Dentro da batalha por Kherson: as forças ucranianas que fazem o reconhecimento em terreno inimigo

CNN , Vasco Cotovio, Sam Kiley, Peter Rudden e Olga Konovalova
23 nov 2022, 10:27

Metal amolgado, escombros carbonizados e vidros partidos cobrem o chão enquanto uma unidade de reconhecimento ucraniana invade um centro de comando russo nos arredores da cidade recentemente libertada de Kherson.

“Venham cá”, grita de repente um dos soldados ucranianos. “Tragam a maca e o estojo de primeiros socorros.”

Momentos depois, um soldado russo sai de um bunker, ferido na parte de trás das pernas. Ele é tratado por soldados ucranianos que o colocam de barriga para baixo, no chão, e lhe prestam os primeiros socorros.

“Ficámos aqui encurralados e fugiram todos”, diz aos soldados ucranianos. “Eu caí e fiquei ali deitado até ser de noite. Vieram buscar o meu capitão e mais nada. Disseram que voltariam para me buscar, mas ninguém apareceu.”

A troca foi gravada pela equipa de reconhecimento e partilhada com a CNN. Oferece uma visão valiosa sobre a árdua batalha pela cidade-chave de Kherson, no sul da Ucrânia, que culminou com a retirada russa de uma faixa de terra na margem oeste do rio Dnipro no início deste mês, um grande contratempo para a guerra do Kremlin.

A unidade ucraniana diz que o soldado russo foi levado para um local seguro e que os ferimentos dele foram tratados. Mas muitos daqueles que para aqui são enviados pelo Kremlin enfrentaram um destino muito diferente.

“Sofreram grandes baixas aqui”, disse o chefe da unidade de reconhecimento Andrii Pidlisnyi à CNN, analisando isto com algumas das outras imagens que ele e a sua unidade recolheram nos últimos meses.

O capitão de 28 anos, cujo nome de código é “Sneaky” ou “furtivo” em português, tem feito jus ao seu nome nas posições russas.

As forças dele operaram tão perto das linhas inimigas que chegavam a ouvir os soldados russos a conversar, a cozinhar ou a cortar lenha. A unidade identificou os alvos visualmente e com recurso a drones e, em seguida, transmitiu as coordenadas como alvos para a artilharia ucraniana.

Andrii Pidlisnyi, 28, reviews some of the footage he and his unit recorded while carrying out reconnaissance missions beyond enemy lines in Kherson.
Andrii Pidlisnyi, de 28 anos, revê algumas das filmagens que ele e a sua unidade gravaram durante as missões de reconhecimento além das linhas inimigas em Kherson (Vasco Cotovio / CNN)

Esta unidade inclui alguns dos voluntários internacionais melhor treinados que chegaram à Ucrânia, desde o início da guerra. Vindos dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, da Nova Zelândia e da Alemanha, bem como de outros países europeus, estes voluntários serviram as forças armadas dos respetivos países e alguns têm experiência de combate com as forças curdas contra o Daesh, na Síria.

No vídeo de um drone partilhado com a CNN, podemos ver os soldados de Moscovo a correr para uma trincheira enquanto os projéteis de artilharia chovem sobre eles. As primeiras salvas caem um pouco longe do alvo. Mas os soldados de reconhecimento, usando o drone, enviam ajustes minuciosos aos artilheiros. Segundos depois, nuvens de fumo e de pó irrompem dos bunkers e das trincheiras russas.

O horror de estar sob tal bombardeamento é notório quando vemos soldados russos a correr no meio do pó, freneticamente e em vão, em busca de segurança e cobertura, à medida que mais e mais projéteis explodem ao seu redor.

Durante o verão e no início do outono, foi este o padrão da guerra na frente de Kherson. Os soldados de reconhecimento ucranianos disseram que a Rússia tinha vantagem em termos de número de armas - disparando “80 tiros contra 20 dos nossos”, diz Pidlisnyi. Mas as armas modernas da NATO e de outros aliados ocidentais enviadas para a Ucrânia deram-lhes uma vantagem em termos de precisão. Por fim, depois de sofrerem o que Pidlisnyi calcula serem “50%” de baixas, os russos recuaram.

“Eles perderam muitas pessoas… por causa dos nossos serviços de informações, da nossa artilharia e do nosso sistema de rockets, especialmente os HIMARS e outros”, diz ele. “Antes de retirarem, perderam, só no último mês, cerca de 90 carros de combate.”

“É uma grande perda para eles, especialmente porque não têm muitos equipamentos novos para trazer para a frente de batalha”, acrescenta o chefe de reconhecimento.

“Meses de frustração”

A alegria que se seguiu ao sucesso da Ucrânia em empurrar a Rússia para leste, para longe da margem ocidental do rio Dnipro, foi um sentimento relativamente novo para Pidlisnyi e os homens dele.

“Foram meses e meses de pura frustração”, diz Jordan O'Brien. O neozelandês de 29 anos diz que voou meio mundo para fazer a sua parte “e enfrentar os rufias”, e luta no sul da Ucrânia como parte de uma unidade antiblindados, desde junho.

“Estava a ser difícil para nós termos qualquer efeito no campo de batalha. Era realmente muito difícil chegarmos a uma posição de onde pudéssemos ver os blindados russos”, diz O'Brien. “Estavam bem escondidos.”

Jordan O'Brien, 29, flew across the globe from his native New Zealand to help Ukraine "stand up to bullies," in a reference to Russian President Vladimir Putin.
Jordan O'Brien, de 29 anos, voou meio mundo desde a sua terra natal, a Nova Zelândia, para ajudar a Ucrânia a “enfrentar os rufias”, numa referência ao presidente russo Vladimir Putin (Vasco Cotovio / CNN)

O britânico Macer Gifford partilha uma visão semelhante. “Os últimos meses foram absolutamente intensos”, diz o veterano de 35 anos da guerra na Síria. “Os russos usaram quase todas as táticas sujas possíveis, incluindo bombardeamentos intensos a áreas civis. Portanto, é incrivelmente perigoso, cansativo, e destrói-nos a alma.”

As forças russas capturaram Kherson e a área circundante no primeiro mês de invasão da Ucrânia. Tiveram tempo para assentar e fortalecer as suas posições, meses antes de Kiev anunciar um contra-ataque no verão. A Rússia usou artilharia pesada para manter as forças ucranianas à distância, intensificando os bombardeamentos pouco antes de se retirar.

“As últimas semanas em especial foram particularmente intensas porque fomos atingidos por uma grande quantidade de artilharia”, diz Gifford. A unidade sobreviveu, mas a pressão foi imensa. “Se há alguma coisa que nos quebre, neste país, será a artilharia”, acrescenta O’Brien. “Felizmente, toda a gente é muito forte.”

Os últimos dias

Pidlisnyi e os homens dele sentiram um enorme alívio quando começaram a ouvir falar sobre uma possível retirada russa no Dnipro.

“Sneaky” diz que os exércitos de Moscovo deram início à retirada de Kherson ao abrigo da escuridão, entre 8 e 9 de novembro, movendo a segunda e terceira linhas defensivas em direção a Kherson e às aldeias vizinhas. A primeira linha de defesa foi a última a mover-se, pela manhã, diz Pidlisnyi, deixando para trás várias filas de minas terrestres para cobrir a retirada, na esperança de emboscar e abrandar as forças ucranianas.

A 10 de novembro, todas as forças russas na margem ocidental tinham recuado para perto do Dnipro e começaram a atravessar para a margem leste, diz Pidlisnyi. A 11 de novembro, a retirada estava concluída e confirmada pelo Ministério da Defesa da Rússia no canal oficial do Telegram.

Damien Rodriguez, vindo do Bronx e especialista em explosivos da unidade, diz que teve dificuldade em acreditar que os russos simplesmente arrumaram as coisas e partiram.

“Ouvimos rumores, mas não tínhamos a certeza”, diz Rodriguez, um veterano de 41 anos da campanha curda contra o Daesh. “Eu não acreditava completamente até estarmos no terreno e vermos que todos eles tinham abandonado as suas posições.”

Os meses de combates valeram a pena, no final de contas, diz ele.

“Vemos os aldeãos… vemos toda a gente a chorar e a agradecer-nos pela ajuda… por ajudarmos a libertar as suas aldeias”, diz Rodriguez. “Foi tal e qual como na Síria, quando estávamos a libertar as aldeias do Daesh.”

“A quantidade de pessoas que vinham às ruas, sinceramente, parecia a Segunda Guerra Mundial… As pessoas atiravam-nos flores e outras coisas. Foi incrível”, acrescenta Gifford.

Depois de retiradas caóticas, primeiro de Kiev e depois de Kharkiv, o Ministério da Defesa russo afirmou que a retirada de Kherson foi uma decisão calculada e executada de forma profissional.

“Nenhuma peça de equipamento militar ou de armamento ficou para trás na margem ocidental”, disse o ministério.

Macer Gifford, 35, fought alongside Kurdish soldiers against ISIS in Syria, but says the feeling of liberating Kherson reminded him of World War II.
Macer Gifford, de 35 anos, lutou ao lado dos soldados curdos contra o Daesh, na Síria, mas diz que a sensação de libertar Kherson o fez lembrar a Segunda Guerra Mundial (Vasco Cotovio / CNN)

Mas “Sneaky” e a unidade dele contestam esse relato. Embora os soldados russos tivessem tido cerca de uma semana para preparar a retirada, acabaram por partir à pressa.

“Viemos com outra unidade de informações para verificar as posições deles e descobrimos que fugiram muito depressa da primeira linha e deixaram muitas coisas para trás, documentos e coisas do género”, explica Pidlisnyi.

Um vídeo partilhado pela unidade com a CNN mostra dezenas de caixas de munições, militares e documentos pessoais. “Eles deixaram para trás uma grande quantidade de munições, desde antiaéreas a granadas e também armas pequenas”, diz Gifford.

Esta foi uma surpresa agradável para os homens da unidade.

“Consegui recolher algumas coisas muito boas porque aqui na Ucrânia podíamos estar mais bem equipados. Temos poucas munições”, explica Rodriguez. “Uso um drone e liberto todo o tipo de munições, e também monto armadilhas, portanto, fiquei com alguns detonadores bons e umas granadas extra.

“Chamamos a isto reatribuir os recursos”, acrescenta.

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