O legado do ano da guerra

28 dez 2022, 15:30

O ano de 2022 revelou aquilo que acredito ser o início de um novo ciclo que vai desdobrar-se em três eixos.

O primeiro será a geopolítica, crispada e bélica, onde os recursos serão canalizados para as respostas militares e energéticas, onde a real politik será a primazia e o humanismo ficará para segundo plano.

O segundo eixo será o aumento da vulnerabilidade dos mais pobres, desde logo com a crise dos cereais a deixar milhões de pessoas a morrer à fome nos países do Corno de África e não só, mas com impacto dentro da fortaleza-Europa; aqui começará um ciclo de descontentamento pelo custo de vista que levará ao surgimento de movimentos populistas, nacionalistas e de extrema-direita que acentuarão mais as diferenças entre europeus e não-europeus e Estados que farão a interpretação que quiserem da Convenção de 1951, podendo mesmo, acredito, colocá-la de lado e iniciar uma caça-ao-refugiado, banindo-os gradualmente com o fim dos documentos temporários de residência.

Por fim, e em terceiro lugar, as alterações climáticas. A Europa sofreu com temperaturas recorde, incêndios florestais e populações inteiras com perdas inconsoláveis, mas a verdade é que enquanto o continente se prepara para produzir mais energia a carvão, milhões de pessoas em países como Madagáscar são os primeiros a sofrer diretamente com estas consequências: os solos ficaram tão secos que já nada cresce, as economias, assentes no setor primário, ficam inviáveis e há regiões inteiras a colapsar. Também no Paquistão as fortes cheias causaram um cenário catastrófico, com mais de mil mortos e uma grande parte do país submerso ou aterrado em lama. São estes os primeiros refugiados climáticos, mas não os últimos nem os únicos. Enquanto a Europa tem de responder às suas necessidades de climatização de casas e produção industrial, milhares vivem na pele os efeitos das alterações climáticas e para esses, temo, a resposta será cada vez mais dura. Os portões de ferro da Europa não se abrem aos vulneráveis que não têm dinheiro para se traficarem até chegarem a um lugar seguro. 

Reformar um sistema falhado

É preciso reformar um sistema falhado, começando pela descrição de um refugiado como aquele que teve de fugir do seu país por motivos de força maior. Aqui englobar-se-ia a fome, a perseguição, a guerra, a violência generalizada, não deixando margem para interpretações e rejeições injustas.

No fundo, é perguntar a nós próprios: na mesma situação, teria eu alternativa senão fugir? Isto é o princípio definidor de um refugiado e também aquilo que o distingue de um migrante.

O medo de morrer não precisa de tradutor, ele é universal e transfronteiriço. Talvez a Europa ainda não tenha entendido isso.

Há múltiplas razões para um migrante atravessar uma fronteira, muitas delas sobretudo económicas. Procuram melhores condições de vida quando nascem em países cronicamente pobres. Se as fronteiras se fecham, atravessam-nas ilegalmente. Um refugiado é diferente. Será, obviamente, parte do fluxo migratório, mas aquilo que o distingue dos restantes é a sua história: a vivência de eventos trágicos, como ter ficado sem casa, sofrido um bombardeamento, ter sido torturado por discordar publicamente de um regime tirano, parte da família ter sido morta, uma filha ter sido violada ou a sua terra ter sido arrasada por inundações graves ou por uma seca prolongada. O medo de morrer não precisa de tradutor, ele é universal e transfronteiriço. Talvez a Europa ainda não tenha entendido isso.

O próximo ano, 2023, marca uma data redonda: dez anos desde a primeira vaga migratória onde milhares morreram afogados a tentar chegar a Lampedusa, em Itália. Na altura, Durão Barroso era presidente da Comissão Europeia e visitou a ilha. Referiu que “a União Europeia não podia aceitar que milhares morressem nas suas fronteiras. A imagem de centenas de caixões nunca me sairá da cabeça. É algo que alguém nunca conseguirá esquecer. Aquilo que posso prometer é que a Comissão fará tudo o que estiver ao seu alcance para ajudar a mudar a situação”. Desde então, cerca de 30 mil pessoas morreram no mar, mais de metade dos corpos foram encontrados.

Mesmo fechada nas suas fronteiras, as migrações continuarão a ser um dos grandes desafios da Europa. E a guerra na Ucrânia mostrou que, com vontade política, tudo é possível.

Colunistas

Mais Colunistas

Patrocinados