Putin acusa Zelensky de querer arrastar o Ocidente para o conflito caso seja levantada a restrição de utilizar mísseis de longo alcance contra território russo, mas os especialistas lembram que a Ucrânia também está a ser atacada com armas de outros países
A ameaça não é nova, mas é forte o suficiente para ser levada a sério. O presidente russo, Vladimir Putin, afirmou esta quinta-feira que o levantamento das restrições ocidentais à Ucrânia para a utilização de mísseis de longo alcance contra alvos militares em território russo pode ser considerado um ato guerra por parte do Ocidente. Os especialistas admitem que a decisão de rever esta medida pode “mudar a essência” do conflito, mas defendem que os aliados da NATO não devem temer as ameaças russas.
“É habitual [o Kremlin ameaçar]. Sempre que o Ocidente acrescenta potencial de combate à Ucrânia há sempre uma reação deste género. São ameaças veladas e cortinas de fumo lançadas permanentemente sobre o mundo ocidental. Não devem nem podem ser levadas a sério, porque o mundo não pode ficar refém de alguém que quer sequestrar as nossas capacidades e a nossa vontade”, afirma o major-general Isidro de Morais Pereira.
A possibilidade de atingir alvos militares russos com mísseis de precisão norte-americanos é algo que tem vindo a ser debatido há vários meses, no entanto, a liderança norte-americana não aprovou esta medida por temer que a medida levasse a Rússia a escalar o conflito. Mas, entre aliados, nem todos partilham esta visão. Reino Unido, um dos principais fornecedores de mísseis de longo alcance à Ucrânia, admite que os aliados têm-se “ajustado” ao longo da guerra conforme “o campo de batalha foi mudando” e, por isso, os britânicos estão dispostos a continuar a ajustar as medidas conforme a situação evolui.
Mas esta possibilidade não caiu bem em Moscovo. Nenhuma decisão está tomada, mas o facto de estar a ser equacionada pelos principais líderes políticos foi suficiente para motivar uma resposta do Kremlin. Vladimir Putin apareceu aos jornalistas esta quinta-feira para explicar que a decisão não se trata de “autorizar ou banir” ataques a todo o território russo, porque isso já acontece com recurso a drones e mísseis de fabrico ucraniano, mas sim “uma história completamente diferente”.
“Não é sobre deixar ou não o regime ucraniano atacar a Rússia com estas armas ou não. É sobre tomar uma decisão sobre se os países da NATO estão diretamente envolvidos no conflito militar ou não. Se esta decisão for tomada, isso significa que os países da NATO - os Estados Unidos e os países europeus - estão em guerra com a Rússia. Isso, é claro, altera significativamente a essência do conflito”, disse o presidente russo aos jornalistas.
O embaixador russo nas Nações Unidas, Vasily Nebenzya, foi ainda mais longe e acusou a Ucrânia de querer arrastar os países da NATO para o conflito com a Rússia, durante uma reunião do conselho de segurança da ONU sobre o conflito na Ucrânia.
A alegação de que a Rússia está a lutar contra a NATO e de que militares de países da aliança estão a combater em solo ucraniano como mercenários não é nova. Em fevereiro, o coronel-general Sergey Rudskoy, responsável pelos serviços de informações militares russo, acusou o Ocidente de enviar “pessoal militar da NATO” para operar diversos sistemas tecnologicamente avançados entregues à Ucrânia.
Só que os especialistas insistem que a utilização de armamento de um país para um conflito não faz com que esse país passe a fazer parte da guerra. A Ucrânia tem sido devastada com sucessivos ataques dos mísseis de longo alcance fornecidos pelo regime de Kim Jong-un, por exemplo. O Hwasong-11 tem uma capacidade de atingir alvos a quase 700 quilómetros e pode ser equipado com ogivas nucleares. Também o Irão está a enviar mísseis de curto alcance Fath-360, capazes de atingir alvos com precisão a 120 quilómetros.
“Se esta ideia de um lado atacar outro com armas de um país terceiro, significa a sua entrada no conflito desse país, então podemos fazer a pergunta: a utilização de armamento iraniano e norte-coreano pela Rússia faz com que estes países estejam em guerra com a Ucrânia? Não estão”, observa o coronel Carlos Mendes Dias.
"A seguir vão pedir Tomahawks e depois bombas nucleares tácticas"
Nas suas declarações aos jornalistas, Putin reforçou a ideia de que sem o Ocidente os ataques contra a Rússia nunca seriam possíveis, uma vez que são satélites europeus e norte-americanos que fazem a identificação de alvos na Rússia, bem como o traçar das rotas através do sistema de GPS. “Só o conseguem fazer utilizando informações de satélites que a Ucrânia não tem. E essa informação chega através de satélites europeus ou norte-americanos – em geral, da NATO”, apontou o líder russo.
Os Estados Unidos da América partilham informações de natureza militar com Kiev quase desde o início da guerra e, no passado, chegaram mesmo a auxiliar a Ucrânia na identificação de alvos militares no território ocupado. Só que esta não é a única ferramenta na posse de Kiev. Desenvolvimentos tecnológicos dos últimos anos fizeram proliferar o número de empresas privadas que fornecem serviços de imagem de satélite de alta qualidade, como a Maxar. O próprio secretário de Estado americano, Antony Blinken, admitiu que os Estados Unidos fornecem este tipo de informações, mas não comentou acerca de um possível aumento da troca de informações.
Para os especialistas, mais do que fazer uma ameaça ao Ocidente, o presidente russo estava a falar para a sua população para mostrar que o país está a ser encurralado e, dessa forma, causar alguma dúvida nos centros de decisão das capitais europeias. “Vladimir Putin tem estado a tentar aproveitar esta conversa para mobilizar o seu povo. Esta lógica de o próprio povo ver-se encostado à parede. É precisamente isto que o presidente americano está a ponderar, porque o outro lado pode fazer coisas que nós não queremos ou que não estamos à espera”, defende o coronel Mendes Dias.
Só que não é certo que as palavras do presidente russo tenham produzido o efeito pretendido. O primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, desvalorizou as ameaças de Vladimir Putin, sublinhando que a responsabilidade do conflito é russa, uma vez que foram eles que o começaram. E o primeiro-ministro polaco, Donald Tusk, foi pelo mesmo caminho ao afirmar que não está preocupado com os comentários do presidente russo.
“É necessário levar muito a sério todos os acontecimentos na Ucrânia e na frente ucraniano-russa, mas eu não atribuiria importância excessiva às últimas declarações do presidente Putin. Elas mostram a situação difícil que os russos têm na frente”, disse Donald Tusk numa conferência de imprensa.
Só que a decisão mais importante tem de ser tomada em Washington, o maior contribuidor de apoio militar a Kiev. Na capital norte-americana, parece existir apoio bipartidário. Um grupo de republicanos do congresso escreveu uma carta ao presidente para pedir que levante a restrição e permita a Kiev atingir alvos militares com os sistemas ATACAMS, entregues em outubro de 2023 e que têm um alcance de 290 quilómetros.
Agostinho Costa defende que é preciso não só equacionar os riscos de escalada do conflito, como também uma intensificação dos pedidos de novo armamento por parte de Volodymyr Zelensky. “A seguir vão pedir Tomahawks, que têm mais de 1000 quilómetros de alcance. E a seguir vão pedir bombas nucleares tácticas”, alerta.
No passado, outras linhas vermelhas foram ultrapassadas por Kiev. Recentemente a Ucrânia lançou uma campanha ofensiva em território russo, na província de Kursk, conquistando mais de 1200 quilómetros quadrados. Para o major-general Isidro de Morais Pereira, Joe Biden precisa de parar de ser “excessivamente cauteloso” e não pode deixar-se “amedontrar” pelas ameaças de Putin.
“A grande linha vermelha, a maior de todas, foi o grande atrevimento da Ucrânia quando conquistaram parte do oblast de Kursk. Essa era uma das grandes linhas vermelhas. O que é que aconteceu? Nada. Se os Estados Unidos permitirem a utilização das suas armas de longo alcance na Rússia, o que é que acontece? Mais do mesmo, nada.”