A Rússia vai ficando prejudicada à medida que o inverno se aproxima. Conseguirá a Ucrânia desviar um novo ataque?

CNN , Análise de Rob Picheta
15 out 2022, 22:00
Ataque em Kiev (AP)

A relativa calma nas cidades ucranianas longe dos campos de batalha do país foi abalada esta semana por dois sons que, infelizmente, lhes são já familiares: o sinistro toque das sirenes de ataque aéreo e as explosões dos ataques russos.

De acordo com as autoridades, uma onda de mísseis, ‘rockets’ e drones atingiu dezenas de locais em toda a Ucrânia desde segunda-feira, tendo como alvo várias infraestruturas civis em grandes cidades, incluindo Kiev, localizadas a centenas de quilómetros das linhas da frente no leste e a sul.

O violento bombardeamento relembrou os primeiros dias da invasão inicial da Rússia, em fevereiro, mas também deu a entender que o conflito na Ucrânia, que durante meses parecia estar a descer para uma lenta e dolorosa batalha no Donbass, irrompeu novamente à medida que o inverno se aproxima.

Não é a primeira vez que a guerra se encaminha para uma nova fase imprevisível. “Esta é agora a terceira, quarta, possivelmente quinta guerra diferente que temos vindo a observar”, afirmou Keir Giles, um consultor sénior do Programa da Rússia e Eurásia da Chatham House.

Os ataques seguiram-se a semanas de conquistas de terreno ucranianas e começaram dois dias depois de uma enorme explosão ter danificado a ponte de Kerch, a única passagem entre a península da Crimeia anexada e a Rússia. Essa explosão, que foi usada pelo Kremlin como justificação para o ataque de segunda-feira, feriu o ego russo e deu à Ucrânia um impulso estratégico significativo.

Com os meses frios a aproximarem-se e com a provável desaceleração do combate terrestre, os especialistas afirmam que as próximas semanas da guerra serão vitais, e outro potencial pico de intensidade paira sobre a Ucrânia à medida que cada um dos lados procura dar um novo golpe.

“O que parecia ser uma perspetiva distante para qualquer afirmação que descrevesse convincentemente uma vitória da Ucrânia é agora algo muito mais plausível”, afirmou Giles. “É provável que a resposta da Rússia se intensifique ainda mais.”

‘Jogar até ao apito final'

Os ataques de segunda-feira, e outros ataques ao longo da semana, foram a prova de que o Presidente russo Vladimir Putin foi atingido após uma série de contratempos na guerra que o colocaram sob pressão a nível interno.

E os ataques aéreos foram uma distração do que tem sido um período sombrio para a Rússia na guerra a nível terrestre.

Oleksii Hromov, um alto funcionário militar ucraniano, referiu na semana passada que as forças de Kiev reconquistaram cerca de 120 povoações desde finais de setembro, à medida que avançam nas regiões de Kharkiv, Donetsk e Kherson. Na quarta-feira, a Ucrânia disse ter libertado mais cinco povoações no seu lento, mas constante, empurrão em Kherson.

Estas contraofensivas alteraram o ímpeto da guerra e refutaram uma sugestão, construída no Ocidente e na Rússia durante o verão, de que, embora a Ucrânia pudesse defender firmemente o seu território, faltava-lhe a capacidade de se apoderar do terreno.

As tropas ucranianas içam a bandeira do país sobre um edifício em Vysokopillya, na região sul de Kherson, no mês passado. As autoridades ucranianas afirmam ter libertado centenas de povoações desde o início do seu contra-ataque (AndriyYermak/Twitter)

"Os russos estão a jogar até ao apito final - (na esperança de) evitar um colapso na sua linha da frente antes do inverno se instalar”, afirmou Samir Puri, membro sénior do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos e autor de “Russia's Road to War with Ukraine” (O percurso da Rússia até à guerra com a Ucrânia – tradução livre), à CNN.

“Se eles conseguirem chegar ao Natal com a linha da frente mais ou menos como está, será um enorme sucesso para os russos, dado o quão confuso isto tem sido desde fevereiro.”

Perante os crescentes retrocessos, o Kremlin nomeou um novo comandante-geral da invasão russa. Mas há poucos sinais de que o general Sergey Surovikin possa conduzir as suas forças de volta à frente antes do final do ano, dado o ritmo e o custo das contraofensivas ucranianas.

As tropas ucranianas estão concentradas principalmente em empurrar as forças russas para leste, tendo atravessado o rio Oskil no final de setembro, sendo provável que Moscovo se prepare para defender as cidades de Starobilsk e Svatove na região de Lugansk, segundo o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW).

Se conseguissem avançar com um grande golpe no Donbass enviariam outro sinal poderoso, e a Ucrânia estará ansiosa por fazer progressos nas suas conquistas antes que as temperaturas desçam no campo de batalha, e o impacto total do aumento dos preços da energia seja sentido em toda a Europa.

“Há inúmeras razões pelas quais existe um incentivo para a Ucrânia tomar medidas rapidamente”, referiu Giles. “A crise energética de inverno na Europa, e a infraestrutura de eletricidade e potência a serem destruídas na própria Ucrânia, será inevitavelmente um teste de resistência para a Ucrânia e para os seus apoiantes ocidentais.”

Os líderes da NATO juraram apoiar a Ucrânia independentemente do tempo que a guerra durar, mas existem vários países europeus - particularmente aqueles que dependem bastante da energia russa – que estão a enfrentar uma crise paralisante do custo de vida que, sem sinais de progresso ucraniano no campo de batalha, poderá pôr em risco o apoio público.

Os últimos dias provaram, entretanto, que locais para além do atual teatro de combates terrestres estão longe de estar imunes aos ataques. Continua a não ser muito claro como foi executado o bombardeamento da ponte de Kerch - e Kiev não reivindicou a responsabilidade - mas o facto de um alvo que está tão inserido em território russo ter sido atingido com sucesso, sugere uma séria ameaça ucraniana contra o património russo.

A Rússia luta por mais soldados

A Rússia está a lutar no terreno e não conseguiu alcançar a supremacia no ar, mas talvez os ataques de segunda-feira tenham alcançado um objetivo – o de enviar um sinal de força para a crescente lista de críticos internos de Putin.

O ataque danificou infraestruturas civis em cidades de toda a Ucrânia, matando várias pessoas e derrubando o poder em determinadas zonas do país. Foram “uma manifestação da natureza da ameaça da Rússia”, afirmou Giles. “Há muitos meses que o objetivo russo tem sido o de destruir a Ucrânia, e não o de a possuir.”

A companhia nacional de eletricidade da Ucrânia, Ukrenergo, diz ter estabilizado o fornecimento de energia a Kiev e regiões centrais da Ucrânia depois de grande parte do fornecimento de eletricidade do país ter sido interrompido por ataques de mísseis russos na segunda e terça-feira. Mas o primeiro-ministro ucraniano advertiu que “há muito trabalho a fazer” para reparar o equipamento danificado, e pediu aos ucranianos que reduzissem o seu consumo de energia durante as horas de ponta.

Os especialistas acreditam que continua a ser improvável que o bombardeamento aéreo da Rússia se torne um padrão recorrente; embora tentar fazer uma estimativa das reservas militares de qualquer um dos exércitos seja um esforço em vão, as avaliações ocidentais sugerem que Moscovo poderá não ter a capacidade de continuar a este ritmo.

“Sabemos - e os comandantes russos no terreno sabem - que os seus abastecimentos e munições se estão a esgotar”, afirmou Jeremy Fleming, um chefe espião do Reino Unido, num breve discurso na terça-feira.

Essa conclusão foi também alcançada pelo ISW, que afirmou na sua atualização diária sobre o conflito na segunda-feira que estes ataques “desperdiçaram algumas das armas de precisão que já estão em declínio da Rússia contra alvos civis, em oposição a alvos militarmente significativos”.

Uma cratera causada por um ataque de mísseis junto a um parque infantil em Kiev, na segunda-feira (Ed Ram/Getty Images)

“A utilização pela Rússia do seu fornecimento limitado de armas de precisão neste contexto pode privar Putin de opções para travar as contraofensivas ucranianas em curso”, avaliou o ISW.

A quantidade exata de armamento e de mão-de-obra que cada lado tem em reserva será crucial para determinar como o ímpeto mudará nas próximas semanas. A Ucrânia disse ter intercetado 18 mísseis de cruzeiro na terça-feira e mais outras dúzias na segunda-feira, mas está a pedir aos seus aliados ocidentais mais equipamento para afastar quaisquer ataques futuros.

“A travagem de ataques de mísseis terá uma funcionalidade ocasional, reservada para demonstrações de extrema indignação, porque os russos não têm os stocks de munições de precisão para manter esse tipo de ataque de mísseis de alto impacto no futuro”, afirmou Puri.

No entanto, pode estar a caminho alguma ajuda para Putin. Um anúncio do presidente bielorrusso Alexander Lukashenko de que a Bielorrússia e a Rússia irão “destacar um grupo regional conjunto de tropas” suscitou receios de uma cooperação militar aprofundada entre os aliados próximos e de que as tropas bielorrussas pudessem juntar-se formalmente à Rússia na sua invasão. A Bielorrússia tem vindo a queixar-se de alegadas ameaças ucranianas à sua segurança nos últimos dias, o que, segundo os observadores, poderá ser um prelúdio para algum nível de envolvimento.

O impacto de uma intervenção deste género em termos de mão-de-obra pura seria limitado; a Bielorrússia tem cerca de 45.000 soldados no ativo, o que não reforçaria significativamente as reservas da Rússia. Mas poderá constituir uma ameaça de ataque ao flanco norte da Ucrânia, abaixo da fronteira bielorrussa.

“A reabertura de uma frente norte seria um novo desafio para a Ucrânia”, acrescentou Giles. Proporcionaria à Rússia uma nova rota para a oblast de Kharkiv (região), que foi recuperada pela Ucrânia, caso Putin desse prioridade a um esforço de recuperação desse território, afirmou.

Qualquer envolvimento bielorrusso na guerra poderá também ter um impacto psicológico, sugeriu Puri. “A atenção de todas as pessoas na Ucrânia e no Ocidente tem sido orientada para combater um exército”, afirmou. Dentro da Rússia, se a Bielorússia se juntar à invasão isto seria “invalidar a narrativa de Putin de que esta guerra é sobre a reunificação das terras dos antigos estados russos.”

Um apelo ao Ocidente

Ao virar do avesso a narrativa do conflito nos últimos dois meses, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky alcançu um dos seus objetivos-chave: mostrar aos aliados ocidentais da Ucrânia que a sua ajuda militar pode ajudar Kiev a vencer a guerra.

Agora Zelensky espera conseguir obter mais fornecimentos a curto prazo, com a esperança de levar essa ajuda aos seus. O líder tem procurado destacar o sucesso da Ucrânia na interceção de mísseis russos, afirmando que mais de metade dos mísseis e drones lançados na Ucrânia na segunda vaga de ataques na terça-feira foram derrubados.

O secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, afirmou na terça-feira que a Ucrânia precisava de “mais” sistemas para travar da melhor forma os ataques de mísseis, antes de uma reunião dos ministros da defesa da NATO em Bruxelas.

“Estes sistemas de defesa aérea estão a fazer a diferença porque muitos dos mísseis que chegaram [esta semana] foram efetivamente abatidos pelos sistemas de defesa aérea ucranianos fornecidos pelos Aliados da NATO”, afirmou Stoltenberg.

“Mas, a partir do momento em que nem todos eles são abatidos, é claro que há necessidade de mais”, acrescentou Stoltenberg.

Justin Bronk, um perito militar do Royal United Services Institute (RUSI) com sede em Londres, concordou com essa avaliação, informando a CNN de que, “as taxas de sucesso da interceção ucraniana contra os mísseis de cruzeiro russos aumentaram significativamente desde o início da invasão em fevereiro”.

A Ucrânia “precisava mesmo” de sistemas modernos como o IRIS-T que chegou esta semana da Alemanha e o NASAMS que aguarda vir dos Estados Unidos, referiu Bronk.

Além do fornecimento de armas, a Ucrânia estará atenta para assegurar que a determinação ocidental se mantém firme, caso a Rússia reduza ainda mais no fornecimento de energia.

“Há muitas coisas que a Rússia pode fazer para tornar a guerra pessoal, não apenas para as pessoas da Ucrânia, mas em toda a Europa, para tentar forçar os governos a retirar o seu apoio à Ucrânia”, disse Giles.

Os ataques aéreos desta semana podem apontar nesse sentido; o ministro da Energia da Ucrânia, Herman Halushchenko, disse à CNN que cerca de 30% das infraestruturas energéticas na Ucrânia foram atingidas por mísseis russos na segunda e terça-feira. O ministro informou a CNN que esta foi a “primeira vez desde o início da guerra” que a Rússia “direcionou de forma violenta” o ataque para as infraestruturas energéticas.

As próximas semanas são, portanto, cruciais tanto no campo de batalha, como na Europa e em todo o mundo, sugerem os especialistas. “Como sempre, a direção que Putin seguir dependerá do modo como o resto do mundo responder”, disse Giles. “A atitude da Rússia é moldada pelo fracasso dos países ocidentais em confrontá-la e dissuadi-la.”

Isto significa que, à medida que o inverno se aproxima, se levantam novamente questões acerca desta guerra. “Não há dúvida de que a Rússia gostaria de a manter”, disse Giles. Mas os sucessos ucranianos das últimas semanas também enviaram uma mensagem direta ao Kremlin. “Eles são capazes de tomar ações que nos apanham de surpresa, por isso vamos habituar-nos a isso”, afirmou.

Relacionados

Europa

Mais Europa

Patrocinados