Como negociar com Putin - e evitar uma "estaca no coração" do sistema que evitou uma guerra mundial

CNN , John J. Sullivan
23 fev 2023, 08:00
Vladimir Putin nas celebrações do Dia da Vitória, em Moscovo (AP Photo)

OPINIÃO. Ex-embaixador norte-americano em Moscovo assume ter acreditado – e praticado – o caminho diplomático com a Rússia, que fracassou a 24 de fevereiro de 2022. Mas dá pistas sobre como “negociar” com Putin. E avisa: “A guerra de Putin ameaça colocar uma estaca no coração do sistema internacional criado após a Segunda Guerra Mundial que tem impedido outra guerra mundial”.

'Charada diplomática'. Um relato esclarecedor das negociações dos EUA com a Rússia

 

Nota do Editor: John J. Sullivan foi Embaixador dos EUA na Rússia de dezembro de 2019 a outubro de 2022. Antes, foi secretário de Estado Adjunto dos EUA. E é agora sócio da Mayer Brown LLP e membro distinto da School of Foreign Service da Universidade de Georgetown. As opiniões aqui expressas são exclusivamente suas.

 

Há quase exatamente um ano, sentei-me no meu gabinete na Embaixada dos EUA em Moscovo, a ler relatórios sobre o brutal ataque militar russo à Ucrânia. Fiquei atordoado - mas não surpreendido - com a gravidade do que se estava a desenrolar.

Durante semanas, tinha dito a toda a gente a que podia que o Presidente russo, Vladimir Putin, iria lançar uma guerra no continente europeu a uma escala como não se via desde a Segunda Guerra Mundial.

Embora confiante na minha avaliação anterior à guerra, eu estava desconsolado. Durante dois anos, tinha trabalhado arduamente como embaixador dos EUA para fazer progressos, mesmo que modestos, nas poucas áreas em que era possível qualquer diálogo com os russos.

A minha abordagem foi reafirmada na sequência da reunião do Presidente Joe Biden em Genebra com Putin, em junho de 2021. Ninguém na nossa delegação americana em Genebra tinha qualquer ilusão de que iríamos fazer progressos em qualquer questão em particular, mas todos concordaram que era do interesse dos Estados Unidos tentar.

O envolvimento com os russos após a cimeira mal tinha começado quando se verificou uma mudança sísmica. A história sangrenta da anexação pela Rússia de território da Ucrânia em 2014-2015 tinha ensombrado a nossa relação com Moscovo, mas não a tinha partido.

Embora as relações fossem medonhas, ainda estávamos à procura de formas de estabilizar o nosso envolvimento com a outra superpotência nuclear do mundo. No entanto, o que os funcionários dos serviços secretos norte-americanos disseram aos responsáveis políticos no final de 2021 sobre os preparativos da Rússia para uma invasão da Ucrânia, mudou tudo aquilo em que tínhamos estado a trabalhar.

Imediatamente, o nosso envolvimento foi reduzido à grave ameaça russa à Ucrânia e às “garantias de segurança” que a Rússia procurava dos Estados Unidos e da NATO. Era para mim evidente que os russos não tinham qualquer intenção de negociar de boa-fé.

Os interlocutores russos leram os pontos-chave que levavam preparados e não se envolveram num verdadeiro diálogo. Inspetores dos serviços de segurança russos monitorizavam todas as reuniões e chamadas telefónicas. Os russos estavam a fazer uma charada diplomática para lançar as bases de uma invasão que Putin já tinha decidido lançar. A única questão era quando.

Uma vez iniciada, a guerra agressiva da Rússia acabou com o pouco que restava da sua relação com os Estados Unidos - e com muitos outros países. Aprendemos que a história não tinha terminado e que, de facto, o dia 24 de fevereiro mudou a história. Esta não foi apenas uma guerra brutal contra a Ucrânia, foi uma guerra contra a Europa.

A guerra mudou coisas grandes e pequenas, desde o lugar onde vivia em Moscovo até à posição da Rússia no mundo. Tive de mudar-me para o complexo da Embaixada porque o ritmo das teleconferências com Washington, combinado com uma diferença horária de oito horas, significava que tinha de estar disponível a todas as horas.

Mais significativamente, a invasão atravessou a economia global, incluindo os mercados de energia e de cereais. E, mais tragicamente, massacrou milhares de inocentes e causou um sofrimento indescritível a milhões de ucranianos por causa de uma escolha política de Putin na sua busca pelo império.

Para tentar defender o indefensável, Putin propagou uma falsa narrativa de que a invasão era necessária para “desnazificar” e desmilitarizar a Ucrânia. Afirmou que a Ucrânia estava envolvida num “genocídio” contra russos e russófonos e estava à beira de atacar a própria Rússia - daí a “Operação Militar Especial” de Moscovo.

Esta justificação para a guerra agressiva da Rússia contra a Ucrânia é absurda e foi rejeitada por maiorias esmagadoras na Assembleia Geral da ONU e no Tribunal Internacional de Justiça.

No entanto, a impiedosa violência russa (que obrigou quase 15 milhões de ucranianos a tornarem-se refugiados ou deslocados internamente), os ataques catastróficos com mísseis contra alvos civis e a ocupação ilegal do território soberano ucraniano continuam. E tudo isto feito por um país, a Rússia, que é membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, cuja missão é preservar e defender a paz mundial.

A guerra é uma ameaça existencial à Ucrânia e um grave desafio de segurança para a Europa, os Estados Unidos e os nossos aliados e parceiros em todo o mundo. Mas é mais do que isso. A guerra de Putin ameaça colocar uma estaca no coração do sistema internacional criado após a Segunda Guerra Mundial, que até agora tem impedido outra guerra mundial, e deve ser combatida por qualquer nação que rejeite noções arcaicas de império e guerras de conquista.

Este é um problema global ameaçador que só irá agravar-se - só o custo económico é espantoso - até que seja travado e invertido em termos aceitáveis para a Ucrânia, de modo a proteger a sua soberania e segurança.

“Os russos não negociaram de boa fé antes da guerra, e não o farão agora”. John S. Sullivan

Esta é uma ordem alta, uma vez que a Operação Militar Especial de Putin se torna triturante com o subtexto de chantagem nuclear. O governo de Putin não negociará nem transigirá nos seus objetivos de guerra, que procuram a eliminação do governo em Kiev e a subjugação do povo ucraniano.

Os russos não negociaram de boa fé antes da guerra, e não o farão agora. Não há um “caminho de saída” até Putin atingir os seus objetivos de longa data.

Digo isto com um coração pesado, como uma pessoa que defendeu a continuação das negociações com o governo russo, mesmo quando a espiral descendente da nossa relação se acelerou. Deixei um lugar confortável em Mahogany Row no Departamento de Estado como Secretário de Estado Adjunto para servir como embaixador dos EUA em Moscovo e assumir a liderança nessas negociações.

Mas a minha opinião, tal como a de tantos outros, mudou quando, a 24 de fevereiro, enormes enxames de soldados, tanques, aviões e mísseis russos atravessaram a fronteira internacional para atacar a Ucrânia e o seu povo. Agora não é o momento para negociações. Por outro lado, o Presidente Biden deixou bem claro que os Estados Unidos não querem uma guerra com a Rússia.

Isto levanta a famosa questão de Lenine: Que fazer? Creio que o caminho a seguir pelos Estados Unidos é, em primeiro lugar, duplicar a diplomacia para convencer as nações que não se juntaram para apoiar firmemente a defesa da Ucrânia da necessidade moral, política, legal e militar de o fazer.

Segundo, aplicar vigorosamente as sanções existentes e os controlos de exportação para “fazer passar fome” as forças militares russas, mas não o povo russo.

Terceiro, fornecer à Ucrânia todo o equipamento e fornecimentos, militares e outros, necessários para expulsar os invasores do seu território soberano.

Quarto, ter paciência e a coragem das nossas convicções coletivas (com aliados, parceiros e outros).

Só então o governo russo compreenderá que os objetivos da sua Operação Militar Especial não podem e não serão alcançados. Só então é que o governo russo negociará de boa fé. E só então a paz voltará à Europa.

 

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