"Bucha criou um problema moral para as negociações de paz mas temos de prossegui-las": entrevista exclusiva ao porta-voz de Zelensky

José Miguel Sardo
5 abr 2022, 07:00

Serguii Nikiforov reconhece que a descoberta de crimes de guerra por parte da Rússia, nomeadamente o massacre em Bucha, vai representar provavelmente um “problema moral e político” para Zelensky mas sublinha que “qualquer guerra termina sempre com um acordo de paz”. Até lá, espera que o Ocidente ataque - mas a sério - o Kremlin num dos sítios onde mais lhe dói: "É preciso destruir a economia russa"

Serguii Nikiforov acompanhou esta segunda-feira o presidente Volodymyr Zelensky à cidade de Bucha, naquela que é a primeira deslocação do chefe de Estado ucraniano fora da cidade de Kiev desde o início da invasão russa. Em entrevista à CNN Portugal, o porta-voz presidencial dá conta de um cenário “horrendo” do qual já foram retirados mais de 400 cadáveres de várias valas comuns - “a maioria são civis, alguns com marcas de tortura, outros com sinais de execução e também muitas mulheres com marcas de violação”. Serguii Nikiforov, que faz parte da equipa reduzida que acompanha em permanência o presidente Zelensky, afirma que vários investigadores ucranianos estão já a analisar as provas encontradas no local e que, segundo ele, indiciam crimes de guerra levados a cabo por unidades militares russas que já foram identificadas, quando se tentam agora apurar os nomes dos responsáveis militares envolvidos nas execuções, pilhagens e violações. Nikiforov não exclui que este cenário se possa repetir em zonas ainda sob ocupação russa quando o presidente Zelensky anunciou domingo a criação de uma equipa de magistrados que vai coordenar o inquérito aos crimes de guerra russos com o Tribunal Penal Internacional. Serguii Nikiforov confessa uma certa desilusão com o papel da ONU em todo o conflito, mas não esconde a vontade de julgar todos os responsáveis de crimes, possivelmente com a criação de um Tribunal Penal Internacional para a Ucrânia nos mesmos moldes daquele que julgou os crimes na ex-Jugoslávia ou no Ruanda. 

O que sabemos hoje sobre o que ocorreu em Bucha durante a ocupação russa da cidade nos arredores de Kiev e de que provas dispõe neste momento o governo ucraniano para falar de crimes de guerra?
Foi a primeira deslocação do presidente fora de Kiev, o que mostra a gravidade da situação e as prioridades do presidente. Desde há mais de 30 dias que as tropas russas tentavam, sem sucesso, alcançar a cidade de Kiev sendo sempre travadas pelo exército nesta zona entre Bucha, Hostomel, Irpin e outras cidades-satélite da capital. Ao fracassarem neste avanço sobre Kiev, os russos foram obrigados a retirar as tropas. Há alguns dias, os militares ucranianos entraram na cidade e descobriram provas horríveis do que se passou na localidade. Antes de mais retirámos cerca de 410 cadáveres da zona esta segunda-feira manhã, quando continuamos a encontrar mais corpos. Muitos destes corpos foram descobertos em valas comuns, alguns tinham marcas de tortura, alguns tinham marcas de bala na nuca, ou seja, foram executados, muitos tinham as mãos e os pés atados, havia também corpos de crianças assim como de mulheres com marcas de violação. Esta descoberta leva-nos hoje a falar de crimes de guerra, pois, se algumas das vítimas eram de facto de militares, a maioria eram civis. E falamos de crimes de guerra pois estas ações não têm nada que ver com uma ação militar. Além das vítimas, a pilhagem nesta área foi generalizada. Descobrimos que todos os objetos de valor que se encontravam nas casas e apartamentos desapareceram e foram levados por militares russos.

Durante a visita a Bucha, Zelensky falou também de genocídio.
É uma questão um pouco diferente que tem que ver com a forma como Vladimir Putin sempre rejeitou reconhecer a Ucrânia como um país soberano. Nós ouvimos os discursos do presidente russo e vemos como sempre se referiu à Ucrânia como uma parte do espaço de influência da Rússia ou da antiga União Soviética. Para ele a Ucrânia é uma parte da Rússia e por isso rejeita o direito do nosso país a existir. E por isso falamos de genocídio pois vemos como o exército russo está a matar a nossa população ao mesmo tempo que o presidente russo rejeita reconhecer-nos como um país soberano.

A Rússia rejeitou a responsabilidade no massacre de civis em Bucha e o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, falou mesmo de um “ataque encenado”. As provas que recolheram até agora permitem apurar responsabilidades? Tratou-se de uma ação levada a cabo diretamente pelo exército russo ou por algum grupo paramilitar pró-russo?
Nós já conseguimos identificar as unidades do exército russo que se encontravam nesta área e sabemos quem são e posso confirmar que se tratavam de soldados do exército russo. Claro que a investigação não está terminada e temos muito trabalho pela frente, mas os nossos investigadores vão conseguir agora identificar os nomes dos responsáveis. Basta lembrar a forma como os investigadores ucranianos conseguiram apurar o nome dos responsáveis da queda do voo MH17 em 2014 e isso dá-nos a esperança de que possamos também identificar os comandantes das unidades militares russas responsáveis por estes crimes. O Tribunal Penal Internacional está já a investigar estas provas, assim como ONG como a Human Rights Watch. Estamos assim no processo de documentar estes crimes e tentar levar os seus responsáveis a tribunal.

O objetivo da Ucrânia é de alguma forma a criação de um Tribunal Penal Internacional para a Ucrânia, no mesmo modelo daquele criado para a ex-Jugoslávia ou o Ruanda, para julgar os responsáveis destes crimes de guerra?
Não lhe posso avançar muitos detalhes sobre esse ponto, mas a ideia geral é fazer algo assim.

Há relatos também de valas comuns em Kherson e ainda é pouco clara a situação em Mariupol. O presidente Zelensky afirmou que poderiam surgir mais provas deste tipo de crimes noutras zonas ainda ocupadas pelos militares russos. A situação em Bucha é uma exceção ou um exemplo do que se passa noutras regiões ocupadas pelo exército russo?
Deixe-me dizê-lo desta forma: esperamos que seja uma exceção mas tememos que seja um exemplo. As forças russas abandonaram toda a região de Kiev e é a primeira zona do país a ser libertada e onde encontrámos estas provas de crimes de guerra. Infelizmente consideramos que os mesmos tipos de crimes ocorreram ou estão a ocorrer noutras zonas ainda ocupadas pelos militares russos. Mas para confirmar e ver com os nossos próprios olhos temos primeiro de conseguir desocupar essas áreas. Para já, o que temos é diversos testemunhos que apontam nesse sentido, acompanhados de alguns vídeos. Mas para documentar devidamente estes crimes é preciso primeiro que possamos retirar os soldados russos dessas zonas e constatar a situação no terreno. Mas, infelizmente, há um risco de que os crimes de guerra a que assistimos em Bucha possam ter ocorrido também noutras zonas.

Pensa que os ataques contra zonas civis, o recurso a armas proibidas e agora estes relatos de massacres de civis representam de alguma forma um sentimento de impunidade por parte de Putin, sem tropas estrangeiras nem observadores internacionais no terreno?
Alguns países estão a ajudar-nos muito com armas e ajuda humanitária, mas nesta guerra lutamos sozinhos. Claramente Putin esperava que Kiev caísse em apenas alguns dias e que de alguma forma a diplomacia e as negociações rematassem esta espécie de guerra-relâmpago, mas as suas tropas fracassaram e a situação agora é diferente daquela que estava prevista. Se recuarmos oito anos vemos como Putin violou princípios básicos da legislação internacional e da diplomacia. Nenhum país pode modificar as fronteiras de outro país como fez o presidente russo, primeiro na Crimeia e depois na região de Donbass. Foi castigado de alguma forma? Eu diria que não. É verdade que a economia foi afetada pelas sanções internacionais, mas de forma muito parcial, digamos que a economia ficou estagnada ou pelo menos não cresceu à velocidade prevista, mas esse foi o único castigo que teve de enfrentar. E nessa mesma lógica é óbvio que terá pensado que, se não foi castigado, então poderia continuar a repetir as mesmas ações sem qualquer resposta. Existe de facto um certo sentimento de impunidade. E diria mesmo que se a Ucrânia não tivesse resistido desta forma talvez Putin tivesse voltado a não ser sancionado. Se os ucranianos se tivessem rendido e deixado que as tropas russas entrassem nas cidades e se a única reação dependesse da comunidade internacional, talvez Putin voltasse a sair impune desta invasão. É difícil de prever o que teria acontecido.

O presidente Zelensky voltou a pedir uma reunião urgente do Conselho de Segurança da ONU. O que pode esperar a Ucrânia de um órgão bloqueado quer pelo veto russo, quer pela abstenção de países como a China?
A ONU tem de fazer o seu trabalho, foi para isso que foi criada. Mas não temos grandes expectativas. Esperávamos que reconhecesse a Rússia como um agressor e que retirassem o direito de veto à Rússia, mas até que isso aconteça é verdade que não esperamos que o Conselho de Segurança seja eficaz e possa ter uma influência significativa sobre a situação atual.

As sanções atuais contra a Rússia são suficientes para a Ucrânia?
Para nós é claro que nem todas as sanções estão a funcionar. Algumas são apenas 'decorativas', aparentam ser boas mas não funcionam. Algumas foram eficazes, até que a Rússia começou a descobrir formas de contorná-las ou evitá-las. O que dizemos é que as sanções contra a Rússia têm de ser um processo, não basta anunciar um pacote, é preciso continuar a apresentar novas sanções até que a economia russa seja destruída. Não se trata apenas de aprovar sanções mas de conseguir destruir a economia russa. Esperamos e pedimos à comunidade internacional que agisse no sentido de aprovar cada semana um novo pacote de sanções e que estas estivessem em vigor até que a economia russa fosse destruída. Há ainda muitas medidas a tomar nesse sentido, como aprovar um embargo às exportações petrolíferas da Rússia, retirar todos os bancos russos do sistema interbancário SWIFT e não apenas alguns deles, as empresas privadas estrangeiras devem sair todas da Rússia e não continuar a pagar impostos que servem para financiar a guerra. Os barcos russos também têm de ser impedidos de entrar nos portos estrangeiros e de cruzar os canais e rotas marítimas. Sancionar não pode ser algo episódio ou de duas ou três rondas, tem de ser um processo contínuo para conseguir destruir a economia russa.

Qual será o impacto dos alegados crimes de guerra russos agora investigados em Bucha no processo de negociações entre a Ucrânia e a Rússia?
Em geral, e infelizmente, todas as guerras terminam com um acordo de paz. Não há exceções. Moralmente vai ser mais complicado para nós, politicamente vai ser mais complicado para o presidente Zelensky, mas não há outra opção a não ser prosseguir as negociações para obter um acordo de paz, mas ao nível moral vai ser difícil e complicado para nós.

Europa

Mais Europa

Mais Lidas

Patrocinados