Avdiivka: a batalha pelas "portas do Donbass" que a Rússia abriu com estrondo

22 nov, 22:00
Monumento de homenagem aos soldados soviéticos nos arredores de Avdiivka (André Luis Alves/Anadolu via Getty Images)

MIL DIAS DE GUERRA || Foi a batalha mais violenta desde a queda de Bakhmut. Durante meses o militares ucranianos aguentaram as suas posições debaixo de uma das maiores campanhas de bombardeamento da invasão russa. Mas acabaram traídos por uma conduta de esgoto

As ações que decorreram na manhã daquele dia afastaram o olhar horrorizado do público para o Médio Oriente. O Hamas tinha lançado uma ofensiva surpresa contra o sul de Israel, tirando a vida a centenas de civis e militares e sequestrando 247 pessoas. Ao mesmo tempo, mas com menos atenção, uma outra operação militar, bem mais sangrenta, tinha entrado em curso. O seu objetivo era capturar, de uma vez por todas, a cidade-fortaleza de Avdiivka, a “porta de entrada” para a conquista do Donbass. O que se seguiu foi uma das mais violentas batalhas da guerra na Ucrânia, onde um sistema de esgoto tramou os defensores e precipitou a Rússia para um período de rápidas conquistas territoriais.

Momentos antes do ataque, a Rússia conseguiu fazer o impensável. Durante semanas, as forças armadas russas foram capazes de acumular em segredo uma quantidade significativa de veículos, munições e de soldados na cidade de Donetsk, num conflito em que a tecnologia permite a cada um dos lados consegue ver todas as movimentações inimigas em tempo real. O exército, liderado pelo general Andrey Mordvichev, estava a preparar-se para lançar a sua ofensiva mais ambiciosa desde a queda de Bakhmut, contra uma localização que com posições defensivas preparadas desde 2015.

De acordo com um relatório dos serviços secretos britânicos tornado público, nas primeiras horas do dia 10 de outubro, a Rússia lançou “múltiplos batalhões blindados” contra os flancos da cidade, numa tentativa de a cercar. Durante dez dias, os russos tentaram, sem sucesso, sobrecarregar a primeira linha de defesa ucraniana, mas uma combinação mortífera de minas, drones e morteiros deixaram os campos em redor de Avdiivka num cenário distópico, repleto de crateras, restos de veículos blindados e cadáveres de soldados russos.

"Ao nascer do sol, os primeiros raios batem diretamente nos nossos olhos. O inimigo utilizou isso para nos atacar enquanto estávamos cegos", recordou um soldado ucraniano do 2.º batalhão mecanizado da Brigada Presidencial, com o nome de código “Texas”, acrescentando que, como os ucranianos ocupavam as posições de terreno mais elevada, um grande número de militares os russos que avançaram contra as suas posições perderam a vida nas primeiras horas.

Nas redes sociais começaram a chegar imagens que demonstram bem a dimensão das perdas russas. Dezenas de carros de combate e veículos blindados de transporte de pessoal são atingidos por uma mortífera combinação de artilharia, mísseis antitanque e minas. Só nas primeiras 24 horas, 36 carros de combate russos foram completamente destruídos. O número de soldados que perderam a vida no primeiro dia da ofensiva não é possível de determinar.

Mas a Rússia tinha um plano e manteve-o. No terreno a pressão continuou sem qualquer interrupção. Os bombardeamentos dos obuses de 152mm não davam tréguas e tornavam cada vez mais difícil aos soldados ucranianos na primeira linha de defesa vir à superfície para combater os adversários. A vasta rede de bunkers construída na cidade e nos seus arredores dava a entender que esta ofensiva, à semelhança de outras no passado, estava destinada ao fracasso. Sempre que os russos tentavam avançar, os ucranianos respondiam com uma carga mortífera de bombas de fragmentação, que transformam uma bomba em dezenas de explosivos menores que espalham estilhaços numa grande área.

Em poucos dias, centenas de soldados perderam a vida a tentar atravessar os densos campos de minas que cercam os arredores da cidade. As colunas de blindados que escapavam às minas e às armas antitanque tinham nos céus um difícil obstáculo: um exército de drones. Nas poucas ocasiões em que conseguiam ultrapassar todas estas barreiras, os militares russos esbarravam em posições fortificadas, muito difíceis de conquistar.

Só que a Rússia estava prestes a lançar no campo de batalha uma das suas armas mais mortíferas: as bombas planadoras. As KAB-500, como são conhecidas por transportarem 500 quilos de explosivos, são a transformação de uma bomba convencional, que no passado era largada precisamente por cima do alvo, numa “bomba inteligente”. O exército russo adapta estas bombas integrando-lhe umas pequenas asas e um mecanismo para as guiar via GPS, garantindo que estas bombas possam ser largadas a mais de 60 quilómetros do alvo para o atingir com uma grande precisão. O resultado foi devastador e a aviação russa não poupou esforços.

Ao mesmo tempo a Ucrânia estava a enfrentar fortes dificuldades materiais. No final do verão, a sua contraofensiva – que mobilizou, pelo menos, doze brigadas – falhou. Pouco depois, no final de setembro, uma guerra política na Câmara dos Representantes entre democratas e republicanos levou a que o pacote de ajuda militar de 65 mil milhões de dólares proposto pela administração Biden fosse repetidamente adiado. Foi preciso esperar até ao dia 24 de abril para que o documento fosse aprovado. As forças ucranianas, que dependem em larga medida da chegada deste armamento, começaram a sentir a falta de munições no mês de outubro, criando as condições perfeitas para o ataque russo.

Após o fracasso dos primeiros dias, tudo indicava que a Rússia se preparava para recuar e reorganizar as suas forças. Mas os líderes russos tinham outros planos: reforçaram a intensidade de ataques e destacaram ainda mais meios para a região. O redobrado esforço russo encontrou algum sucesso na região norte, conseguindo mesmo penetrar nos primeiros blocos residências da cidade. Mas foi a sul que chegou o principal sucesso. Com o recurso à construção de túneis, as forças russas foram capazes de penetrar num antigo sistema de esgoto que não estava a ser utilizado. Após semanas de trabalho, os militares russos conseguiram infiltrar cerca de 150 militares das forças especiais dois quilómetros atrás das linhas ucranianas.

Ao mesmo tempo, dezenas de edifícios soviéticos da cidade eram bombardeados com cada vez mais intensidade, perdendo a utilidade para os defensores. A situação era cada vez mais complicada para os homens ucranianos. No dia 9 de fevereiro de 2024, quando a situação era cada vez mais precária, Volodymyr Zelensky tomou a decisão de afastar o popular general Valerii Zaluzhnyi por Oleksandr Syrskyi. A medida não era popular entre os soldados. Valerii Zaluzhnyi era mais jovem e mais popular entre os seus homens. Syrskyi carregava consigo a reputação de ser “um carniceiro” devido à defesa cerrada de Bakhmut, que lhe valeu a alcunha de “general 200” (uma referência ao código soviético “Cargo 200” utilizado pelos militares para designar um morto em combate).

Os dias que se seguiram foram intensos. A aviação russa não dava descanso e, ao contrário dos primeiros dias quando unidades de militares inexperientes foram lançados ao ataque, a Rússia lançava agora os seus melhores soldados que enfrentavam as forças ucranianas em violentos combates casa a casa. A situação estava a tornar-se progressivamente insustentável. Dos flancos não chegavam notícias melhores. Defender o que restava da cidade estava a tornar-se cada vez mais caro e Syrskyi estava a ficar sem hipóteses e deu a ordem de retirada. Os últimos combatentes abandonaram Avdiivka no dia 17 de fevereiro, após 131 dias de ferozes combates.

A conquista deste bastião defensivo ucraniano foi mais do que um balde de água fria para os militares ucranianos. Esta ofensiva abriu um buraco com estrondo na frente ucraniana. Na prática, a cidade servia de “escudo” da cidade de Pokrovsk, a 48 quilómetros, que funcionou como centro logístico do exército ucraniano para toda a região do Donbass. Os dias que se seguiram à queda de Avdiivka foram de caos e instabilidade. O exército ucraniano demonstrou não ter qualquer plano alternativo à defesa da cidade, optando por não construir linhas defensivas na retaguarda. Este facto e desgaste do exército ucraniano, que também sofria com a falta de munições, levou a Rússia a assegurar os seus maiores ganhos territoriais desde o início do conflito, aproximando-se um pouco mais do seu principal objetivo: a conquista da região do Donbass. 

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