A vida sob o "Z": como Putin está a incentivar a "caça" aos inimigos internos

CNN , Análise de Nathan Hodge
22 mar 2022, 09:00

Se olharmos para Moscovo através das lentes da televisão estatal russa, tudo parece estar a correr bem para o presidente Vladimir Putin.

Na sexta-feira, o líder do Kremlin esteve presente num concerto no Estádio Luzhniki, na capital, para marcar o oitavo aniversário da anexação da Crimeia à Rússia. O espetáculo foi, na verdade, um comício à guerra de Putin na Ucrânia.

Putin apareceu perante uma multidão que agitava bandeiras em frente a um pódio onde se podia ler: “Zа мир без нацисма” – “Por um mundo sem nazismo” - uma espécie de slogan de marketing e propaganda para a invasão russa de Ucrânia.

O slogan até usou a letra “Z”, que se está a transformar no símbolo oficial de apoio à guerra de Putin: a letra cirílica “З” no slogan, foi substituída por um Z, evocando as marcas vistas pela primeira vez em veículos militares russos antes da invasão de 24 de fevereiro.

Para os russos que não apoiam a guerra, a vida sob o “Z” está se a tornar-se cada vez mais sombria.

Basta vermos as publicações nas redes sociais de alguns ativistas da oposição. A 16 de março, Olga Misik - uma jovem ativista mais conhecida por ler uma cópia da Constituição da Rússia à frente da polícia de choque, numa manifestação antigoverno - publicou uma foto de um Z pintado a branco na porta do apartamento dela.

“Não traias a pátria, cabra”, lia-se no grafíti que acompanhava a letra.

Outro ativista democrata publicou uma foto semelhante na sexta-feira, com o Z pintado a spray preto juntamente com grafítis a acusarem-no de ser um “inimigo do povo”.

Caça aos inimigos internos

Mas porquê este ódio se tudo, - conforme Putin diz para tranquilizar o povo, - está a correr conforme os planos?

Parte pode ser explicado por um discurso de Putin na noite de quarta-feira, onde o líder disse aos russos que havia quinta-colunistas - inimigos - entre as fileiras dos seus compatriotas.

“O Ocidente tentará depender da chamada quinta-coluna, os traidores nacionais, aqueles que ganham dinheiro aqui connosco, mas que vivem com eles”, disse Putin.

“E quando digo ‘vivem com eles’ não falo do sentido geográfico da palavra, mas sim de viverem de acordo com os pensamentos e a consciência servil deles.”

O povo russo, acrescentou Putin, “será sempre capaz de distinguir os verdadeiros patriotas da escumalha e dos traidores, e simplesmente cuspi-los como um mosquito que entrou acidentalmente nas suas bocas, cuspi-los para o chão.”

O apelo de Putin para a “autolimpeza da sociedade” deve perturbar qualquer pessoa que saiba o mínimo da história russa e soviética. A caça aos inimigos internos tornou-se o pretexto para a Grande Purga, a vaga de julgamentos, prisões e execuções que Joseph Estaline lançou em 1937.

Durante essa campanha, o governo soviético incitou os cidadãos a denunciarem os vizinhos, os colegas de trabalho e até os familiares, caso houvesse qualquer suspeita de deslealdade.

A campanha Z tem um elemento de base semelhante. Ninguém, ao que parece, está a ser obrigado a colar o Z na janela do carro ou a pintar com spray a porta de um conhecido opositor. Mas as imagens que aparecem nas redes sociais mostram um verdadeiro ambiente de medo e intimidação.

Putin disse que a Rússia “irá implementar, sem qualquer dúvida, todos os nossos planos” na Ucrânia. Mas, à medida que aumentam as baixas na Ucrânia - o número oficial da Rússia de soldados mortos ainda está abaixo dos 500, um número que não é atualizado desde o início de março – torna-se claro que a ira das autoridades será dirigida a qualquer um que não siga as diretrizes oficiais.

Esmagar a dissidência

Vejamos a Rosgvardia, a Guarda Nacional da Rússia, a força de segurança doméstica de Putin. Pesquisas de código aberto e evidências circunstanciais sugerem que as unidades da Rosgvardia - que estão menos armadas e equipadas - sofreram pesadas perdas nos combates na Ucrânia.

A Rosgvardia tem muita experiência a esmagar a dissidência doméstica na Rússia, onde as suas unidades de controlo de distúrbios são mais conhecidas por prender os manifestantes políticos. Mas é provável que essas forças não estivessem bem preparadas para grandes combates contra unidades ucranianas equipadas com armas antiblindados eficazes e drones armados.

E isso é uma preocupação, no que diz respeito à Rússia. Viktor Zolotov, o general que comanda a Rosgvardia, tem uma veia vingativa. Ele é mais conhecido por, em 2018, ameaçar transformar o líder da oposição russa, Alexey Navalny, num “bife tenro” depois de Navalny ter publicado uma investigação sobre o alegado envolvimento de Zolotov num esquema de corrupção.

Tais ameaças têm o mau hábito de se realizarem, na Rússia. Navalny está atualmente numa prisão russa depois de ter sobrevivido ao envenenamento por um agente nervoso.

E a crueldade com que a Rússia reprimiu os protestos contra a guerra sugere que as táticas das autoridades se podem tornar mais pesadas. O OVD-Info, um grupo de monitorização que rastreia as prisões e as detenções nas manifestações políticas, diz que mais de 15 000 pessoas foram detidas em protestos contra a guerra, por todo o país. A polícia foi vista a espancar brutalmente alguns manifestantes.

Então, como ficam a Rússia e os russos, depois disto? No domingo, o órgão fiscalizador das comunicações da Rússia, o Roskomnadzor, ordenou o encerramento de duas agências de notícias online, a Agentura.ru e a Mediazona Central Asia, informou a agência de notícias estatal russa TASS, no domingo.

Isso deixa os russos com menos duas fontes independentes de informação. E alguns russos opositores - com humor negro – estão a usar as redes sociais para dizer que o “Z” vem de “Zвастика” (suástica), uma comparação que poderia facilmente levá-los à prisão.

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