MIL DIAS DE GUERRA || A invasão de larga escala da Rússia na Ucrânia começou há mil dias. Sem um acordo de paz à vista e com as ameaças a surgirem de todos os lados, a embaixadora da Ucrânia em Portugal, Maryna Mykhailenko, falou em exclusivo com a CNN Portugal
A nossa conversa tem inevitavelmente de começar pelas eleições norte-americanas. Chegou a haver a expectativa de que Kamala Harris vencesse as eleições norte-americanas, o que acabou por não acontecer. Agora que já são conhecidas algumas das escolhas de Donald Trump para esta nova administração, quais são as suas expectativas?
Nós estamos orgulhosos de receber apoio bipartidário que temos no Congresso norte-americano. Para nós é extremamente importante manter este nível de apoio no futuro, tanto da Europa como por parte dos nossos parceiros americanos.
No dia a seguir à eleição, o nosso presidente falou com o presidente-eleito Donald Trump. Em setembro, já se tinham encontrado à margem da Assembleia-Geral das Nações Unidas. Portanto, temos esperança de que o presidente Trump queira ser um líder forte e aguardamos com expectativa essa liderança. Esta guerra não é só sobre a Ucrânia, é bem mais do que isso, é também acerca da segurança europeia e da cooperação transatlântica. É por isso que esperamos ter o apoio da Europa e dos Estados Unidos.
Recentemente, o filho de Donald Trump publicou uma mensagem dirigida ao presidente Zelensky, em que sugeria que a Ucrânia está prestes a “perder a mesada”. Muitas figuras próximas de Trump sugerem mesmo uma mudança radical, abrindo a porta à troca de território por paz. Este caminho parece-lhe inevitável?
Há várias informações a circular nos media acerca do plano, mas até agora não temos nenhuma proposta oficial. Mas se estivermos a falar de alguma concessão territorial: pensam que Putin está pronto para trocar território pela paz? Nós não temos um sinal dele para parar esta agressão e de se sentar à mesa de negociações. Todos nos lembramos das pré-condições, de retirar todas as tropas ucranianas das regiões da Ucrânia. Ele não as conseguiu tomar pela força e depois tentou forçar-nos a abandonar este território, o nosso território. Outra das condições era não entrar na NATO e ser neutro, mas eu recordo que a Ucrânia era neutra em 2014, durante a ocupação da Crimeia.
Tudo isto confirma que eles não estão prontos para as negociações. E isto é extremamente importante: as concessões [territoriais] não iriam levar à paz. Recorde-se da situação em 2014, quando começou a guerra, criámos dois grupos para negociação – um no formato de Normandia, com parceiros franceses e alemães, e criámos o grupo de contacto trilateral. Cerca de 200 negociações aconteceram e nós anunciámos o cessar-fogo 20 vezes, mas de todas as vezes a Rússia violou o cessar-fogo. Por isso, para nós é importante ter um plano abrangente que garanta uma paz justa e longa e não apenas um acordo que pare os combates. O fim dos combates não vai levar ao fim da guerra.
Recentemente, o futuro secretário da Defesa dos EUA, Pete Hegseth, disse numa entrevista que tem quase a certeza de que a Rússia não irá além da fronteira polaca. Acha que a futura administração Trump tem um plano concreto para acabar com esta guerra, como prometeu o presidente eleito Donald Trump?
Como já referi, estamos à espera da proposta oficial e, claro, estamos prontos para a negociar com os nossos parceiros americanos e com o presidente eleito, mas neste momento é difícil avaliar toda esta informação que circula nos meios de comunicação social. O presidente eleito Trump está preparado, naturalmente, para este tipo de negociações e, quando tivermos este plano em cima da mesa, estaremos prontos para o discutir.
Entretanto, o presidente Joe Biden parece ter cedido aos repetidos apelos ucranianos e autorizou a utilização de armas de longo alcance contra alvos militares em território russo. A Rússia já reagiu e disse que esta medida coloca os EUA em guerra com a Rússia. O que lhe parece?
De acordo com o artigo 51 da Carta das Nações Unidas, temos todo o direito de nos defendermos. Na minha visão, esta restrição de não se utilizarem mísseis de longo alcance em território russo é artificial e criou-nos muitos problemas no campo de batalha. Nós pedimos aos nossos parceiros para levantarem estas restrições e, finalmente, espero que seja feito.
Mas porquê agora?
Não gosto de falar deste tema, porque não tenho informação fiável sobre o caso. No entanto, penso que pode ser a resposta ao destacamento das tropas da Coreia do Norte para a região de Kursk. Esse desenvolvimento mudou tudo para nós, já não estamos só a lutar contra os russos, mas também contra tropas norte-coreanas. E nós não sabemos o que é que Vladimir Putin prometeu aos líderes norte-coreanos em troca disto. Isto cria muitos problemas não só na nossa guerra, mas também noutras regiões, como na Península da Coreia.
Mas pensa que esta decisão de Biden altera a dinâmica no campo de batalha?
É claro que nos vai ajudar, se nós conseguirmos usar isto [armas de longo alcance]. Apresentámos [aos EUA] a lista de alvos e todos são de natureza militar. Não há infraestruturas civis. Por isso, para nós é muito importante ter esta possibilidade de atingir alvos militares em território russo.
Posso dar-lhe o exemplo de várias das nossas cidades junto à fronteira com a Rússia, como Sumy e Kharkiv. Em Sumy, por exemplo, [os russos] atingiram no domingo edifícios residenciais com mísseis e 11 pessoas morreram, incluindo duas crianças. Mais de 60 pessoas ficaram feridas. Nesta região, em particular, eles usam bombas aéreas guiadas. Nós não conseguimos intercetar estas bombas. Nós só conseguimos atingir os seus aviões no chão. Precisamos de mísseis de longo alcance e de os utilizar em território russo.
Houve muitas mudanças desde a invasão em larga escala da Ucrânia, a incursão em Kursk, por exemplo, a entrada de tropas norte-coreanas na guerra, como já mencionou – mantém a afirmação de que o fim da guerra vai acontecer no campo de batalha?
Não, isso cria as condições para negociar. Não tem a ver com acabar com a guerra no campo de batalha, tem a ver com criar as condições necessárias para acabar com a guerra. Conhecemos o conceito de paz através da força, portanto temos de ter uma posição forte antes das negociações e é por isso que o nosso sucesso no campo de batalha vai criar as pré-condições necessárias para que as negociações tenham sucesso. E também pode forçar Putin a entrar nessas negociações, essa é a principal razão pela qual precisamos de ser fortes no campo de batalha.
Passando para a Europa: o chanceler alemão Olaf Scholz acabou de ter a sua primeira conversa telefónica com o presidente Putin desde a invasão em larga escala. Alguns líderes na Europa não viram isto com bons olhos e o presidente Zelensky disse que corresponde a “abrir uma caixa de Pandora”. Como olha para este novo desenvolvimento no que toca à posição europeia?
Eu, obviamente, concordo com o meu presidente quanto à caixa de Pandora, porque Putin estava isolado e este tipo de chamada ajuda-o a sair desse isolamento. De qualquer forma, o que é importante é o resultado dessa chamada e, pelo que percebi, o chanceler Scholz disse que a posição de Putin não se alterou. Se o chanceler Scholz precisa desta conversa para perceber isso, é obviamente uma decisão sua.
A eleição de Donald Trump veio reforçar as conversas na Europa sobre a necessidade de melhorar e reforçar as suas capacidades de defesa e a defesa da Ucrânia, para o caso de Trump retirar algum do apoio a Kiev, mas a Europa enfrenta várias divisões neste momento, nem todos na Europa concordam com o que está a ser feito e como está a ser feito. O que espera em termos de apoio europeu no futuro próximo no contexto dos resultados eleitorais nos EUA?
Não temos quaisquer razões para duvidar do apoio europeu, porque todos os nossos parceiros confirmaram a sua prontidão para nos apoiar. Eles entendem que o futuro da Europa e da sua defesa é o que está a ser definido na Ucrânia. É por isso que estou segura de que vão continuar a apoiar-nos.
O futuro da Europa está a ser combatido na Ucrânia?
Sim, claro, porque isto tem a ver com a segurança europeia. Nós sabemos que os planos de Putin vão bem além da Ucrânia, lembram-se da situação da imigração na fronteira da Polónia com a Bielorrússia, sabemos de todos os exemplos de interferência russa em algumas eleições por toda a Europa, lembramo-nos de outros exemplos, como nos Estados do Báltico, quando [os russos] tentaram testar a fronteira marítima com a Lituânia, se não estou em erro. O plano de Putin é claro como água: dividir a Europa, dividir a União Europeia, e se não for travado irá mais longe.
A comunidade de serviços secretos na Europa tem avisado que o último ano assistiu a um aumento das atividades de espionagem e sabotagem pela Rússia. Recentemente, falou-se muito da interferência através de desinformação na Moldova no contexto das eleições presidenciais e do referendo sobre a adesão à UE. Vê algum sinal de interferência russa em Portugal, quer através de desinformação, quer através de operações de espionagem económica e política?
Penso que a questão mais importante a abordar aqui em Portugal é o da desinformação, porque é um instrumento muito eficaz que a Rússia tem. Sei que tentaram publicar alguns livros, por exemplo, com narrativas russas sobre o que está a acontecer na Ucrânia. A nossa comunidade reuniu-se com um representante da editora que está a publicar esse livro, claro que a resposta foi que existe liberdade de expressão, valores democráticos, etc. Mas a linha que separa a liberdade de expressão e os valores democráticos da desinformação é muito ténue. Espero que encontrem um equilíbrio entre a segurança – porque o que está em causa é a vossa segurança, antes de mais – e esses valores. Por vezes, a segurança pode prevalecer.
Acha que Portugal também está no radar da Rússia em termos de influência e de disseminação de desinformação, talvez para tentar mudar a perceção que os portugueses têm desta guerra?
Sim, claro, porque Portugal é o país que mais nos apoia entre os nossos parceiros da UE. Logo no início até ficámos surpreendidos na Ucrânia, porque Portugal fica longe da Ucrânia, fica a 4 mil quilómetros… De qualquer forma, estamos muito gratos ao vosso povo e ao vosso governo pelo vosso apoio. Claro que, para eles, isto cria alguns problemas e tenho a certeza de que [a Rússia] vai tentar influenciar esta situação. Além disso, Portugal é um Estado muito importante, porque está no flanco ocidental da NATO e agora a Ucrânia está a defender o flanco oriental da NATO, e é por isso que Portugal está, naturalmente, no radar [da Rússia].
Falou do enorme apoio do povo português. Porque é que acha que isso acontece? Não somos a Polónia, não somos os Estados Bálticos, estamos tão longe...
Em relação aos Estados Bálticos e à Polónia, eles sabem o que significa a ocupação russa, sabem o que significa a agressão russa e o que significa viver sob esta pressão. Em relação a Portugal, penso que o apoio se deve à nossa enorme comunidade aqui, se não estou enganada, esta é a minha opinião, mas muitos ucranianos chegaram a Portugal no final dos anos 90, estão muito bem integrados, são muito ativos, e penso que nos compreendem também por causa da nossa comunidade cá. Também acho que, sendo Portugal o país mais antigo da Europa, durante a vossa história tiveram casos diferentes e difíceis com o vosso vizinho… Claro que esse não é o caso agora, sei que têm uma boa relação, mas podem compreender o que significa viver com um vizinho muito maior do que vocês.
Como avalia o apoio que Portugal prestou à Ucrânia nos mais de dois anos e meio que decorreram desde a invasão total, quer em termos de apoio militar quer de assistência humanitária?
Estamos gratos pelo vosso apoio, porque não se trata apenas de apoio militar, mas também de apoio económico. Financiaram a iniciativa checa em matéria de munições e fazem parte de algumas das coligações de capacidades, juntaram-se à chamada coligação de armamento e forneceram-nos três tanques, mas também muito mais veículos blindados, fazem parte da coligação F-16, treinando os nossos técnicos, e estamos gratos por isso.
No que se refere à nossa comunidade, receberam um grande número de ucranianos após o início da guerra, quase 60 mil pessoas, pelo que a nossa comunidade é suficientemente grande aqui em Portugal, e também lhes deram apoio, o que é ótimo para nós, é um grande apoio e uma demonstração da vossa solidariedade. Assinaram também o acordo de segurança com a Ucrânia durante a visita do meu presidente a Portugal, em maio, e não se trata apenas de apoio militar, mas também da vossa participação na reconstrução de instalações educativas na Ucrânia. E contámos com isso para iniciar a implementação prática de um desses projetos, a reconstrução do Liceu 25 da região de Zhytomyr. Penso que o vosso governo tentou e tenta fazer o melhor que pode.
Zelensky afirmou que 2025 pode ser o ano em que esta guerra termina. Como diplomata, acredita que este objetivo poderá ser alcançado no próximo ano ou as duas partes estão ainda demasiado afastadas para que tal se torne realidade?
Tudo depende do apoio internacional e, claro, esperamos realmente acabar com esta guerra através de uma paz justa e duradoura. Estamos a tentar fazer o nosso melhor não só no campo de batalha mas também na arena diplomática. Lembram-se de que envidámos muitos esforços para apresentar e chegar a um pré-acordo de paz formal do presidente Zelensky e, quando se realizou a primeira cimeira de paz, também organizámos diferentes reuniões a nível ministerial e agora estamos a trabalhar arduamente no chamado enquadramento para a paz. Espero sinceramente que todos estes esforços tragam paz à Europa e que encontremos uma forma de vencer esta guerra em conjunto, evidentemente, com o apoio dos nossos parceiros.
Existe a ameaça de os Estados Unidos cortarem o apoio militar à Ucrânia para levarem o país a sentar-se à mesa das negociações. O fim desse apoio faria efetivamente com que a Ucrânia deixasse de combater no terreno ou apenas tornaria as coisas mais difíceis?
Sabe, estamos em guerra há mais de dez anos, porque a guerra não começou em 2022, mas em 2014, e chegámos ao marco de referência de 1.000 dias de guerra total e, no início, alguns dos peritos militares deram-nos apenas três dias ou duas semanas, mas nós continuámos a lutar, porque não temos escolha. Sabemos que Putin não quer apenas uma parte da Ucrânia, ele quer destruir totalmente a Ucrânia. No início, queria controlar a Ucrânia, mas se não lhe for possível atingir o seu objetivo, vai querer destruir a Ucrânia. É por isso que, para nós, não há escolha, para nós é uma guerra existencial, por isso vamos continuar a lutar. Mas, claro, sem o apoio militar dos nossos parceiros, seria muito mais difícil.
Falámos apenas brevemente sobre a participação da Coreia do Norte na guerra, a presença de soldados norte-coreanos na região de Kursk foi confirmada por todas as partes – isto coloca a Coreia do Norte diretamente em guerra com a Ucrânia?
Já estão em guerra, se não estou em erro já houve confrontos com as forças norte-coreanas e agora há cerca de 11 mil soldados norte-coreanos no terreno na região de Kursk, e também vi esta informação nos meios de comunicação social de que os líderes norte-coreanos estão prontos para enviar 100 mil soldados para a Rússia. É claro que isto está a criar muitos problemas e contamos com uma resposta forte dos nossos parceiros, porque, como já referi, trata-se da internacionalização do conflito, e esta situação terá algum impacto noutras regiões do mundo.
Voltando ao tema da desinformação, acha que o público em geral, em Portugal e na Europa, está ciente do que está a acontecer? Há muitas chefias das secretas em todo o mundo a queixarem-se do aumento de atos de sabotagem, de campanhas de desinformação, desde a Noruega à Alemanha, de conspirações para assassínios… Acredita que as pessoas estão cientes dos riscos de espionagem e sabotagem da Rússia na Europa?
Existe tanta informação sobre a interferência da Rússia na Europa que eu espero que as pessoas estejam cientes disso. Mas acho que são os governos dos diferentes países que têm de tomar os passos necessário para combater este tipo de interferência. Por exemplo, eu acredito que existem algumas lacunas na vossa legislação. É por isso que eu penso que devem olhar para a vossa legislação e adotar mudanças de acordo com a ameaça que a Rússia representa. Eu acredito que as pessoas estão a começar a perceber esta ameaça.
A que legislação se refere?
A vossa legislação é muito aberta. Vocês tentam proteger a vossa liberdade de expressão, mas isso pode ser um grande problema, porque a Rússia utiliza isso contra vocês. Penso que deviam olhar para a vossa legislação para se adaptarem à ameaça que a Rússia representa, particularmente no campo da propaganda e da desinformação. Eu já discuti este assunto com os vossos membros do parlamento e eles compreenderam o quão importante e o quão séria é esta questão.
Há alguma mensagem específica que gostasse de passar ao povo português?
Quero agradecer a todos os portugueses pelo apoio que nos deram e gostaria de vos pedir que continuem a apoiar a Ucrânia. É uma altura muito difícil da nossa história. A invasão de larga escala decorre há mais de dois anos e meio e nós precisamos do vosso apoio. E esta guerra não é só nossa. É uma guerra contra a Europa e contra os vossos valores, princípios e até contra a vossa forma de vida.