Aqui cuida-se do futuro da Ucrânia. A creche em Lisboa onde se dá uma nova cor aos traumas de guerra

7 mai 2022, 10:00

Portugal já acolheu quase 12 mil menores refugiados da Ucrânia. A integração nos jardins de infância nem sempre é um passo fácil, daí que um grupo de mulheres ucranianas tenha juntado forças para criar uma creche em Lisboa. Aqui, os traumas de guerra são superados pela brincadeira, sem os receios de uma língua desconhecida. Os problemas resolvem-se com boa vontade. E colo

“O meu marido pediu-me, por favor, que salvasse a nossa filha. Eu disse-lhe que tinha muito medo, que não sabia o que fazer ao ir para um sítio novo, para um novo país. Não falo português. Falo inglês, mas muito pouco.” Foi no colo de Ilona Kubenko que Eva, de apenas quatro anos, cruzou toda a Europa para fugir à guerra. Juntas, só com uma mochila, com o essencial.

E é a esse colo que Eva volta, vezes sem conta, sempre que precisa de conforto. Mesmo que os dias estejam diferentes, menos solitários do que naquele 12 de março, quando mãe e filha chegaram a Lisboa sem conhecer ninguém. Ilona, 29 anos, era professora em Kiev. Agora, diz, ajuda como pode a cuidar de 40 crianças. A conversa é posta em pausa por uma menina que, com urgência, lhe pede ajuda para ir à casa de banho.

É uma das oito mulheres que aqui trabalha, todo o dia, sem receber salário em troca. Porque é dessa força feminina, para quem o sorriso de um filho é o que mais conta, que nasce este projeto em Lisboa: a creche Baby Shark. As salas enchem-se de esperança, pintada de azul e amarelo. As infâncias, interrompidas antes do tempo pela guerra, são retomadas.

Ilona com a filha Eva
Ilona tem 29 anos, era professora em Kiev

A ideia que encheu uma casa

Tatiana Voitseshchuk, 25 anos, tem o hábito de viajar sozinha. O trabalho, feito através do computador, deixou-a seguir até à Madeira. No dia em que ia regressar a Kiev, já de escala em Lisboa, percebe que não tinha como voltar. “Foi muito duro. Estava frustrada. Sentia náuseas. Tinha medo de qualquer barulho. Comecei a rezar, a pedir uma forma de contribuir com amor. E, três dias depois, vi uma mensagem num grupo de Telegram a dizer que estavam à procura de voluntários para um programa com crianças.”

Do outro lado estava Oksana Romaniuk, empresária ucraniana que vive em Portugal desde 2018. Em Dnipro, tinha já uma creche. E pensou que, perante as famílias que chegavam em massa, podia colocar essa experiência ao serviço daqueles que abandonavam a pátria. É assim que encontra um antigo hostel, completamente vazio, no centro de Lisboa, que acaba por lhe ser cedido gratuitamente.

“Éramos quatro mulheres ucranianas, sentadas no chão, porque não havia nada nestas salas. Sem mobílias, sem brinquedos, só o edifício. Não tínhamos uma visão clara, só queríamos ajudar”, recorda Tatiana.

Tatiana é uma das mulheres ucranianas que lançou a creche Baby Shark

A guerra em desenhos

O corrupio no corredor é constante. Alguns apenas de meias calçadas, deslizando na madeira. Há sempre qualquer coisa para fazer. Aulas de português, de inglês, horas de leitura, sessões de ioga, desenhos. Ou, pura e simplesmente, a brincadeira livre, só porque sim. Há meninas que, depois do cabelo arranjado, pedem para vestir um vestido de princesa – como quem volta a acreditar que é possível ser a protagonista de um conto de fadas. Há sorrisos, às vezes escondidos pela vergonha. E pelo trauma que é chegar a um país novo, a uma vida nova, fugidos de um conflito em tão tenra idade.

“Consigo ver pelos desenhos deles. Às vezes, quando olho para eles, confirmo que a terapia artística faz sentido. É assustador. Falam sobre morte, sobre sangue, sobre castigo, tudo isso. É um sinal claro de que estão traumatizados, afetados. Estão a melhorar, mas pode durar anos. É um trauma para a vida”, conta Tatiana.

Na creche Baby Shark há pelo menos uma ansiedade que se evita: a de ser deixado sozinho numa creche onde não se reconhece uma única palavra. “É um grande stress quando isso acontece. E aqui elas conseguem perceber tudo. E sentem-se confortáveis. São felizes aqui, podes perguntar às crianças como estão. Estão felizes porque conseguem perceber e brincar juntas”, afiança Ilona.

Tubarão é a mascote do projeto
Crianças também aproveitam para descansar, apesar do corrupio diário

Ajuda à integração

Portugal já recebeu, segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras cedidos à CNN Portugal, 11.948 menores refugiados. E, desde os primeiros dias, ficou claro para a comunidade ucraniana que não havia lugar para todos os que precisavam de uma creche ou jardim de infância. Porque, sem ter quem lhes fique com os filhos, estas mulheres não podem procurar um emprego, ganhar dinheiro, reorganizar a vida com o mais básico. Os maridos, quase todos, ficaram na Ucrânia a combater.

É por isso que este grupo de ucranianas junta forças a cada novo dia. Hoje são 40 crianças entre os três e os seis anos que aqui passam os dias ocupadas, distraídas. Há planos para integrar mais dez. Mas, mais espaço houvesse, mais viriam. “A nossa caixa de mensagens no Instagram está cheia, de mães a pedir para deixar as crianças, nem que seja uma hora, porque não sabem o que fazer. Precisam de trabalhar. Dizem-nos que vieram apenas com uma mochila, que não têm nada. É muito difícil. Para se tratar destes assuntos é preciso uma estratégia, é preciso calma”, explica Tatiana.

As 40 crianças que aqui passam o dia voltaram a sorrir e a confiar

O impacto da boa vontade

Tudo o que aqui está é fruto da boa vontade, de doações. Da tinta nas paredes à comida, das camas aos brinquedos, a solidariedade iluminou o rosto dos que passam o dia na Baby Shark. A renda não foi uma preocupação, mas é preciso garantir o restante. As contas mostram que, para assegurar o funcionamento até agosto, são necessários 35 mil euros. A maior parte já está coberta, mas todas as doações – seja em dinheiro ou noutro formato - são bem-vindas.

Um dos objetivos é poder pagar às oito mulheres, todas elas refugiadas, que aqui trabalham. “Elas trabalham, dedicam a sua energia e amor. Para coisas tão simples como um café pela manhã ou uma t-shirt. Porque está a ficar quente em Lisboa”, explica Tatiana.

Os lanches diários são também uma despesa. As crianças aprendem a dizer Maria com pronúncia portuguesa, porque a doçura da bolacha lhes entra pela vida. Alimenta-as, serve-lhes de brincadeira, devolve-lhes a infância. As educadoras riem-se. Mas não se esquecem que, há semanas, fugiam de uma guerra que nenhuma delas pediu.

Lanches também são tomados em ambiente de brincadeira

O medo da rua

Tatiana Voitseshchuk não chegou, ao contrário das mulheres com quem partilha os dias, a sentir a guerra à sua volta. “Quando vou à rua aqui em Lisboa e ouço algum barulho mais intenso, paro imediatamente. Não precisamos que uma bomba nos caia na cabeça para perceber que todos os que amamos estão em perigo.” Antes da entrevista, a mãe liga-lhe a contar que quatro rapazes da idade dela tinham morrido naquela manhã. A mãe não quis deixar Dubno, o pai e mais de 25 anos de casamento.

Os pais, os homens que ficaram na Ucrânia, são motivo constante de conversa. As crianças não deixam esquecê-los. “Eles querem voltar, estão sempre a falar de casa”, conta Ilona. Mas ainda não é o tempo. “Quando falo com o meu marido e pergunto se posso voltar, ele diz-me que ainda não, que ainda pode ser perigoso para nós. Aqui, podemos estar vivas. Mas precisamos de tempo, todos precisamos de tempo, para nos habituarmos a esta nova vida, a toda a situação na Ucrânia e no mundo.”

Mas, enquanto esse dia não chega, agradece-se. E aprende-se a ver o lado bom naquilo que não o tem, a guerra. Tatiana sempre viajou para encontrar novas experiências, alargar horizontes. Mas é, neste corredor de portas verdes, que encontra o destino que sempre desejou. “A minha vida finalmente ganhou sentido. Agora tenho consciência de que a caridade e o serviço aos outros é o que me torna completa. É tão melhor viver esta vida.”

Crianças já aprenderam algumas palavras em português

 

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