cénicas O’Fest de Bucha, que fundou há nove anos.

A data do evento, 9 de julho, vai ser assinalada este ano com uma jornada de memória com um concerto de “Requiem” e a participação dos cerca de 150 artistas que faziam parte do cartaz do festival, alguns dos quais deverão regressar pela primeira vez ao país desde o início da guerra.

Diretor do Teatro Nacional de Opereta de Kiev e encenador várias vezes premiado e distinguido com o título de “artista honorável da Ucrânia”, Bogdan é há quase duas décadas um dos protagonistas de uma renovação cultural nos palcos, com a redescoberta dos grandes autores ucranianos em espetáculos onde o teatro se mistura com a ópera ou o musical e sobretudo com a generalização da língua ucraniana em todos os palcos do país.

Mais do que por resistência, se hoje Strutinsky encabeça uma contraofensiva cultural para manter os autores e criadores ucranianos em palco e a trabalhar, é certamente por persistência. Entre o seu teatro de Kiev, um dos vários que reabriram há cerca de dois meses na capital e o trabalho de voluntário na cidade de Ivano Frankivsk, o representante dos artistas de teatro ucranianos, prepara a apresentação de uma obra com alguns dos atores do teatro de Mariupol, coordena a instalação na Lituânia do teatro de Kharkiv e a chegada de um grupo de artistas ucranianos a Braga. Com todos os planos alterados pela guerra afirma que o seu único plano “é o de como celebrar a festa da vitória”. Até lá, assume que o combate prossegue também no palco, onde, assegura, ter deixado de haver espaço para a cultura russa.

Onde se encontra atualmente?

Atualmente continuo a trabalhar entre o teatro em Kiev e Ivano Frankivsk, onde desempenho tarefas de voluntário. São 700 quilómetros de distância que faço quase todas as semanas. 

Porque decidiu permanecer no país?

Era uma decisão óbvia e não tenho qualquer dúvida sobre a escolha que fiz. Mas se hoje estou aqui é para falar de arte e da tradição da Ucrânia. Esta não é a primeira vez que estou em Braga, mas é a primeira desde que se iniciou a guerra. Estamos a falar de uma colaboração que vem de trás com o Rui Madeira, diretor da Companhia de Teatro de Braga, que já esteve várias vezes no país e foi mesmo membro de júris internacionais em festivais de teatro na Ucrânia. Estou aqui para acompanhar o projeto em que participamos, relativamente a estas residências de artistas ucranianos em Braga para promover a cultura e a arte ucranianas.

Qual é a situação dos artistas que permaneceram no país?

Depende do local onde se encontram, por exemplo em Kiev alguns teatros reabriram e tentam prosseguir as representações. Mas noutras cidades, como Lviv ou Ivano Frankivsk, por exemplo, assistimos desde há cerca de dois meses a outro tipo de trabalho por parte dos artistas de teatro que não decorre sobre o palco, mas nos subterrâneos das salas de teatro, trata-se de eventos muito particulares. Há também espetáculos que se organizam para pessoas deslocadas das zonas de Donetsk ou Lugansk. Trata-se de uma forma diferente de teatro. Tem a forma de uma conversa entre o público e os artistas em torno de temas que são hoje muito dolorosos. No caso, por exemplo, do teatro de Kharkiv, este encontra-se quase todo no estrangeiro, a maioria em Kaunas na Lituânia, que é uma cidade geminada com Kharkiv e onde se encontram os artistas da companhia de teatro local desde há cerca de um mês.

Sinceramente não sabemos o que se vai passar com estes artistas, uma vez que a cidade está ocupada pelos russos e não sabemos quando poderão regressar. Como se pode imaginar, a situação é complicada para a maioria dos artistas ucranianos que, face à instabilidade, não têm outra hipótese do que procurar outros países para poder continuar a trabalhar na sua profissão.

Foi sem dúvida uma alteração profunda de todos os planos...

Planos, os nossos únicos verdadeiros planos atualmente passam por saber como vamos celebrar a vitória nesta guerra.

A sua casa em Bucha está hoje totalmente destruída, organizava aliás na cidade um festival anual, O’Fest. Tem notícias dos seus vizinhos e colegas de trabalho?

Estava tudo planeado para voltarmos a realizar este festival em julho. Deveria ser a nona edição do festival. Fizemos um acordo com a câmara de Bucha, uma vez que o teatro local resistiu aos bombardeamentos e vamos realizar uma jornada de memória, não um festival, uma vez que ainda há muitos problemas na localidade relativos ao fornecimento de eletricidade e não temos orçamento, mas vamos realizar um concerto de ‘Requiem’ e organizar uma jornada de memória por todas as pessoas que foram torturadas. No total, cerca de 150 pessoas participavam neste festival e muitas delas aceitaram regressar, mesmo algumas que se encontram no estrangeiro, para participar nesta jornada de memória. 

O teatro de Bucha resistiu, mas não o de Mariupol, onde centenas de civis terão sido soterrados por um bombardeamento russo. Tem notícias do que se passou naquele teatro?

Sei que, das pessoas que trabalhavam no teatro, uma grande parte foi enviada para territórios ocupados pelos russos e algumas foram enviadas para Kiev, mas são muito poucos. E, neste momento, a União de Artistas de Teatro, que presido, está a preparar uma peça com alguns dos atores do teatro de Mariupol. Desta forma estamos também a ajudar os atores de Mariupol a sobreviver a esta situação. O mundo inteiro foi testemunha do que se passou e quando começámos a escavar o subsolo percebemos a dimensão do que aconteceu e que é muito difícil de suportar.

A cultura ucraniana também é um alvo nesta guerra?

Sem dúvida, uma vez que o objetivo desta guerra é também destruir a identidade ucraniana, no quadro deste genocídio do povo ucraniano. E neste ponto vemos como os russos foram criados por Estaline e mesmo por Hitler e como estão a ser bons alunos na perspetiva de que não tentam criar algo positivo mas apenas promover a destruição. Se pensarmos bem, a Rússia nunca criou nada, apenas roubou e pilhou de outros. Uma vez mais, não criaram mais nada do que ruínas e destruição e sim, os artistas ucranianos são alvos nesta guerra. Mas são alvos que não foram abatidos, uma vez que Putin não atingiu o seu objetivo de neutralizar os ucranianos e, pelo contrário, acabou por uni-los contra ele.

Entre as várias personalidades artísticas que foram detidas pelo exército russo encontra-se o diretor do teatro de Kherson, Alexander Kniga, também deputado regional. Onde se encontra atualmente e como se processou a sua libertação?

Alexander Kniga encontra-se agora em Lviv, no oeste do país, depois de ter sido detido e interrogado pelos russos e de ter encontrado uma forma de escapar da situação. Ele está neste momento a preparar de Lviv o festival que deveria ter decorrido em maio em Kherson, que, como sabe, também se encontra ocupada pelo exército russo. Kniga vai assim reunir todos os participantes previstos no festival num evento online durante o qual serão transmitidas as obras agendadas, gravadas em cada país. E desta forma queremos mostrar que não vamos desistir, que vamos continuar a lutar que vamos continuar a trabalhar como o fizemos até hoje, na cultura, no teatro, na literatura.

De que deveriam falar as peças de teatro durante uma guerra?

Boa pergunta. A verdade é que somos um país democrático. Como diretores de teatro, não somos nós que temos de dizer aos encenadores, dramaturgos e atores o que devem fazer, eles têm as suas próprias escolhas e o seu próprio reportório. Mas uma coisa posso dizer e é que repudiamos todas as formas de cultura russa. Completamente. E queremos rejeitá-la como lixo.

Neste momento estamos também a preparar uma peça com o encenador italiano Matteo Spiazzi, que se chama “O Baile”, baseada num filme de Ettore Scola. Trata-se de uma história que decorre durante a ocupação nazi da Europa. Neste momento, na Ucrânia temos um processo de regresso à arte tradicional ucraniana. E penso que, agora, a Ucrânia anseia redescobrir-se. Neste momento, realizamos também vários eventos ao ar livre, nas ruas ou em praças públicas, onde se podem ouvir músicas com letras que antes da guerra seriam consideradas demasiado cruas, mas que agora exprimem essa revolta que trazemos dentro de nós. Ainda é muito cedo para saber como é que esta guerra vai afetar o teatro ucraniano, uma vez que nós somos pessoas diferentes do que éramos antes da guerra, uma vez que, se pudéssemos fazer uma radiografia da alma ucraniana iriamos sem dúvida conseguir ver um buraco, o desse grande vazio que sentimos. É uma situação muito difícil.

Continuar a fazer teatro e a programar é uma forma de resistência?

É uma forma de resistir, mas é também uma forma de agradecimento, uma forma de agradecer a todas as pessoas que estão a apoiar a Ucrânia. E também queremos mostrar que nenhuma guerra pode destruir-nos, que não pode arrasar o nosso trabalho e que vamos continuar a representar.

Mantém contacto com o meio artístico russo?

Não, neste momento não mantemos nenhum contacto nem temos vontade de fazê-lo. No início da guerra contactei a união dos artistas de teatro russo, de forma oficial, enquanto presidente da união ucraniana. Somos gente de teatro, somos humanistas, ninguém pode silenciar-nos e temos o direito e o dever de falar. Mas nunca recebi nenhum apoio por parte deles. Por isso, digo que os russos também são partícipes nesta guerra com a mesma missão de disparar sobre a Ucrânia, de alvejar-nos na cara e pelas costas, senão com balas, pelo menos com palavras, a missão deles é também a de assassinar a Ucrânia. Eu não acredito nos ‘russos bons’, porque não existem.

VEJA TAMBÉM: Entrevista com Rui Madeira, diretor da Companhia de Teatro de Braga. “Nós também somos vítimas da guerra na Ucrânia”

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