Às vezes ele até chora, sabem? 

Germano Oliveira , Enviado especial da CNN Portugal
14 mar 2022, 13:41
Roman Tsap, 37 anos, é voluntário de uma missão humanitária que está a caminho da Polónia para trazer 350 ucranianos para Portugal

REPORTAGEM - Um homem ucraniano chegou a Portugal em 2008. Tornou-se feliz por cá: apaixonou-se, teve dois filhos, domina o idioma, tem um emprego de que gosta, adora viver onde vive. Mas esta não é a história dele por cá nem sobre a felicidade que conquistou. É sobre a Ucrânia atual: as histórias anónimas estão cheias de bondade, solidariedade, dor, resistência, abnegação e amor certamente - e por vezes saem do anonimato e assim se aprende algo mais sobre a maneira como o mundo se move. Um mundo que agora se move em guerra. Recuemos ao início dela

A guerra acaba de começar, é 24 de fevereiro, mísseis e tropas entram Ucrânia adentro, invasão em curso: Andriy Mykolayovych liga para Portugal, "Roman, podes ajudar-me a salvar a minha família", claro que sim, "o que é que tenho de fazer, Andriy?", tens de ir à Eslováquia.

Roman Tsap, 37 anos e motorista da Carris, pede ajuda a um amigo para fazerem a viagem juntos, é preciso partilharem as horas de condução para chegarem depressa à Eslováquia mas há um problema, Andriy está em Kiev e os sites de informação e as televisões mostram imagens em tempo real de uma avenida enorme em que num dos lados não há qualquer carro a circular, é o lado que deixa os carros dentro da cidade, mas no outro lado da avenida está um formigueiro de carros, é o lado que tira os carros para fora de Kiev, Andriy vai precisar de tempo. 

No dia 28 Roman e o amigo saem de Portugal e no dia 3 Andriy aparece na Eslováquia com a mãe, a mulher e a filha de sete anos, a família está a salvo mas Kiev não e por isso Andriy despede-se e regressa à Ucrânia, há despedidas que não precisam de ser descritas para se saber como doem. Roman e o amigo deixam a família de Andriy em Valência, têm amigos lá e foi o que combinaram, missão cumprida, e entretanto Andriy chega a Kiev e descobre que está sem casa, um míssil atingiu o prédio onde vivia, a missão para salvar a família serviu acidentalmente para salvar a própria vida.

Roman fala com Andriy frequentemente, que fique esclarecido que Andriy Mykolayovych é um nome fictício porque os nomes não fictícios colocam vidas em risco nestes dias de guerra, Andriy e Mykolayovych são os primeiros dois nomes de Shevchenko, um craque da bola que fez muitos ucranianos felizes, que Andriy Mykolayovych seja então o nome fictício de alguém real a zelar pela felicidade futura de Kiev. Roman fala frequentemente com Andriy, "ele está a aguentar-se bem, está cheio de coragem e patriotismo", Roman elogia quem na Ucrânia tornou as comunicações gratuitas para as famílias se manterem em contacto, é assim que está a par dos atos de resistência de Andriy, e Roman elogia também quem decidiu desligar o funcionamento dos sistemas de GPS na Ucrânia, "é para baralhar o inimigo, tirámos também todas as placas das autoestradas para os russos não saberem para onde ir e eles estão perdidos lá, para nós não há problema, nós conhecemos os nossos caminhos", conta Roman, ele que agora está no caminho de uma nova missão de salvamento: o GPS do telefone tem Cracóvia, na Polónia, como destino, e as placas estão todas no lugar onde devem estar nesta autoestrada, uma placa em França a dizer "Poitiers" com uma seta em frente torna-se subitamente a garantia de que estamos num lugar em paz.

Cinco autocarros, 25 carrinhas, dois carros de apoio e 70 voluntários mobilizados "por vários empresários e particulares chocados com as notícias que chegam diariamente da Ucrânia" estão a circular rumo à Polónia, país que acolheu 1,7 dos 2,5 milhões de refugiados provocados por esta guerra: há três toneladas de roupa, medicamentos e mantimentos nas malas dos veículos e 350 lugares vazios que vão ser preenchidos no regresso a Portugal, são 350 pessoas a quem esta missão humanitária vai proporcionar segurança, são 350 ucranianos que vão ser recolhidos em Cracóvia para serem acolhidos em Portugal. Roman Tsap é um dos 70 voluntários, "é preciso ajudar, é preciso salvar, é preciso fazer alguma coisa", mas Roman sabe quem não virá com ele no regresso a Portugal: o pai e a avó, Roman acha o pai um herói mas já se chateou com o heroísmo dele, a coragem é algo que ora se admira ora nos causa medo quando envolve quem amamos.

Que se passa então com o teu pai, Roman?, "é assim, o meu avô morreu de cancro há uns meses e a minha avó ficou sozinha, quando a guerra começou o meu pai foi dormir para casa dela, ela tem mais de 80 anos, mas a casa fica muito perto de um edifício militar, eu pedi para eles saírem dali, 'pai, sai, os russos vão querer atingir esse edifício, estão a mandar mísseis para aí', mas ele decidiu ficar, 'não se passa nada, estamos bem', fartei-me de arranjar argumentos para ele sair, até me chateei, 'sai daí com ela, pai', eu tinha a certeza de que ia acontecer algo, um desastre", os filhos são hábeis a vencer os pais pelo cansaço da insistência e este pai pegou na sua mãe e seguiram juntos para a casa de um familiar numa aldeia, "no dia a seguir um míssil acertou naquele edifício militar e num parque de estacionamento que estava ao lado, aconteceu uma explosão", a casa da avó de Roman ficou quase toda intacta, "foi sorte", diz Roman, o pai deve ter achado coisas diferentes porque deixou lá um primo dele a tomar conta da casa para que ninguém a roubasse, "eu achei isso ridículo, a coisa mais valiosa que a casa tem é uma televisão, 'não vale a pena, pai, salvem as vossas vidas', e eles respondiam-me 'tu não sabes, tu não sabes a situação'". A situação é que o pai de Roman mora em Zaporizhzhia - foi lá que os russos atacaram uma central nuclear, um tiro fora do sítio ou um míssil equivocado e seria 10 vezes pior que Chernobyl -, o pai de Roman mora portanto em Zaporizhzhia e recusa-se a sair de lá, "é a minha terra, filho, não posso deixar a tua avó, não posso deixar a minha mãe", Roman entende, entende mas sofre com isso, "não se larga uma mãe, eu sei", diz Roman, "o meu pai não consegue largar o país, ele tem 60 anos, está a ajudar todos os dias a colocar obstáculos para o inimigo não passar, faz aquilo que pode e eu acho muito bem, eu prefiro o meu pai herói que o meu pai fugitivo", Roman junta as mãos enquanto diz isto, "mas é um risco grande, ele tem 60 anos, a minha avó mais de 80, a zona do meu pai ainda não está ocupada por russos mas está muito perto". 

Minutos depois, Roman repara que o telefone que estava a gravar a conversa já está desligado, aponta para ele, está a dar sinal para que seja ligado de novo, "tenho mais uma história", ele quer mesmo que se saiba isto:  "Sou padrinho do filho de uns amigos, tem a idade de um dos meus, cinco anos. Por razões de saúde, mãe e filho foram para a Ucrânia por esta altura, ela tem os pais lá, em Kharkiv, entretanto começaram a bombardear a cidade. Eles ficaram sem conseguir sair de casa, não conseguiam arranjar transporte, ficaram lá durante uma semana, entretanto arranjaram uma pessoa com carro, foram deixados no comboio - estava cheiíssimo, no lugar de quatro pessoas iam 13. Chegaram a Lviv, atravessaram a fronteira, apanharam um avião e vieram para Portugal. O filho ainda dorme mal, de vez em quando ainda acorda com gritos. A avó da criança acompanhou-os até à Polónia, veio para Portugal e agora vai regressar para a Ucrânia novamente: tem lá o marido, ele está com o braço partido mas já disse que vai pegar na metralhadora, 'quero defender a minha terra, não vou a lado nenhum', e a mulher vai ter com ele, vão ficar juntos. E eles podiam vir para Portugal se quisessem, não têm problemas de dinheiro, eles podem vir mas vão ficar. Que coragem voltar àquela cidade."

O gravador volta a ser desligado, Roman desvia o olhar e diz a frase mais previsível mas também a mais humana e por isso mesmo a mais importante de todas: "Às vezes até choro, sabes?".

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