A Sara vai ter de ir a Kiev: história de uma selfie-promessa e de um abraço-bunker

Germano Oliveira , Enviado especial da CNN Portugal
17 mar 2022, 10:56
O abraço

REPORTAGEM Cinco autocarros, 25 carrinhas, dois carros de apoio e 70 voluntários financiados pela sociedade civil portuguesa saíram de Lisboa no domingo e é a Lisboa que já estão de regresso: levam 390 refugiados ucranianos que chegaram a Cracóvia e este é o relato de como dali partiram

"As mulheres não choram", garante Sara Mendia, "as mulheres são fortes", Sara tem 46 anos, "as mulheres não choram, especialmente à frente de um filho", Sara tem três filhos, "para uma mulher chorar é preciso muita coisa", uma mulher-mãe de 46 anos tem autoridade para falar sobre o que as mulheres-mães não fazem, "esta mulher que se sentou à minha frente é uma mulher que chorou duas vezes desde que a guerra começou", diz Sara sobre a mulher que abraçou, "uma dessas duas vezes foi hoje comigo", Sara tens os olhos vermelhos de quase-lágrimas porque já houve todas-as-lágrimas com aquela mulher, "ela não queria pedir ajuda, ela não quer pedir ajuda", Sara repete as frases para reforçar a vontade que as frases têm, "ela não quer pedir ajuda, ela não vai pedir ajuda a ninguém, ela trabalhava num banco", Sara também trabalha num banco, "não há coincidências", uma mulher de 46 anos tem autoridade para julgar os acasos da vida.

Sara está numa sala da Cisco em Cracóvia, a Polónia tem quase dois milhões de refugiados que fugiram dos mísseis de Putin, há 390 desses dois milhões que vão cumprir um ritual naquela sala: primeiro têm de mostrar os documentos a uma equipa que os valida, depois são reencaminhados para uma consulta rápida com um dos médicos portugueses presentes, houve também uma enfermeira e uma médica ucraniana que vive em Portugal que ajudaram neste processo que haverá de detetar patologias crónicas em alguns dos refugiados e identificar doentes oncológicos entre eles, os testes covid deram todos negativo; a seguir os refugiados são ouvidos por uma equipa de voluntários apoiados por psicoterapeutas, Sara é um dos 70 voluntários, tirou sete dias de férias para ir à Polónia ajudar a buscar 390 ucranianos para Portugal: há uma mulher que se senta na mesa dela, tem o filho adolescente ao lado, chegaram de Kiev, cidade-sitiada que é cidade-resistente, há muita gente na sala mas de repente essa gente está a olhar duas pessoas, estão abraçadas, Sara e aquela mulher ali sentada que entretanto é uma mulher ali levantada dão um súbito abraço loooooongo, de onde é que aquele abraço veio?, "foi o olhar dela, chegou isso, da mesma maneira que ela olhou para mim, foi isso", descreve Sara horas depois,elas olharam-se e abraçaram-se, choraram pois, enquanto o céu de Portugal está abaunilhado pelas poeiras do Saara aqui foge-se do céu sulfurizado de bombas para os braços de Sara, choraram pois, aqui a meteorologia diz que o céu está a chorar, a guerra é um horror e já não é preciso ver mísseis a ferir e a matar civis para provar isso, basta um abraço, aquele abraço entre aquelas duas mulheres é tão consequência do horror como da bondade infinita, nasceu da guerra, um abraço é dos lugares mais seguros do mundo.

"Ela disse-me que foi a segunda vez que chorou desde que a guerra começou, chorou quando saiu de Kiev e chorou aqui, mas tem o seu orgulho muito firme, ela não queria pedir ajuda, está a ir para Portugal como refugiada mas vai para casa de amigos, todos os refugiados que ouvi hoje vão para casa de amigos ou de amigos de amigos ou de conhecidos, ninguém vai pedir ajuda, ninguém vai pedir roupas, eu acho que ninguém vai pedir nada", fala Sara, "eles não estavam à espera de que a Europa os acolhesse com tanto carinho deste lado, este carinho tão extraordinário, não estavam à espera disto, mas não querem ir para casas que eles não conhecem, não querem ir para hotéis, não querem ir para nenhum sítio de refugiados", por isso ouve-se na sala que "refugiados" devia ser substituído por "desalojados".

Mãe e bebé, sozinhos: refugiados

Entre os desalojados naquela sala há dezenas de crianças e muita vontade de as acarinhar, elas assustam-se, o sítio das crianças não devia ser ali e o instinto delas manifesta isso mesmo: afastam-se quando uma mão estranha lhes tenta levar conforto mas há rebuçados, bonecos, peluches e psicoterapeutas portugueses para as acalmar - mas um dia pode não haver maneira de as tranquilizar se crescerem a odiar os russos que lhes mataram os pais, as próximas duas ou três gerações de jovens adultos ucranianos que são agora crianças ou adolescentes refugiados vão crescer fora da Ucrânia ou sem Ucrânia ou com a Ucrânia a ser reconstruída durante anos ou com uma Ucrânia que agora ninguém será capaz de projetar que Ucrânia será, são duas ou três gerações a lidar com o instinto de se vingarem de quem lhes matou os pais-soldados e assassinou as mães fortes que se abraçavam e bombardearam os avós que se recusaram a morrer fora da pátria, mas por enquanto são crianças cuja casas são sacos de compras: são dezenas deles naquela sala, são as únicas posses de 390 pessoas em fuga, há famílias que só têm dois sacos daqueles e um de roupa, "a gente não vai trabalhar o trauma agora, a gente tem é de dar contenção", explica a psicoterapeuta Margarida Nobre, ou seja, agora é para conter a dor e depois é para tratar aquilo em que ela se torna. Margarida tem 52 anos é uma das psicoterapeutas que foram de Portugal até Cracóvia, "as crianças estão assustadas mas nós trouxemos tradutores ucranianos que na verdade são ucranianos que estão em Portugal, foram fulcrais nesta operação".

Ao lado de Sara Mendia está um desses tradutores que facilitam o processo de intermediação entre a chegada dos refugiados àquela sala da Cisco e a entrada no autocarro que os há de levar a Portugal, já está a caminho, os abraços não precisam de traduções mas as histórias sim, "todos eles querem voltar para o país deles", revela Sara, "há um casal que também se abraçou a mim, disseram-me 'nós vamos para Portugal mas quando isto acabar venha ter connosco a Kiev'", Sara sorri enquanto conta isto, "eles disseram-me 'será nossa convidada para ir a nossa casa'", Sara aceitou, "tirámos uma fotografia, deram-me um abraço, posso mostrar", Sara pega no telefone, "posso mostrar", Sara repete as frases para reforçar a beleza que algumas frases antecipam, "e eu disse 'eu vou, eu vou ter convosco quando isto acabar'", Sara mostra uma selfie dos três a sorrir, "eu disse 'eu vou ter convosco quando isto tiver acabado porque isto vai acabar'", a esperança é dos lugares mais seguros para se continuar a lutar pelo mundo.

lista de entidades que apoiaram esta ação humanitária
Cisco, CRC Car Rental Company, Banco Primus, C Santos vp, Socicorreia, Hamburgueria do Bairro, dplace, Hotelar, Soc. Comercial C. Santos, Santogal, Omatapalo, Europcar, Mercedes Benz Retail, Sadorent, Internacional Car, Easy Earking, CAEL, Lage, Lactogal, Fonte Viva, Vodafone, Sporting Clube de Portugal, DouroAzul, Madeira Rent, Orasroc, Alaire, The Edge Group, Bridgelk, J.H.F. Lopes, Optocentro, Adega Mãe, Enerre, Novimed, Afia, GD Auto, Verling, ACP, Cruz Vermelha Portuguesa, Associação Coração com Coroa, União das Misericordias, Câmara Municipal de Lisboa e Embaixada da Ucrânia.

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