A "violência física e psicológica" da desinformação e contrainformação russas: como funciona e como combatê-la

25 fev 2022, 08:00
Vladimir Putin. Foto: Grigory Sysoev, Sputnik, Kremlin Pool Photo via AP

"O maior desafio político da desinformação é derrotar o inimigo sem ser com armas", diz à CNN Portugal Víctor Madeira, especialista em relações diplomáticas e contrainformação e subversão russas - e também autor do livro "Britannia and the Bear: The Anglo-Russian Intelligence Wars, 1917-1929". Explica que antes da invasão da Ucrânia houve "quatro ou cinco fases: infiltração social, infiltração mediática, criação de duvida no país inimigo, que é para os governos e as autoridades não terem possibilidade de se preparar para qualquer agressão - como foi o caso desta"

Como é que o governo russo funciona? Quais são as principais táticas de desinformação?
Eles usam muitos métodos, mas a coisa mais importante é que tudo o que o governo russo faz é cuidadosamente coordenado. Uma grande vantagem que eles têm é que o governo e as instituições russas têm uma mensagem comum, um objetivo estratégico comum, que não é novidade em regimes autoritários. Usam publicações em jornais, estações de rádio e sites falsos. Utilizam meios mediáticos que não são verdadeiros e que, geralmente, têm laços estreitos com os serviços de segurança e espionagem russo: SVR  - Serviço de Inteligência Estrangeiro, FSB - Serviço Federal de Segurança e o GRU - Departamento Central de Inteligência. Têm um único propósito: difundir informações falsas. Estas informações, dependendo de onde são divulgadas, acontecem em países estrangeiros.

A mensagem que a RT ou a Sputnik divulgam em Portugal, no Brasil, em França, na Alemanha ou no Reino Unido são muito diferentes. Na Alemanha, por exemplo, uma dessas mensagens - que temos visto muito nos últimos anos - tem sido a necessidade de se evitar a energia nuclear para deixar a Alemanha mais dependente do gás russo. Por isso, a Alemanha não pode agir de determinada maneira perante uma agressão russa, porque estão 40% a 50% dependentes do gás natural para as suas necessidades.

Esta doutrina tem sido desenvolvida há décadas. Todos estes conceitos existem há décadas e tem sido aperfeiçoado. A informação divulgada é cuidadosamente calibrada dependendo da audiência para que é destinada. Depois, utilizam os ciberataques, infiltração em redes informáticas, infiltração em computadores que tenham dados sensíveis. E uma coisa que não é muito falada em Portugal é o papel desempenhado pela igreja ortodoxa russa. Porque uma das coisas que temos visto na Ucrânia é a igreja ortodoxa a ser utilizada não só para guardar armamento dos rebeldes, mas também um grande esforço do governo e das autoridades da igreja russa para tentarem influenciar e coagir outras igrejas no mundo ortodoxo e tudo isto por causa das divisões entre a Rússia e a Ucrânia.

Víctor Madeira (DR)

Então não podemos acreditar na RT ou na Sputnik?
Completamente não, porque a grande maioria do que divulgam é aprovado pelas autoridades russas e desempenham um papel preponderante na perceção das populações estrangeiras.

Como é que os jornalistas podem controlar essa desinformação? Ou verificar as informações que chegam do Kremlin ou da agência russa?
É uma pergunta difícil. Porque até podemos bloquear a RT e a Sputnik, mas talvez não seja a melhor resposta. A resposta ideal seria ter um sistema de educação onde desde o primeiro ou segundo anos de idade as crianças são ensinadas a ler de certa maneira, a interpretar de certa forma, a questionar mais. Se repararmos, a RT e a Sputnik raramente têm notícias positivas sobre os outros países. Estão sempre a criar divisão, sempre a criar dúvida, é esse o maior desafio político da desinformação. Derrotar o inimigo sem ser com armas. 

Tudo o que seja mensagem oficial do estado russo ou de organizações estatais ou com ligações estatais, tudo isso tem de ser visto com muitas dúvidas. Essa informação é publicada com a explícita intenção de manipular a nossa perceção. Uma das primeiras coisas que as autoridades russas fizeram nas últimas 24 horas foi não haver nenhuma divulgação que não cite fontes oficiais russas. Se as autoridades russas estão a bloquear o máximo de informações ocidentais, porque é que haveríamos de acreditar no que eles divulgam? 

Este tipo de regimes utiliza uma linguagem de violência física ou psicológica de que poucos dos nossos líderes políticos na comunidade internacional se apercebem. Poucos se apercebem da psicologia envolvida. 

Como é que o governo russo preparou esta guerra? Porque isto não é uma guerra normal, só feita à base de armas…
Esta guerra está muito bem calibrada e muito bem coordenada. No pensamento militar russo, o combate, se pensarmos nisto em sete fases, aquilo que estamos a ver agora na Ucrânia é a etapa seis ou sete. As primeiras quatro ou cinco fases são de infiltração social, de infiltração mediática, de criação de duvida no país inimigo, que é para os governos e as autoridades não terem possibilidade de se preparar para qualquer agressão. Como foi o caso desta.

O ciclo mediático ajuda bastante na desinformação. Eles sabem exatamente onde plantar informações para se espalhar no sistema. Eles pensam constantemente na psicologia do inimigo, da população, dos líderes políticos que procuram influenciar, na psicologia da função pública dentro da Rússia. É uma perspetiva completamente diferente.

Como é que podemos destruir uma sociedade sem termos de combater essa sociedade? É com a desinformação. Por isso, a maior ameaça para este tipo de regime é uma Ucrânia livre, independente e democrática. Porque pode servir de exemplo para o povo russo. 

Como é que Putin controla a informação que circula na Rússia de maneira a que a opinião pública seja a favor da invasão?
Eles têm tentado. Depois da invasão à Crimeia, Putin tinha uma taxa de aprovação de 85% e hoje é mais baixa porque os russos já vão tendo acesso a alguma verdade. O governo russo tentou criar uma desinformação interna, investiram muito dinheiro em programas de entretenimento político, é quase como uma telenovela. É um sistema de propaganda interna que é tipo política e televisão com entretenimento e isso capta muito o público. Não quer dizer que toda a gente acredite no que vê.

Nos últimos dois/três anos, essa estratégia de propaganda interna não tem tido o resultado. Uma das razões para Putin estar a fazer o que está a fazer é porque já não se importa com a desinformação interna. Está a agir de uma maneira que não leva em conta grande parte da opinião da população russa. Há muitos artistas e figuras importantes na Rússia que se têm manifestado publicamente contra a guerra. 

Esta invasão já era de prever? Putin foi dando sinais?
Era previsível porque uma das coisas mais importantes que temos de analisar, e os nosso líderes políticos não fazem tanto quanto deviam, é: em vez de nos focarmos no que não foi feito, devíamos focar-nos na psicologia dos outros líderes.

Neste caso de Putin, temos uma criança que nasceu na II Guerra Mundial, o pai trabalhava para o KGB, a família vivia numa situação de pobreza extrema, era uma criança que vivia praticamente nas ruas e, num grupo de crianças, sobrevivia através dos punhos deles. Uma coisa que ele aprendeu muito cedo foi: se vais lutar, mais vale atacares primeiro. Porque se esperas pelo murro de uma criança, não tens hipótese. Se tens de ir para a luta, mais vale dares o primeiro golpe. Foi uma das coisas que ele desenvolveu no KGB. 

Aos 16/17 anos, ele ofereceu-se para trabalhar com o KGB e eles mandaram-no ir estudar. Ele foi estudar, candidatou-se novamente e foi aceite. Portanto, essa mentalidade endureceu quando ele estava no KGB. Tudo o que esta criança sofreu, ficou.

A última camada desta cebola, digamos assim, era o facto de ele viver no mundo soviético. Portanto, estas cinco dimensões da psicologia de Putin ajudam a explicar o que é que esta pessoa tem em mente. 

Que tipo de estratégias de contrainformação é que os aliados ocidentais devem usar para combater a desinformação russa?
A atitude ocidental é geralmente defensiva, nós esperamos que a ameaça venha e depois lidamos com isso. Se nós ficarmos à espera que a ameaça chegue aos nossos territórios, vai ser demasiado tarde. O essencial é que os países da NATO e da União Europeia adotem uma postura mais ofensiva, especialmente contra os serviços de segurança russos. 

Porque é que nós estamos à espera? Porque é que não nos vamos tentar infiltrar os sistemas de segurança russos e chineses para descobrir os planos deles? Não quer dizer que a NATO e a União Europeia não o façam, mas, geralmente, não há uma estratégia coordenada e deveria haver.

Quanto à desinformação, é preciso uma melhor educação cívica, uma melhor educação mediática, ensinar a população a pensar mais criticamente. 

Há muitas poucas imagens da guerra no terreno, o que é raro numa época em que se vê tudo. Isto é estratégia russa? O que é que eles ganham com isso?
Vou-lhe dar um exemplo muito prático: a agitação toda quando os altos líderes russos disseram que queriam uma solução diplomática e que estavam a retirar tropas e, de facto, publicaram um vídeo onde se viam tanques russos a sair e militares a entrar nos comboios. Mas aquilo era um clip de cinco ou dez segundos. O que é que eles estavam a fazer? Estavam de facto a sair, a entrar nos comboios, mas para avançarem na direção da fronteira. Estavam a aproximar-se da fronteira, a chegar mais perto. Este é um exemplo clássico do uso da desinformação. A confusão provoca duas coisas: abranda a capacidade de decisão das forças militares que estão a resistir à agressão e dão mais tempo às forças agressoras para tomarem posições.

A desinformação é um modo de camuflar a agressão. E a única maneira de verificar isto é ter um especialista externo em vídeo que consiga perceber quando é que o vídeo foi criado, como é que foi criado, se há manipulação das imagens, quando é que foi filmado, onde. Dou-lhe outro exemplo. Todos os vídeos divulgados que davam conta das forças ucranianos a invadir espaços russos tinham sido filmados há um ano, alguns tinham sido filmados na Finlândia num treino militar. Eu sei que é difícil para a comunicação social, e eu sei que não têm tempo para confirmar todos estes detalhes, mas a melhor estratégia é: se não tiverem a certeza, não devem usar ou divulgar. 

Em 2018 disse que Portugal era um alvo apetitoso da Rússia e da China. Ainda é? Porquê?
Continua a ser pelas mesmas razões - postura branda em relação à segurança e defesa, embora a situação tenha melhorado um pouco desde 2018. Mas as vulnerabilidades económicas persistem e dão origem a vulnerabilidades de outro tipo, incluindo na defesa e segurança. Por exemplo, os baixíssimos salários das forças de segurança, militares e de serviços de informações criam vulnerabilidades pessoais que os serviços e governos hostis procuram explorar. 

A influência do governo russo através de vários meios culturais e económicos continua. Mas nesta situação atual, Portugal pode desempenhar um papel preponderante no desagravamento da crise energética na Europa. O Porto de Sines era dos poucos que podiam receber o gás natural. Poderia trazer milhões de litros de gás natural liquefeito (GNL) dos Estados Unidos, África do Norte e Médio Oriente, reduzindo dependência do gás.

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