Análise: discurso do Estado da União de Biden foi um comovente grito de guerra pela democracia

CNN , Análise de Stephen Collinson
2 mar 2022, 13:29

A partir do seu bunker em Kiev, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky implorou a Joe Biden por uma mensagem forte no seu discurso do Estado da União. O presidente dos EUA não desiludiu.

Joe Biden declarou que a invasão da Rússia é a primeira batalha unificadora no novo duelo da democracia com a tirania.

Enquanto novas explosões abalavam a capital ucraniana, onde Zelensky se encontra a lutar contra uma temida investida russa ao lado de civis que pegaram em armas, Biden transmitiu ao mundo livre um comovente grito de guerra na noite de terça-feira.

O discurso de Biden – e uma demonstração quase inédita de união entre as amargas divisões do Congresso – foi também uma declaração coreografada de determinação ao presidente russo Vladimir Putin, que abalou o mundo com ameaças nucleares e desencadeou a maior guerra europeia no terreno desde a Segunda Guerra Mundial.

“Na batalha entre a democracia e as autocracias, as democracias mostram que estão à altura da situação e o mundo está claramente a escolher o lado da paz e da segurança – este é o verdadeiro teste”, disse Biden, sem deixar de alertar para uma longa luta pela frente. “Vai demorar.”

O enquadramento de Biden do conflito na Ucrânia como o início de uma batalha memorável pelas liberdades ameaçadas por ditadores, destacou um dos temas-chave da sua presidência. Também estabeleceu um paralelismo aos apelos de Zelensky – que surgiu como uma figura global icónica ao jurar defender o seu país.

Antes, o presidente ucraniano tinha dito a Matthew Chance da CNN, numa rara entrevista, que embora o conflito seja regional, as suas implicações são universais.

“[Biden] é um dos líderes mundiais e é muito importante que o povo dos Estados Unidos entenda [que] apesar do facto de a guerra acontecer na Ucrânia... é uma guerra pelos valores da democracia e da liberdade”, disse Zelensky.

Foi um apelo ao qual Biden respondeu. O presidente foi à Câmara dos Representantes num momento em que a sua presidência é abalada por taxas de aprovação em queda, uma inflação alta, preços crescentes da gasolina e cansaço devido a uma pandemia que está agora a entrar no seu terceiro ano.
Ele tentou passar um sentimento de comando pessoal e unidade nacional evidente no impasse com a Rússia para apoiar a sua problemática agenda doméstica – retratando uma nação à beira de um rejuvenescimento próspero e gerador de empregos.

“Conheço este país. Vamos passar no teste, proteger a liberdade e os direitos, expandir a justiça e as oportunidades. E vamos salvar a democracia”, disse o presidente durante o crescendo do seu discurso.

"Vamos apanhá-los!” bradou, numa frase aparentemente improvisada depois de ter definido o estado do país como “forte”.

O discurso de Biden foi um dos argumentos mais confiantes para a sua agenda, pois ajustou as muito ridicularizadas “semanas da infraestrutura” do antigo presidente Donald Trump, declarando que a sua nova lei bipartidária criou uma “década de infraestrutura”, e prometeu combater a dependência dos opiáceos e financiar a polícia, e não o contrário.

Mas os rostos duros dos senadores republicanos quando ele se voltou para a política interna enfatizaram a profunda separação política no país, que ameaça transformar as eleições intercalares deste ano num desastre para os democratas.

As divergências claras em questões tão diversas como a política fiscal, o controlo das armas, o aborto e os gastos com a saúde, apenas evidenciaram e tornaram mais impressionante a posição unida quanto à Rússia na Câmara – onde muitos legisladores usaram as cores azul e amarela da Ucrânia. Numa Câmara dos Representantes que, recentemente, testemunhou uma terrível desconfiança entre republicanos e democratas relativamente à pandemia, sentia-se realmente o “muro de força” que Biden disse que Putin estava a encontrar no mundo inteiro, com os legisladores de partidos rivais a levantarem-se para aplaudir o presidente.

Um momento histórico

Rapidamente se tornou claro, depois de Biden entrar na Câmara dos Representantes, que Putin tinha alcançado uma tarefa quase impossível – unir a maioria das fações amargamente opostas de Washington em torno de um novo inimigo e de uma causa comum.

“Ao longo da nossa história, aprendemos uma lição: quando os ditadores não pagam um preço pela sua agressão, causam mais caos. Continuam a avançar”, disse Biden.

A união na Câmara esteve em paralelo, de forma ainda mais surpreendente, com a abordagem comum dos aliados dos EUA na NATO, onde o mundo democrático – revoltado com a tentativa de Putin de esmagar a liberdade – se uniu em torno da Ucrânia com as sanções e punições mais prejudiciais jamais aplicadas a uma grande potência. Grande parte do mérito por esse sucesso é de Biden, que passou semanas a persuadir aliados como a Alemanha a exercer mudanças surpreendentes na sua política em relação à Rússia.

Biden rapidamente adotou o papel de líder do mundo livre, uma postura familiar aos presidentes das décadas da Guerra Fria, que terminou numa derrota para a União Soviética que Putin está agora a tentar vingar. Ele aplaudiu o fracasso do líder russo em dividir os americanos e os aliados ocidentais em relação à invasão e detalhou ponto por ponto as sanções sufocantes que abalaram fortemente o sistema bancário e a economia da Rússia. Alertou os oligarcas, cuja riqueza aumentou durante as duas décadas de Putin no poder, que ia atrás dos seus “ganhos ilícitos”.

Biden falou para um público que ia muito além dos legisladores presentes e dos norte-americanos que o viam pela televisão.

Embora o porta-voz de Putin tenha insistido que o presidente russo não iria ver o discurso, toda a secção dedicada à Ucrânia foi planeada como uma mensagem de determinação implacável dos EUA e do Ocidente em relação ao líder russo. E ele pediu aos legisladores que se levantassem e aplaudissem a embaixadora da Ucrânia em Washington, que foi convidada da primeira-dama Jill Biden, para homenagear a coragem do seu povo.

“Putin errou. Nós estamos prontos. Estamos unidos... Permanecemos unidos”, disse Biden, alertando para o facto de o líder russo estar mais isolado do que nunca e de ter falhado nos planos.

Aos norte-americanos preocupados com a retórica nuclear de Putin e o efeito da guerra nos preços da gasolina, Biden disse: “vamos ficar bem”. E sublinhou que não enviará tropas americanas para combater os russos na Ucrânia – mas não deixou dúvidas de que os EUA defenderiam firmemente os seus aliados da NATO, incluindo aqueles da Europa do Leste.

Mas Biden também alertou para o facto de a luta para salvar a democracia da autocracia – que também enquadra o crescente confronto dos EUA com a China – seria longa.

“Quando a história desta era for escrita, a guerra de Putin contra a Ucrânia terá deixado a Rússia mais fraca e o resto do mundo mais forte”, disse ele.

Uma luta pela democracia em casa e no estrangeiro

O discurso de Biden sugeriu um ponto de inflexão na história para comparar com outros grandes momentos presidenciais antes das sessões conjuntas do Congresso, como o pedido do presidente Franklin Roosevelt de uma declaração de guerra contra o Japão em 1941, ou a cunhagem de Harry Truman de uma doutrina de apoio dos EUA a povos livres, antes de uma sessão conjunta do Congresso em 1947. O discurso de Truman formou a base da política da Guerra Fria numa luta ideológica de décadas contra a União Soviética, um projeto que Biden revitalizou para uma nova era, esta terça-feira.

De forma ainda mais pungente, Biden falou de um lugar na Câmara dos Representantes que foi vandalizado há pouco mais de um ano pelos rebeldes ligados a Trump. A fúria deles mostrou que a luta pela democracia não é apenas um conceito abstrato numa guerra a milhares de quilómetros de distância, mas que também acontece no país.

O amplo apoio na Câmara à defesa de Biden dos valores do mundo livre tem paralelo no país. Uma nova sondagem CNN/SSRS mostra que 83% dos entrevistados são a favor do aumento das sanções contra a Rússia após a invasão, mesmo que apenas 42% estejam pelo menos moderadamente confiantes de que Biden tomará as decisões corretas no conflito.

Embora o discurso de Biden tenha sido uma celebração da frente global unida contra Putin – que apareceu como um grito de guerra, mas que pode ser vista como excessivamente triunfante pelos russos perante a inflação em espiral causada pelas sanções globais – ele não apontou um caminho para sair do conflito. Não ficou a ideia de que o presidente estivesse a tentar traçar uma rampa diplomática para o líder russo ou que alguma mudança de comportamento em Moscovo pudesse resultar num alívio das sanções.

Também foi evidente que o presidente não mencionou diretamente a decisão de Putin de colocar o arsenal nuclear da Rússia num nível de alerta mais alto, apesar da preocupação com esse estado de espírito nas capitais ocidentais. Claramente, Biden não quis antagonizar ainda mais o líder russo.

Depois de falar da Ucrânia, avançou para abordar os altos preços e os abrandamentos nas cadeias de abastecimento que desanimaram muitos norte-americanos durante semanas – dizendo a dada altura “eu entendo”, referindo-se à miséria da inflação alta.

Tendo em conta a polarização nacional agravada pelas mentiras incessantes de Trump de que Biden é um comandante-chefe ilegítimo e os fortes ventos contrários enfrentados pelos democratas em novembro, é improvável que este discurso do Estado da União reanime a sorte política de Biden. Mas, nas próximas décadas, é provável que o discurso seja lembrado como o momento em que o Ocidente foi revitalizado diante de uma nova ameaça potencialmente duradoura da tirania à democracia.

“O momento é agora. O nosso momento de responsabilidade. O nosso teste de determinação e consciência, da própria história”, disse Biden ao encerrar o discurso. “É neste momento que se forma o caráter desta geração, em que encontramos o nosso propósito, em que forjamos o nosso futuro.”

“Bem, eu conheço este país. Vamos passar no teste.”

E.U.A.

Mais E.U.A.

Patrocinados