Dos rumores do abandono ucraniano ao combate indireto entre o Grupo Wagner e as Forças Armadas russas: os dois lados do "inferno" de Bakhmut

7 mar 2023, 14:02

NATO diz que morrem cinco militares russos por cada ucraniano na batalha pela conquista de Bakhmut. Do lado russo, os mercenários do Grupo Wagner pedem munições e admitem falhar se não tiverem apoio; do lado ucraniano, Zelensky consultou chefes militares e decidiu pela continuidade da resistência na cidade da região de Donetsk

A perda de influência de Yevgeny Prigozhin, o líder do Grupo Wagner, junto do Kremlin, não é de agora: a meio do passado mês de fevereiro, ainda antes de a invasão russa da Ucrânia completar um ano, o influente fundador do grupo de mercenários trazia a público a sua própria guerra contra as altas patentes militares da Rússia, deixando perceber que não era ouvido como antes pelo círculo próximo do presidente russo.

Ainda assim, Prigozhin, conhecido como "o chef" de Putin - por ser proprietário de um negócio de catering ao qual o Kremlin tinha por hábito recorrer - deu-se ao luxo de criticar o ministro da Defesa russo e o chefe do Estado-Maior General da Federação Russa, acusando-os de tentarem "destruir" o seu exército privado ao privá-lo de munições. Isto num país onde há pouca tolerância para vozes dissidentes. "Isto pode ser agora equiparado a alta traição, quando o grupo Wagner está a lutar por Bakhmut, perdendo centenas dos seus combatentes todos os dias", sublinhou. 

As acusações do líder do Grupo Wagner, que segura a linha da frente russa em Bakhmut, não pararam desde então. Prigozhin apontou à "burocracia militar monstruosa" que o tem impedido de conquistar a cidade e lamentou ter sido impedido de recrutar para as suas fileiras nas prisões russas. "Se houvesse entre três a cinco grupos como o Wagner, já estaríamos a mergulhar os pés no rio Dnipro", dizia, há menos de um mês. 

As expectativas de Prigozhin, porém, desceram pública e notoriamente: no fim de semana passado pediu apoio a Moscovo, alertando para a possibilidade do colapso de toda a frente leste da invasão russa da Ucrânia. "Se o Grupo Wagner se retirar de Bakhmut, toda a frente se desmoronará. O Grupo Wagner é o cimento, estamos a atrair todo o exército ucraniano para nós, quebrando-os e destruindo-os", avisou. 

"Há uma tentativa do grupo Wagner de capturar para si os sucessos, mas se as coisas correrem mal é por falha de munições ou por incapacidade de recrutamento", disse à CNN Portugal Liliana Reis, especialista em Relações Internacionais, sobre as declarações de Prigozhin e constante desresponsabilização do empresário pelos fracassos na guerra. Recordando também que a crispação entre o Grupo Wagner e o Ministério da Defesa da Rússia não é recente, Liliana Reis assinala que Prigozhin tem tentado atribuir a demora na captura de Bakhmut também às dificuldades de ligação com o exército russo.

E basta recordar que Sergey Surovikin, que comandava as operações russas na Ucrânia e era visto como um aliado de Prigozhin, foi substituído em janeiro por Valery Gerasimov, menos alinhado com os mercenários. 

O "combate indireto" entre o Grupo Wagner e as Forças Armadas

Helena Ferro Gouveia, especialista em assuntos internacionais, sublinha precisamente a "tensão crescente" entre a cúpula de segurança do Kremlin e o líder do Grupo Wagner, enquanto prossegue a "chacina" em Bakhmut. Em declarações à CNN Portugal, diz que estamos a assistir a um "combate indireto" entre Prigozhin e o ministro da Defesa russo, lembrando que o empresário tem aproveitado todas as oportunidades para humilhar as Forças Armadas de Moscovo, já que as escassas vitórias russas foram conseguidas pela milícia paramilitar do Kremlin.   

Na segunda-feira, o fundador do Grupo Wagner queixou-se mesmo de que o seu representante viu ser-lhe negado o acesso à sede da "operação militar especial" da Rússia na Ucrânia. As suas declarações não tiveram resposta pública do Kremlin mas, já esta terça-feira, o ministro da Defesa russo falou em conferência de imprensa em Moscovo sobre a captura de Bakhmut, que considerou um importante centro para as tropas ucranianas no Donbass e, em consequência, um alvo estratégico para a Rússia.

"Assumir o controlo [de Bakhmut] permitirá novas ações ofensivas penetrando nas defesas das Forças Armadas da Ucrânia", frisou Sergei Shoigu, citado pela CNN Internacional. Shoigu garantiu ainda que, só em fevereiro, as baixas ucranianas aumentaram 40% quando comparadas com as do mês anterior, totalizando um total de 11 mil vítimas mortais entre as forças de Kiev - números que as agências internacionais não conseguiram confirmar.

O governante russo não falou, previsivelmente, das perdas russas, mas a NATO avançou na segunda-feira números que impressionam: citada pela CNN Internacional, fonte dos serviços de informação da Aliança Atlântica revelou sob anonimato que morrem cinco soldados russos por cada óbito de um soldado ucraniano. Ainda assim, refere a NATO, Kiev também tem sofrido perdas significativas a defender Bakhmut, apesar do rácio favorável aos ucranianos.

A falta de munições tem sido igualmente um problema para Kiev e os homens de Zelensky continuam a contar com o auxílio dos parceiros internacionais, que nem sempre conseguem fazem chegar o material militar com a brevidade necessária.

Zelensky contraria rumores e manda reforçar posições

O Institute for the Study of War (ISW), think tank norte-americano dedicado ao estudo das matérias de Defesa, garante que os esforços para capturar Bakhmut estão a deteriorar sobretudo a capacidade ofensiva russa mas, ontem, alertava para uma aparente "retirada tática limitada" dos ucranianos, admitindo que era cedo para inferir das movimentações do exército de Kiev uma possível retirada total, deixando a cidade à sua sorte.

Mas não parece ser essa a vontade das altas patentes militares ucranianas. Perante os rumores de retirada das suas tropas de Bakhmut, Volodymyr Zelensky garantiu na noite de segunda-feira, no seu discurso diário à nação, que pediu às forças de Kiev para resistirem e encontrarem forças para continuarem a defender a cidade. 

Horas antes, fonte do gabinete presidencial da Ucrânia tinha revelado que tanto Valerii Zaluzhnyi, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas ucranianas, como Oleksandr Syrskyi, o comandante das forças terrestres de Kiev, tinham defendido em reuniões com Zelensky a continuidade da operação defensiva e até o reforço das posições em Bakhmut.

Os combates na cidade da região de Donetsk fazem-se quase corpo a corpo, rua a rua. Volodymyr Nazarenko, alta patente das forças ucranianas, deu uma entrevista ao canal Kiev24 no domingo, citada pelo The Guardian, e descreveu mesmo a situação de Bakhmut como um "inferno". Mas também garantiu que Kiev tinha conseguido estabilizar a linha da frente e mantinha as forças russas nos arredores da cidade. 

Para a Ucrânia, manter Bakhmut sob o seu domínio permitirá, por outro lado, impedir a Rússia de conquistar dois objetivos, lembra Helena Ferro Gouveia: primeiro, a conquista total da região de Donetsk até ao final de março, meta definida pelo próprio Vladimir Putin; em segundo, não deixará os russos abrirem caminho até às cidades ucranianas de Kramatorsk e Sloviansk.

Neste cenário, Prigozhin deverá manter os seus homens no terreno, salienta a especialista, apesar de os russos estarem a perder capacidade ofensiva. "Enquanto for útil a Putin, e útil no sentido de continuar a conseguir conquistas, vai continuar a ser apoiado, embora não da mesma forma que foi no início da guerra", resume.

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