A Ucrânia pode ganhar a guerra à Rússia? Eis o que se segue no conflito

CNN , Análise de Tim Lister e Vasco Cotovio
20 set 2022, 08:00

ANÁLISE. As recentes vitórias ucranianas criaram muitas expectativas, mas há receios de que a humilhação do Kremlin provoque uma reação imprevisível, incluindo armas nucleares táticas.

O Inverno está a aproximar-se rapidamente na Ucrânia. Eis o que se segue no conflito

Até algumas semanas atrás, parecia que o conflito na Ucrânia iria entrar nos amargos meses congelados de inverno - com nenhum dos lados a fazer progressos apreciáveis.

Esse prognóstico mudou com a súbita e bem-sucedida ofensiva ucraniana através da maior parte de Kharkiv ocupada, que galvanizou os apoiantes ocidentais da Ucrânia tanto quanto gerou recriminações em Moscovo.

Os militares russos têm agora de perguntar-se que tipo de força - e para onde exatamente são destacados - pode recuperar a iniciativa, depois de a Ucrânia ter capturado mais território numa semana do que as forças russas tinham feito em cinco meses.

Há também dinâmicas políticas importantes envolvidas. O Kremlin enfrenta escolhas difíceis: se deve declarar uma mobilização geral para revigorar as suas unidades cada vez mais irregulares na Ucrânia e como gerir um défice orçamental - apesar de a Rússia estar “sentada” em cima de reservas estrangeiras historicamente elevadas.

Muito para lá do teatro de guerra, a Rússia deve escolher até que ponto pode usar como arma a sua influência sobre o fornecimento de gás à Europa, à medida que os governos se preparam para gastar muito dinheiro para mitigar os efeitos de um fornecimento excecionalmente escasso.

Outro dilema potencial: os primeiros sinais de que o apoio chinês à invasão russa, que nunca foram de todo-o-coração, pode estar a diminuir.

Um campo de batalha em mudança

Soldados ucranianos feridos dentro de um veículo no território libertado da região de Kharkiv, na Ucrânia, na segunda-feira, 12 de setembro de 2022 (Foto: Kostiantyn Liberov/AP)

A espantosa contra-ofensiva da Ucrânia em Kharkiv, combinada com avanços de maior atrito no sul, apresentaram ao Kremlin e ao muito criticado Ministério da Defesa da Rússia uma variedade de más opções.

À medida que o Inverno se aproxima, eles devem escolher a qual frente dar prioridade, e se devem intensificar os esforços para cumprir o objetivo declarado de Putin: a captura das regiões de Donetsk e Luhansk. Os russos detêm atualmente cerca de 20% das terras ucranianas, incluindo a Crimeia e partes do sul.

A tomada de Donetsk é agora uma ordem mais alta para os russos. Sete meses de guerra mostraram as deficiências da logística russa, coisa que não será mais fácil de fazer em tempo mais húmido e frio.

Numa questão de dias, a Rússia perdeu um dos três eixos de ataque em Donetsk; não se registaram progressos nos outros dois desde o final de junho.

Ao mesmo tempo, as defesas russas em Kherson estão sob pressão crescente, apesar de terem sido reforçadas, graças ao sucesso da Ucrânia em cortar o reabastecimento através do rio Dnipro e em alvejar postos de comando e depósitos de munições.

Os militares russos não dispõem de uma abundância de novas unidades para injetar no conflito. O recém-destacado 3º Corpo do Exército compreende em grande parte batalhões voluntários recrutados em todas as regiões russas. Outros grupos táticos do batalhão foram reconstituídos após sofrerem pesadas perdas. Há relatos persistentes de desgaste da disciplina entre as unidades russas. A retirada desordenada em Kharkiv, com vastas quantidades de material militar abandonado, é uma prova disso - e de problemas crónicos de comando que não serão remediados de um dia para o outro.

Várias sepulturas encontradas em Izium (Evgeniy Maloletka/AP)

Obviamente, a Ucrânia também perdeu milhares de soldados, incluindo muitos das suas melhores unidades no Donbass. E uma fonte militar da NATO disse à CNN que, embora a varridela pela Ucrânia tivesse sido um grande impulso para o moral, "não consigo imaginar a mesma coisa a acontecer duas vezes".

As forças de artilharia e mísseis da Rússia ainda são em grande número superiores às da Ucrânia. Mas não tem sido capaz de potenciar esta superioridade em ganhos no terreno. Cerca de 40% de Donetsk permanece sob controlo ucraniano.

O Presidente Vladimir Putin reconheceu isto na sexta-feira - dizendo que a operação ofensiva no Donbass “segue a um ritmo lento, mas continua. Gradualmente, gradualmente, o exército russo ocupa novos territórios”.

Apesar dos apelos em Moscovo para uma mobilização geral, isto ainda parece improvável. disse Putin: “Estamos a lutar com apenas uma parte do exército russo, a parte que está a contrato... Portanto, não temos pressa nesta parte”.

Uma vitória ucraniana?

Alguns observadores começaram a questionar se uma vitória ucraniana é concebível. Isso depende de como se define a vitória. É intenção declarada do Presidente Zelensky recuperar todos os territórios ocupados, bem como a Crimeia.

O general David Petraeus, antigo diretor da CIA e comandante das forças militares dos EUA no Iraque, disse esperar que a Ucrânia retomasse o território confiscado pelos russos desde fevereiro, e “é mesmo concebível que eles possam retomar a Crimeia e o Donbass”, ajudada pela crescente resistência nas áreas ocupadas.

Mas isso levaria tempo e envolveria duros combates, disse Petraeus à CNN. Se esse fosse o objetivo da Ucrânia, as suas linhas de abastecimento seriam esticadas e as suas melhores unidades dispersadas. Por sua vez, as forças ucranianas ficariam vulneráveis aos contra-ataques.

Em última análise, o sucesso da Ucrânia no campo de batalha dependerá de um fornecimento contínuo e alargado de equipamento ocidental. Reuniões nas próximas semanas determinarão o que estará nesse trilho, mas os stocks em vários países estão a diminuir.

Funcionários oficiais dos Estados Unidos também estão desconfiados de que a Ucrânia possa exagerar no seu jogo. Os EUA ainda estão excecionalmente cautelosos quanto ao envio à Ucrânia de armas com um alcance superior a 80 quilómetros e que, por conseguinte, poderiam ser usadas para atacar bem dentro da Rússia. Até agora, os EUA têm resistido aos pedidos ucranianos de ter sistemas de mísseis táticos de longo alcance do exército (ATACMS) que têm um alcance de até 300 quilómetros.

Ucranianos libertaram Izium e encontraram várias armas deixadas pelos russos (AP)

Alguns funcionários oficiais ocidentais receiam que a humilhação do Kremlin provoque uma reação imprevisível, incluindo mesmo armas nucleares táticas.

Uma antiga secretária-geral adjunta da NATO, Rose Gottemoeller, disse à BBC esta semana: "De momento, preocupo-me com esse tipo de cenário... O objetivo seria tentar fazer com que os ucranianos no seu terror capitulassem".

Em fevereiro, na véspera da invasão, Putin avisou que qualquer país que se colocasse no caminho da Rússia enfrentaria “consequências como nunca viram na sua história”.

Mas Olga Olika, diretora do Programa da Europa e Ásia Central do Grupo Internacional de Crise, acredita que o Kremlin não iria tolerar tal escalada porque “a detonação de armas de destruição maciça iria provocar retaliação internacional, incluindo, muito possivelmente, o envolvimento militar direto da NATO".

O Presidente dos EUA, Joe Biden, pareceu confirmar isto numa entrevista ao programa "60 Minutes" – um excerto da qual foi transmitido nas notícias da noite da CBS na sexta-feira. Ele advertiu Putin contra uma escalada dos combates na Ucrânia, dizendo que haverá consequências se o Kremlin utilizar armas químicas ou nucleares nos combates.

"Não o faças. Não o faças. Não o faças. [No original: “Don’t. Don’t. Don’t.”] Isso mudaria a face da guerra ao contrário de qualquer outra coisa desde a Segunda Guerra Mundial", disse Biden. Questionado por Scott Pelley sobre qual seria a resposta dos EUA se a Rússia utilizasse uma arma química ou nuclear, Biden disse que seria “consequente”.

Outros analistas salientam que a utilização de armas nucleares táticas teria benefícios militares limitados, e que os militares poderiam mesmo desafiar uma ordem de Putin quanto à sua utilização.

“É difícil imaginar que mesmo ataques nucleares permitiriam à Rússia quebrar a vontade da Ucrânia de resistir”, disse o General Valerii Zaluzhnyi, comandante-chefe das Forças Armadas da Ucrânia.

A Rússia ainda tem um arsenal intimidante de mísseis balísticos, e outros, que poderiam ser utilizados não para ganhar território mas para infligir danos catastróficos às infraestruturas da Ucrânia: energia, água e comunicações.

Na televisão estatal russa, os especialistas têm defendido a destruição das infraestruturas de energia e de água da Ucrânia. E tem havido sinais de forças de mísseis russas a fazer exatamente isso - com ataques a fontes de energia em Kharkiv e portões hidráulicos num reservatório em Kryviy Rih nos últimos dias.

No entanto, a trajetória da guerra parece diferente nos últimos meses, num ano que começou com poucas esperanças de que a Ucrânia conseguisse resistir ao mastodonte russo. Isso só por si pode reforçar a espinha dorsal do apoio europeu - e estimular a continuação da canalização da ajuda militar - apesar de um inverno caro de descontentamento com o aquecimento e os preços dos combustíveis.

O gambito do gás

Há muito que é evidente que parte da estratégia do Kremlin consiste em ajoelhar a determinação europeia no apoio à Ucrânia, mergulhando-a numa crise energética ao fechar literalmente as torneiras de gás.

Num fórum em Vladivostok no início deste mês, Putin afirmou: “Não forneceremos absolutamente nada se isso for contrário aos nossos interesses. Não no gás, não no petróleo, não no carvão, não no fuelóleo, nada”.

No meio de contratempos no campo de batalha, Ivo Daalder e James Lindsay escrevem na revista “Foreign Affairs” que “a melhor esperança de Putin - talvez a sua única esperança - é que o apoio ocidental à Ucrânia se desmorone à medida que os custos da guerra, incluindo a escassez de energia e o aumento dos preços, comecem a atingir a Europa”.

Os preços do gás natural na Europa estão 10 vezes mais elevados do que há um ano, com a Rússia a ganhar cerca de mil milhões de dólares [valor equivalente em euros] por dia nos primeiros três meses do conflito das exportações de energia. E o regime de sanções contra a Rússia só terá um impacto significativo a longo prazo, porque a economia russa é tão autocontrolada.

Mas o próximo Inverno será o teste de ácido do aperto na energia de Moscovo. Em vez de procurarem um compromisso, os governos europeus concluíram que as concessões apenas iriam encorajar o Kremlin. Estão apostados em assumir despesas pesadas para proteger os consumidores e, numa estratégia a mais longo prazo, para reduzir a dependência da energia russa. Depois de procurarem fornecedores alternativos no mundo, acumularam reservas (no caso da França, para mais de 90% da capacidade).

Embora os preços do gás no mercado grossista ainda estejam altos, eles caíram cerca de um terço nas últimas três semanas. Alguns analistas pensam que cairão ainda mais, reduzindo o custo dos subsídios que estão a ser introduzidos pelos governos europeus, já amarrados quanto a dinheiro.

Há também sinais de que os preços elevados do petróleo e do gás na Rússia podem ter atingido o seu pico. A Agência Internacional de Energia prevê que a produção russa de petróleo será 17% mais baixa em fevereiro próximo em comparação com a produção anterior à guerra, uma vez que seja sentida a força total das sanções da UE.

Daalder e Lindsay acreditam que os aliados da Ucrânia definiram o seu rumo. “Muitos céticos no Ocidente acreditam que as democracias irão ceder perante as dificuldades”, escreveram. “as tais vozes subestimam o poder de permanência do Ocidente”.

Sem pombas de paz

Os sinais de ambos os lados indicam que estão a preparar-se para um longo Inverno, em vez de explorarem as perspetivas de um acordo.

“A Rússia tudo fará para pôr fim ao conflito na Ucrânia o mais rapidamente possível, mas Kiev recusa-se a negociar”, disse Putin numa reunião com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, na sexta-feira. Entretanto, o objetivo da Rússia ainda era "a libertação do Donbass" e não havia “pressa”.

Mas o líder russo também reconheceu as “preocupações” que tanto a Índia como a China têm em relação ao conflito.

O líder chinês, Xi Jinping, no seu primeiro encontro com Putin desde antes da invasão, não se referiu à Ucrânia pelo nome, de acordo com uma leitura de Pequim. Alguns observadores acreditam que Pequim está a adotar subtilmente uma abordagem de alguma distância no pântano russo na Ucrânia. A forma como isso pode contribuir para os cálculos de Putin é ainda desconhecido.

Pela sua parte, os ucranianos têm sido consistentes em não negociar com Moscovo, a menos que e até que todo o território ocupado seja recuperado. Zelensky rejeitou enraivecido as sugestões do Presidente francês, Emmanuel Macron, do antigo Secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger e de outros que a Ucrânia deveria negociar de forma a não humilhar a Rússia (Kissinger retirou mais tarde a sua recomendação).

Bombeiros ucranianos apagam um incêndio após um ataque russo com rockets a uma central elétrica em Kharkiv, no domingo, 11 de setembro de 2022 (Foto: Kostiantyn Liberov/AP)

Dado o atual estado do campo de batalha, há poucos incentivos para a Ucrânia procurar uma trégua, enquanto o Kremlin ser+a duramente pressionado a criar um discurso sobre os resultados da sua “operação militar especial” se um terço do Donbass ainda ficar em mãos ucranianas.

O antigo diretor da CIA e general reformado do Exército dos EUA David Petraeus acredita que a Rússia enfrenta militarmente uma "situação desastrosa". Ele disse à CNN que a Rússia estava “literalmente a ficar sem soldados, munições, tanques, veículos de combate, etc.”.

Um funcionário militar da NATO disse à CNN que esperava que Putin tivesse de repensar a sua posição até à próxima Primavera “se a NATO se mantiver unida durante os problemas energéticos do Inverno e se a Ucrânia continuar a lutar. Mas ele não vai negociar mais cedo, pois um Inverno frio é a sua melhor arma".

Depois disso, o efeito total dos embargos à energia russa por parte dos governos ocidentais e do Japão, e à exportação de equipamento de alta tecnologia para a Rússia, começará a morder. Este último já está a começar a custar um preço à produção de armamento, forçando os militares a retirar o pó das armas que tinham estado armazenadas.

O conflito ucraniano causou muitas surpresas - e as previsões podem ser um trabalho de tolos. A forma atual do campo de batalha sugere que os papéis iniciais da Ucrânia e da Rússia - defesa e ataque - poderão ser invertidos nos próximos meses, enquanto as forças russas intensificam os bombardeamentos sem remorsos contra alvos civis e militares.

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