“A Europa corre o risco de se tornar um ‘Estado vassalo’ dos Estados Unidos”

26 mar 2022, 09:30
Major-general Agostinho Costa (Lusa/Manuel de Almeida)

A NATO é hoje mais um fórum político do que uma aliança militar, afirma o major-general Agostinho Costa, membro do EuroDefense. A falta de capacidade estratégica e militar da UE “é deprimente”. Entrevista ao fim de um mês da invasão da Ucrânia, para compreender em que momento estamos. E como a Rússia pôs a NATO em sentido com o armamento hipersónico

Esta semana houve uma grande mobilização política do Ocidente, sobretudo a partir dos Estados Unidos, na cimeira da NATO em Bruxelas e na visita de Joe Biden à Polónia. O que mudou esta semana?
É o epílogo de uma sucessão de patamares que temos vindo a assistir ao longo destas quatro semanas de conflito -  e que até já vinha de antes, da iniciativa do Kremlin junto dos EUA e da NATO de propor uma discussão para uma nova arquitetura de segurança para a Europa que desse garantias de segurança a ambas as partes, e que envolvia o estatuto da Ucrânia e o posicionamento de armas nucleares de alcance intermédio. No patamar do “mutual assured destruction” [doutrina da Destruição Mútua Assegurada, em que o desenvolvimento progressivo de armas é feito para impedir a sua utilização pela outra parte] temos dois níveis a descoberto, o do antimíssil e o dos misseis intermédios. Ora, nessa proposta que o Kremlin enviou aos EUA e à NATO, a UE não foi chamada - o que é um pouco deprimente, porque a UE é um espaço politico, mas os russos têm uma postura bilateral e não reconhecem a UE. 

Essa falta de consideração não parte também dos EUA?
Um pouco, sim. 

Ao longo destas semanas, parece haver também algum paternalismo dos EUA em relação à Europa.
Mas isso é mais culpa da própria da Europa, que nem sempre tem tido uma política externa muito assertiva e eficaz. A partir do momento em que a Europa, como ator estratégico, é inexistente… 

Porquê?
Em ultima instância, o que conta é a capacidade estratégica - e quando falamos em capacidade estratégica falamos em capacidade militar. Quem tem capacidade estratégica a nível global? São os EUA, a grande potência estratégica no mundo, são a Rússia e a China, que está num plano ascendente. A Índia também está a procurar isso, mas o grande rival estratégico para os EUA é a Rússia, que tem um arsenal nuclear equivalente e, no chamado “third offset”, está mesmo em vantagem. Se o senhor Putin não tivesse a vantagem nesse “third offset”, os russos nunca teriam tido esta ofensiva. 

Já vamos ao “third offset”. Antes disso: a proposta da Kremlin antes da invasão não teve acolhimento… 
A iniciativa foi gorada. 

… e ignorando a UE. Interpretei bem, diz que a falta de capacidade estratégica e militar da UE é deprimente?
É deprimente. A UE é um espaço com 450 milhões de habitantes, é o maior mercado em rendimento e em poder de comprar, é o mercado mais significativo a nível global. Mas depois, ao nível estratégico… Se analisarmos o conjunto dos orçamentos de defesa da UE, ele anda na casa dos quatro mil milhões, é idêntico ao da China e quase quatro vezes o da Rússia. Só que está espalhado. Basta ver a proliferação de equipamentos que existe na Europa, é de uma ineficiência e ineficácia imensa.

Quando a Alemanha anuncia a reforço do orçamento militar, não está a falar pela Europa.
Não é uma resposta europeia, nem a haverá enquanto a defesa da UE não passar do patamar intergovernamental para o supranacional, como temos vindo a defender no EuroDefense. Não defendemos a eliminação das forças armadas nacionais - tal como os EUA têm as forças armadas federais -, mas a UE necessita, até por questões de custo, de ter transporte estratégico, informação estratégica, capacidade de projeção de forças, capacidade naval… Tudo isso implica orçamentos que um só país não tem capacidade de ter. Aí recordamo-nos da frase da senhora [Federica] Mogherini, que é lapidar: na Europa há dois tipos de países, os pequenos e os que ainda não perceberam que são pequenos. O problema não são os países pequenos, são aqueles que ainda não perceberam que são pequenos. 

Inclui a Alemanha e a França nesses países?
Sim. É claro que o eixo Berlim-Paris é o determinante na UE, mas a Europa são 450 milhões de habitantes. Os russos têm mais de 200 mil homens e a UE apresenta cinco mil como nível de ambição? Isso é que é a bússola estratégica que a UE esteve dois anos a anunciar como o alfa e o ómega para a sua segurança e defesa?

A UE depende dos EUA, é o que está a dizer.
A UE corre o risco de se tornar um Estado vassalo dos Estados Unidos. E o importante é ser um par dos Estados Unidos. E só será par se o for no plano estratégico, para estar num plano de igualdade. E assim os russos também nos respeitariam. 

Joe Biden, neste momento, parece mais do que o líder do Ocidente, parece quase comandar a Europa. Esta semana, por exemplo, foi ele quem anunciou as novas sanções russas, dizendo que eram impostas em coordenação com a Europa. Mas a iniciativa foi americana. Ao mesmo tempo, a NATO regozijou-se esta semana por estar “mais unida que nunca”, no que parece ser um discurso autocelebratório. Concorda?
Não posso estar mais de acordo. Fez esta semana 23 anos que começou a campanha aérea da NATO contra a Jugoslávia. Lembre-se aliás da incomodidade do nosso Presidente da República de então, o Doutor Jorge Sampaio: estava incomodado porque era um homem do Direito Internacional, um iminente advogado, o incómodo era estarmos numa guerra que não tinha mandato da ONU com caças portugueses a manter a zona de exclusão aérea. 

Que agora Zelenski pede.
A história repete-se. O efeito emergente foi a queda do senhor Ieltsin e a chegada do senhor Putin, efeito de uma falta de sensibilidade no lidar da situação da Sérvia com os russos. E a partir daí a NATO só foi empregue uma vez. Os americanos perceberam então que, para operações de combate, iriam com os ingleses e com os australianos: foram com eles para o Afeganistão, para o Iraque… a NATO só entrou na fase de estabilização. Nunca mais foi empregue. 

Daí que, até à guerra na Ucrânia, dizia-se que a NATO estava em “morte cerebral”.
A NATO hoje tem 30 países. Uma aliança militar com 30 países tem uma eficácia operacional duvidosa. Hoje, a NATO é fundamentalmente um fórum político. E é um importante fórum político, não a subvalorizemos. Mas se houver um conflito, o comando e controlo de trinta países é muito complicado. Efetivamente, a eficácia da NATO assenta nos EUA. Quando eventualmente a NATO for empregue, serão os EUA com uma “escolha” dos países que eles considerem que têm valor acrescentado. 

Biden disse em Bruxelas que se a Rússia utilizar armas químicas, “nós responderemos”. O que pode isto querer dizer? A NATO não vai responder bombardeando a Rússia com armas químicas.
É uma narrativa. Isto é uma interpretação de ordem pessoal: é uma contranarrativa para a dos russos, que dizem que os EUA têm laboratórios de armas químicas na Ucrânia. Os EUA sabem perfeitamente que os russos não vão usar armas químicas. Não as utilizam, muito menos numa zona onde a população é maioritariamente russófona. As imagens que CNN mostrou de filas de gente a receber apoio humanitário são na parte russa. Quem lá estava era o presidente da república independentista de Donetsk, a falar com pessoas, a distribuir bolachas. Aquilo é um filme de publicidade russo. Eles consideram aquilo território amigo, não vão usar armas químicas ali. E os americanos sabem-no. Mas há um risco. Qual? É o risco de uma provocação. 

Como assim? 
O risco que podemos ter, à semelhança do que houve na Síria, é o de provocações que coloquem os EUA e a NATO numa posição difícil. 

Qual é o simbolismo de Biden ter visitado a Polónia?
A Polónia é o país mais próximo dos EUA. Em relação à Ucrânia, há dois países com interesse diretos: um é a Rússia, que já os mostrou; o outro é a Polónia. E já vimos que a matriz do governo polaco é a de um governo nacionalista duro. 

Ou seja, não sejamos ingénuos: não são interesseiros mas têm interesses.
Têm interesses e são interesseiros. Porquê? Toda aquela zona ocidental da Ucrânia fez parte da Polónia durante muitos anos.

A Polónia tem uma história de devastação, como a Ucrânia.
Igual. A União polaco-lituana compreendia grande parte da Ucrânia, se não quase toda. Só em 1686 é que Kiev e a zona a leste do [rio] Dniepre ficou integrada no império russo. 

No princípio desta conversa, falou de termos dois níveis a descoberto, o antimíssil e o de misseis intermédios. Pode explicar?
Fundamentalmente, são os patamares de escalada até uma guerra nuclear. Em 1972, Brejnev e Nixon assinaram o tratado antimíssil, assumindo que havia uma escalada – era o tempo da bomba de neutrões, das bombas que eliminavam pessoas mas mantinham o material, as chamadas “bombas limpas” – como se houvesse bombas limpas, todas as bombas são sujas. 
Em primeiro lugar, há as bombas nucleares táticas, que têm objetivos específicos, com misseis de alcance intermédio na casa entre os 500 e os pouco mais de mil quilómetros. Não são intercontinentais, são mísseis fundamentalmente direcionados para a Europa. Depois, há o patamar estratégico, que são normalmente mísseis transportados em submarinos, que estão sempre a circular no mundo. Usá-los é, digamos, o “castigo divino”: quando nada restar, saem os mísseis intercontinentais, de ogivas múltiplas, vai um para Washington, um para Moscovo, é a loucura total. Isto é o que se chama o “first offset”, que foi o nível de tecnologia que os EUA usaram em Hiroxima e Nagasaki.

Derrotando o Japão na Segunda Guerra Mundial.
Os japoneses já estavam a negociar a rendição na Cruz Vermelha, mas os soviéticos estavam a balancear forças para o Extremo Oriente. É por isso que alguns geopolíticos dizem que as duas bombas nucleares talvez não tenham sido para os japoneses, foram um sinal para mostrar uma superioridade total da parte dos EUA. Este “first offset” foram estas armas nucleares. 

Mas não ficou por aí.
Como isto é uma corrida armamentista, os russos a seguir lançaram também uma bomba atómica, depois as bombas H, depois aumentaram a tonelagem, depois o sistema antimíssil, até que concluíram que destruir o antimíssil garantia a paz. Isso predominou na guerra fria, que termina em 1989, e a união soviética dissolve-se depois. 
Em 1991, quando os EUA intervêm na primeira guerra do Iraque, aparece uma nova tecnologia: digitalização do campo de batalha, perceção situacional em tempo real, munições inteligentes e sistemas furtivos. Isso é o chamado “second offset”, os americanos apresentaram uma tecnologia para a qual os russos não tinham capacidade, nem os chineses. Em 2008, quando se dá a crise da Georgia, o exército russo intervém e constata o estado deprimente em que está o seu exército. A partir daí encetam o seu desenvolvimento tecnológico, enquanto os americanos estiveram entretidos durante 20 anos na guerra global contra o terrorismo – num erro estratégico do tamanho de um prédio. Direcionaram as suas forças para aquilo que são iminentemente ações de polícia, contra um inimigo, o terrorismo, que nunca acaba. Deram tempo à China e à Rússia para se modernizarem tecnologicamente. O que é que acontece? Os russos anularam a vantagem, desenvolveram um caça furtivo, digitalizaram o campo de batalha – vimos agora o ataque ao centro comercial, tudo aquilo filmado, de dentro do centro comercial, de um drone, um filme russo que parecia Hollywood. Aquilo foi feito para a comunicação social. Para mostrar que eles estavam naquele patamar. E depois deram outro sinal: o “third offset”.

Como?
A supremacia tecnológica no campo militar, num novo patamar que tem várias camadas. O “third offset” inclui a inteligência artificial, a comunicação e a condução das operações, a substituição de mentes para definir alvos, a utilização de armas autónomas, a robotização, e armas hipersónicas. Nas armas hipersónicas, aparentemente quem vai à frente são os russos. 
Para um míssil a voar a dez vezes a velocidade do som não há antimíssil que o pare. O sistema AEGIS [norte-americano] está posicionado em Deveselu e Redzikowo, duas bases de comando e controlo, enquanto os misseis estão embarcados no Báltico e no Mediterrâneo. Se houver uma ofensiva estratégica de misseis a partir da Rússia, estes dois sistemas fazem disparar os antimísseis e no espaço intercetam-se: é a guerra das estrelas que Reagan apresentou. 

A Rússia está a usar estes mísseis. É uma demonstração de superioridade tecnológica?
Estes misseis Kinzhal, hipersónicos, voam baixo e a uma velocidade que o antimíssil não para. São “a arma ideal”, como lhes chama o senhor Putin. E podem levar uma ogiva nuclear. 
O senhor Putin lançou dois para a zona de Ivano-Frankivsk, que fica mais ou menos a meio caminho entre Deveselu e Redzikowo. Fica a 987 quilómetros de Redzikowo e 757 de Deveselu. Estes dois mísseis foram cirúrgicos. Não foram para os ucranianos, foram para a NATO. E os americanos sabem isso, sabem que neste momento não têm capacidade de eliminar estas medidas. Estes misseis, se direcionados para os porta-aviões, afundam os 11 porta-aviões americanos. Os americanos sabem isso. E isto permite em certa medida paralisar a NATO e os Estados Unidos. 

Por isso é que não se pode desvalorizar Putin. Há dias disse na CNN Portugal que não acredita que o exército russo tenha dificuldades de abastecimento, ao contrário do que se diz. “Give me a break” ["tenham paciência"], afirmou. 
Não faz sentido. Eles estavam à espera de serem recebidos de braços abertos e não foram, isso falhou. Mas há demasiado “wishful thinking” na narrativa de que os russos estão perdidos. Aliás, tudo indica que esta invasão tem objetivos limitados. 

Não é toda tomar toda a Ucrânia.
Não faz sentido. Só um planeador incompetente é que o faria assim. Repare: a leste [da Ucrânia] está a fronteira russa, o norte é controlado pelos russos, o mar a sul está controlado pelos russos, a Moldova está neutralizada porque não é da NATO. Se o objetivo fosse ficar com toda a Ucrânia, fechavam a porta a oeste. Só um idiota faria “uma ferradura” como eles fizeram. Isto atesta que o objetivo não é fechar o país. Se fosse, fechavam-no a oeste, controlam o espaço aéreo e era só esperar. 

Relacionados

Europa

Mais Europa

Patrocinados