"Como podemos confiar na Rússia?" Lituanos com medo da invasão juntam-se à milícia fronteiriça

CNN , Nina dos Santos e Lindsay Isaac
2 jul 2022, 10:00
Milícias lituanas

Ter um vizinho como a Rússia ao fundo da rua significa que Vytas Grudzinskas, de 59 anos, não consegue descansar muito. “É à noite que vejo melhor os soldados”, diz ele, apontando para uma zona de relva por trás do jardim do vizinho.

“Eles usam um campo de tiro por trás daquele campo. À tarde, ouvimos as armas”, disse ele.

Grudzinskas tem a sua própria arma, uma metralhadora, que mantém sempre à mão trancada num armário, uma vez que o cão de guarda dele, um terrier maltês, pode não ser tão eficaz na batalha.

A pequena cidade de Kybartai, onde Grudzinskas vive, fica dentro dos limites da NATO e da União Europeia, mas também se situa ao longo de uma das fronteiras mais problemáticas do mundo - o corredor Suwalki. Esta extensão de terra, com cerca de 100 quilómetros de largura, está ensanduichada entre Kaliningrado - o nicho báltico da Rússia altamente fortificado e com armas nucleares - e o seu aliado, a Bielorrússia. Esta faixa - vista por muitos analistas como um ponto fraco dentro da NATO - está bem presa pelo Kremlin. O medo é que, caso a Ucrânia caia, a Rússia possa avançar por este território, possivelmente isolando em poucos dias os estados bálticos.

Membros novos da milícia centenária da Lituânia, os Fuzileiros, prestam juramento numa cerimónia na segunda-feira em Kalvarija, na Lituânia (CNN)

As marcas da ocupação soviética são profundas nesta zona da Europa. Dezenas de milhares de lituanos foram deportados à força para gulags na Sibéria e no extremo norte, pelos soviéticos, nas décadas de 1940 e 1950. Quase 30.000 prisioneiros lituanos morreram nos campos de trabalhos forçados.

“O meu pai foi enviado para Sakhalin, no extremo oeste da Rússia, e passou lá 15 anos”, disse Grudzinskas. “No primeiro ano, comeu relva para sobreviver.”

Portanto, quando a Rússia anexou a Crimeia em 2014, Grudzinskas juntou-se à milícia voluntária da Lituânia - os Fuzileiros - e empunhou armas no seu próprio quintal.

Isso significa que ele é a primeira linha de defesa se os soldados do Kremlin, estacionados a 18 metros de distância no enclave russo, decidirem pisar o solo da NATO.

“Como podemos confiar na Rússia? Com a nossa história?”, perguntou ele. “Claro que tenho medo. Como não teria?”, acrescentou. “A minha família vive aqui. Construí esta casa com as minhas próprias mãos.”

A milícia de Fuzileiros, com 103 anos, viu os seus números aumentarem desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro, segundo o seu comandante.

Atualmente são cerca de 12 mil os membros voluntários, disse Egidijus Papeckys, comandante do 4º Comando Regional dos Fuzileiros. E esse número aumenta dez vezes a cada mês, disse ele.

Desde os primeiros dias da guerra na Ucrânia, o número de novos recrutas que se querem juntar à milícia aumentou de 10 ou 12 por mês para mais de 100.

Novos voluntários dos Fuzileiros Lituanos participam numa cerimónia de juramento nesta segunda-feira (CNN)
As armas da milícia são principalmente doadas pelas Forças Armadas Lituanas e através de esforços de financiamento coletivo (CNN)

No seu quartel-general na cidade de Marijampole, no interior do Corredor Suwalki, Papeckys mostra parte do arsenal à disposição da sua unidade, incluindo armas de assalto, pistolas e lança-granadas.

O homem de 51 anos também está desesperado por evitar o regresso ao domínio russo. O pai dele foi enviado para a Sibéria, assim como a família da mulher dele.

“Lembramo-nos da ocupação soviética e não queremos voltar a isso. Somos pessoas livres”, disse Papeckys.

Numa cerimónia de juramento realizada no 103.º aniversário da milícia dos Fuzileiros, na cidade vizinha de Kalvarija, o novo membro Karolis Baranauskas diz que sempre se interessou pela organização, mas que a guerra na Ucrânia o chamou à ação. Embora tenha nascido em 1990, o ano em que a Lituânia se tornou independente da União Soviética, ele diz que “todos os lituanos sabem que a Rússia é uma ameaça. E os acontecimentos recentes provam isso mesmo.”

Para proteger melhor os países bálticos, a NATO reformulou radicalmente o seu plano de defesa nesta zona do mundo, um anúncio feito antes de uma cimeira em Madrid, esta semana. Diz que irá aumentar a sua presença na região o suficiente para repelir qualquer ataque em tempo real, em vez de enviar tropas para recapturar território depois de já ter sido tomado.

Isso significará milhares de novos soldados, que a Lituânia gostaria de ver destacados de forma permanente ao longo dos 1000 quilómetros da fronteira do pequeno país com a Bielorrússia e a Rússia.

O Ministro da Defesa adjunto, Margiris Abukevicius, admite que pode demorar dois anos até que esses soldados estejam posicionados. Mas ele diz que se sabe agora que a capacidade militar precisa de uma atualização substancial em Suwalki e noutros lugares. O corredor, também conhecido como “Suwalki Gap”, foi sempre motivo de preocupação, segundo Abukevicius. Sabe-se que é um “ponto fraco” dos países bálticos e da NATO.

“Na situação atual, entendemos muito melhor esta vulnerabilidade”, disse ele à CNN numa entrevista na terça-feira no Ministério da Defesa em Vilnius, a capital da Lituânia. “Acho que a NATO entende isso e toma decisões”, disse ele. “Espero realmente que a cimeira da NATO desta semana dê uma resposta muito forte e uma direção muito clara para onde deve seguir a adaptação a longo prazo da NATO.”

Ao mesmo tempo, a Lituânia diz que tem evitado os constantes ataques cibernéticos russos às suas instituições públicas e ao setor privado, nos últimos dias, após a decisão da semana passada de impedir que alguns bens, como os cereais e o aço - que estão sujeitos às sanções da UE - fossem transportados de comboio para Kaliningrado. Embora os ataques cibernéticos dos piratas russos sejam relativamente comuns na Lituânia, Abukevicius diz que o bloqueio foi o “gatilho”.

“Vemos um aumento na atividade nas instituições públicas contra alguns operadores críticos - especialmente os transportes e a comunicação social”, disse Abukevicius.

Durante a prática de tiro ao alvo num campo de tiro aninhado na paisagem exuberante de Marijampole, Grudzinskas e outros membros da unidade de Papeckys apontam as suas armas aos alvos, tal como fazem os soldados russos por trás da rua de Grudzinskas.

Os tiros que disparam interrompem momentaneamente o silêncio, mas, por enquanto, mantém-se a frágil paz.

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