África do Sul pondera mudar local da cimeira dos BRICS por causa de Putin (e para que este não seja detido)

1 jun 2023, 18:48
Vladimir Putin e Cyril Ramaphosa (AP)

Caso o presidente russo pise solo sul-africano, o executivo do país terá de o deter - algo que quer evitar a todo o custo

O governo sul-africano está a ponderar mudar o local da cimeira dos BRICS devido ao mandado emitido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) para a detenção de Vladimir Putin.

De acordo com a Bloomberg, que cita fontes familiarizadas com o processo, alternativas como China e Moçambique estão a ser consideradas, uma vez que ambos não são Estados-parte do Estatuto de Roma, documento que estabeleceu a criação do TPI. No entanto, uma das fontes ouvidas pela publicação norte-americana descarta este último país por não ter as infraestruturas necessárias para acolher um evento desta dimensão.

Para já, o governo sul-africano não colocou, de forma oficial, esta hipótese em cima da mesa. "Tanto quanto sabemos, o local da cimeira foi anunciado como sendo Gauteng, na África do Sul. É o que sabemos até à data", disse Lunga Ngqengele, porta-voz do gabinete da ministra dos Negócios Estrangeiros da África do Sul, Naledi Pandor.

O governo liderado por Cyril Ramaphosa convidou Vladimir Putin, bem como os chefes de governo de Brasil, Índia e China, para a cimeira dos BRICS, agendada para os dias 22 a 24 de agosto deste ano. O acrónimo BRICS diz respeito aos cinco países que compõem o grupo (Brazil, Russia, India, China, South Africa), todos considerados superpotências económicas emergentes.

O problema da presença de Vladimir Putin em solo sul-africano prende-se com o mandado de detenção emitido pelo TPI a 17 de março. A par da comissária russa para os direitos das crianças, Maria Lvova-Belova, o presidente russo foi acusado de deportação ilegal e transporte ilegal de crianças de áreas ocupadas da Ucrânia para a Federação Russa.

A África do Sul, sendo Estado-parte do Estatuto de Roma, teria obrigatoriamente de deter o líder do Kremlin caso este entrasse no país, sob pena de violar o direito internacional e as próprias leis domésticas.

"Não há absolutamente nenhuma base legal para o governo sul-africano não prender Putin", disse à Fox News Priyal Singh, investigador sénior do Instituto de Estudos de Segurança (ISS), em Pretória.  "Como parte do Estatuto de Roma, a África do Sul tem a clara obrigação internacional de cumprir os seus compromissos e efetuar a detenção. Além disso, como país que incorporou estas obrigações na legislação nacional, o governo estaria efetivamente a violar as suas próprias leis se não procedesse à detenção”, completou.

No início desta semana, o governo de Cyril Ramaphosa anunciou que todos os líderes presentes na cimeira, incluindo Putin, iriam beneficiar de imunidade diplomática. "Trata-se de uma concessão normal que fazemos para todas as conferências e cimeiras internacionais realizadas na África do Sul, independentemente do nível de participação. As imunidades são para a conferência e não para indivíduos específicos. Destinam-se a proteger a conferência e os seus participantes da jurisdição do país anfitrião durante a duração da conferência", esclareceu o Departamento de Negócios Estrangeiros do país, citado pelo The Guardian. O executivo sul-africano explicou também que a imunidade diplomática pode não ser suficiente para anular o mandado de detenção.

Certo é que a África do Sul já falhou, por uma vez, o cumprimento de ordens do TPI: em 2015, o então presidente sudanês Omar al-Bashir deslocou-se ao país para um encontro de líderes da União Africana. Durante a sua estadia, Al-Bashir, alvo de dois mandados de detenção do TPI, um por crimes de guerra e crimes contra a Humanidade, e outro por genocídio, foi proibido de sair da África do Sul enquanto um tribunal local decidia se o líder sudanês deveria ser entregue às autoridades internacionais. No entanto, Omar al-Bashir acabou mesmo por ser autorizado a deixar a África do Sul antes da deliberação, o que gerou críticas de organizações de defesa dos direitos humanos como a Amnistia Internacional. Posteriormente, o Supremo Tribunal da África do Sul considerou que o governo então liderado por Jacob Zuma atuou ilegalmente, e o TPI concluiu que o executivo sul-africano falhou no cumprimento das suas obrigações internacionais.

Governo dos Estados Unidos “furioso” com o seu embaixador na África do Sul

A presença de Putin na cimeira de agosto não é o único imbróglio em que o governo de Ramaphosa está envolvido. No dia 11 de maio, o chefe da diplomacia norte-americana no país, Reuben Brigety, acusou a África do Sul de fornecer armas à Rússia; Brigety chegou mesmo a dizer que “apostaria a vida” em como tal aconteceu.

"Entre as coisas que observámos está a atracagem de um cargueiro na base naval de Simon's Town, entre 6 e 8 de dezembro de 2022, o que nos leva a crer que o navio carregou armas e munições em Simon's Town enquanto regressava à Rússia", disse o diplomata, citado pelo Financial Times. "Armar os russos é um assunto extremamente sério, e não consideramos este problema resolvido."

As declarações não foram do agrado de Pretória, mas também caíram mal em Washington D.C.. De acordo com o Politico, a administração Biden está “furiosa” com as declarações de Brigety, e está a tentar “salvar” as relações com a África do Sul, um país que há muito tenta “recuperar” para o seu lado da ordem global. O Politico garante que vários funcionários governamentais americanos afirmaram que as acusações do embaixador foram “exageradas” e podem ter colocado em causa os interesses dos Estados Unidos a longo prazo. Outras fontes governamentais asseguram que Reuben Brigety não tinha autorização para dizer que disse sobre o assunto e “sobrestimou” as informações que os Estados Unidos realmente tinham.

"O que dissemos publicamente é aquilo a que estamos dispostos a sustentar com a credibilidade dos Estados Unidos. O que ele disse foi muito além disso", afirmou um alto-funcionário da administração Biden, sob anonimato, à publicação.

Aproveitando a oportunidade, a Rússia, através de Sergei Lavrov, já veio defender a África do Sul das acusações americanas. "Se o embaixador americano ou qualquer outro embaixador no estrangeiro achou que alguma coisa estava fora de lugar, então devia meter-se na sua vida e não se envolver nos assuntos dos outros”, atirou o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia esta quarta-feira, durante uma visita a Moçambique.

“Quanto ao tema dos fornecimentos de armas, que, segundo sei, vos interessa, volto a sublinhar: nós nunca violamos as normas internacionais, mas os nossos colegas ocidentais violam-nas ao declararem neutralidade em relação aos acontecimentos na Ucrânia e ao fornecerem a este país um grande número de armas modernas de longo alcance e geralmente inseguras, incluindo para aqueles que as utilizam, como projéteis com urânio empobrecido”, concluiu o líder da diplomacia de Moscovo.

Para a África do Sul, toda a questão tem sido difícil de gerir. Por isso, esta quinta-feira, Cyril Ramaphosa informou que irá enviar uma delegação de quatro altos-representantes aos países do G7 (Estados Unidos, Canadá, Japão, Reino Unido, Alemanha, França e Itália) para “explicar a posição neutral do país”. Entre os membros da delegação estão o ministro das Finanças, Enoch Godongwana, e Naledi Pandor.

"Continuaremos a manter uma política externa independente e utilizaremos a nossa presença nos fóruns internacionais para promover o diálogo e a resolução pacífica dos conflitos”, disse Ramaphosa no parlamento do país. "Ao mesmo tempo que trabalhamos para reforçar os laços comerciais e de investimento, procuramos também criar apoio para uma ordem mundial mais inclusiva, representativa e equitativa”, concluiu.

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