A colheita de cereais na Ucrânia tornou-se o novo campo de batalha com o fogo a escurecer as regiões cultiváveis

CNN , Tim Lister e Petro Zadorozhnyy
12 jul 2022, 21:35
A colheita de cereais na Ucrânia tornou-se o novo campo de batalha com o fogo a escurecer as regiões cultiváveis (CNN)

Por toda a Ucrânia, no calor abrasador, uma visão está a tornar-se familiar neste verão: ceifeiras-debulhadoras varrem campos de cereais numa corrida contra os incêndios que se espalham rapidamente. 

As linhas da frente do conflito contêm algumas das terras agrícolas mais ricas da Ucrânia. Seja por acidente ou intenção, os incêndios que escurecem o céu de verão estão a consumir uma colheita que sempre foi difícil de recolher e ainda mais difícil de exportar. 

Pavlo Serhienko está na mira desta batalha. O jovem de 24 anos é a terceira geração da sua família a gerir uma quinta no distrito de Vasylivka, em Zaporizhzhia. Desde que o pai morreu de coronavírus, Serhienko gere sozinho a quinta de 3 mil hectares. 

Mas quase metade da terra é agora demasiado perigosa para ser cultivada, disse à CNN no sábado. 

"Nem sequer conseguimos chegar lá. Ou está minada ou fica perto dos territórios ocupados, literalmente na linha da frente. Tínhamos ocupantes em parte dos campos.” 

Serhienko viu literalmente os negócios da família extinguirem-se em chamas. 

Pavlo Serhienko disse que teve de extinguir muitos incêndios que começaram na sua quinta. 

"Nos últimos quatro dias, os nossos joelhos ficaram cobertos de sangue, estamos a extinguir [incêndios] nos campos. [Os russos] atingiram particularmente os campos - campos com trigo e cevada – todos os dias " 

Serhienko disse que, nos últimos dias, tinha perdido 30 hectares de trigo e 55 hectares de cevada. E "aqueles 1200 hectares que não consigo alcançar também estão a arder". "Mas o que posso fazer? Eu nem vou lá.” 

A época de sementeira foi igualmente perigosa. "Semeámos um campo de 40 hectares. Tivemos de sair do campo quatro vezes para terminar. Sempre que partimos, bombardearam imediatamente o campo. Uma vez foi atingido por 23 morteiros." 

Os edifícios e equipamentos da quinta também foram atingidos.

Os seus edifícios e equipamentos também foram atingidos – a quinta com animais e todos os armazéns construídos nos últimos 20 anos foram destruídos. 

"A plantadora foi esmagada, a oficina de inverno, onde reparamos tratores e ceifeiras, também foi destruída." 

Há centenas de agricultores numa situação semelhante. Muitos provavelmente enfrentam falência. 

Ataques direcionados 

As autoridades ucranianas não têm dúvidas de que parte da estratégia da Rússia consiste em destruir a riqueza agrícola da Ucrânia. 

Na semana passada, a polícia da região sul de Kherson, uma das zonas aráveis mais produtivas da Ucrânia, abriu um processo criminal sobre a "destruição propositada" das colheitas pelos militares russos. 

A polícia acusou as forças russas de "bombardear terras agrícolas com bombas incendiárias". "Incêndios em larga escala ocorrem todos os dias, centenas de hectares de trigo, cevada e outras culturas de cereais já arderam." 

"Para salvar pelo menos parte da colheita, os moradores trabalham em máquinas junto a uma parede de fogo", disse a polícia. 

Edifícios na quinta de Pavlo Serhienko foram atingidos por artilharia. 

Uma vez iniciados os incêndios, há poucas hipóteses de os extinguir. Muitas áreas contestadas estão sem água canalizada e muitas vezes é demasiado perigoso tentar combater as chamas. 

A polícia de Kherson alega que "os russos deliberadamente impedem que as pessoas extingam os incêndios", citando um incêndio que queimou 12 hectares e pinhais adjacentes na área ocupada em torno da aldeia de Rozlyv. 

As linhas de frente ativas no conflito estendem-se por mais de 1000 km (620 milhas) – principalmente através de terras agrícolas. Na região de Donetsk, Pavlo Kyrylenko, chefe da administração militar regional, disse que "o inimigo começou a usar a tática de destruir campos onde a colheita está em curso". 

Os serviços de emergência ucranianos publicaram imagens de incêndios que varreram as terras agrícolas de Donetsk na semana passada. 

Ihor Lutsenko, um ex-membro do Parlamento agora nas forças armadas, publicou uma imagem que mostrava um incêndio substancial a sul de Bakhmut, uma área de Donetsk que está sob ataque quase constante. "Os campos estão em chamas aqui", disse Lutsenko à CNN na semana passada. "Testemunhámos os russos a lançarem munições incendiárias. Isto é para queimar as nossas posições." 

A imagem foi republicada pelo Ministério da Defesa, que acrescentou: "Não é o trigo ucraniano que está a arder, é a segurança alimentar do mundo que está em chamas". 

Um pouco mais a oeste, a Câmara Municipal de Kramatorsk, uma área que está a ser cada vez mais massacrada pela Rússia, também publicou imagens de campos queimados, alguns com os restos de foguetes russos ainda presentes. Dizia que 35 hectares de colheitas tinham sido destruídos nos últimos incêndios. 

Militares ucranianos andam em veículos militares numa linha de frente a 8 de julho, no meio dos ataques da Rússia à região de Donetsk, no leste da Ucrânia. 

Batalha em múltiplas frentes 

A colheita de verão está apenas a começar - desta forma, ainda não é possível avaliar os danos globais causados pelos incêndios. Na sexta-feira, o Ministério da Agricultura disse que os agricultores tinham recolhido o primeiro milhão de toneladas de cereais da temporada de 2022, de pouco mais de 400 mil hectares – mas isso representa apenas 3% da área de sementeira. 

Além dos incêndios, os agricultores ucranianos enfrentam múltiplos desafios. Os que se aproximam das linhas da frente devem enfrentar o risco de colheita e a falta de armazenamento adequado. Dezenas de silos e alguns dos maiores terminais de exportação foram destruídos por bombardeamentos russos. Um dos maiores, na cidade de Mykolaiv, no Sul, continha cerca de 250 mil toneladas de cereais, antes de ser incendiado em junho. 

Além disso, alguns analistas dizem que há problemas na obtenção de gasóleo devido à destruição das refinarias, o que significa que algumas colheitas não serão feitas. 

Veículos e equipamento essencial da quinta de Pavlo Serhienko foram destruídos pelos bombardeamentos.

Onde quer que estejam, os agricultores enfrentam um pesadelo logístico na exportação dos seus cereais e sementes oleaginosas porque os portos do Mar Negro estão essencialmente encerrados. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura lançou um programa de emergência de 17 milhões de dólares para ajudar a ultrapassar os problemas de armazenamento. Os EUA também se comprometeram a ajudar na construção de silos temporários na Polónia, que faz fronteira com a Ucrânia a oeste. 

Ainda antes dos incêndios, a Ucrânia tinha previsto uma queda acentuada na colheita de cereais e sementes oleaginosas para este ano, em comparação com a produção recorde do ano passado. 

Na semana passada, o sindicato dos comerciantes de cereais da Ucrânia disse esperar uma colheita de cereais e sementes oleaginosas de 69,4 milhões de toneladas, ligeiramente superior às previsões anteriores, mas muito abaixo das 106 milhões de toneladas colhidas no ano passado. 

O ministro da Agricultura, Taras Vysotskiy, disse que a colheita de cereais pode ser de pelo menos 50 milhões de toneladas, por comparação aos 86 milhões de toneladas em 2021. Pelo menos metade dessa produção está destinada à exportação, de acordo com o sindicato dos comerciantes. 

A produção e a exportação de trigo num mercado global já restrito podem estar em risco. A consultora francesa Agritel disse na semana passada que espera que a Ucrânia colha 21,8 milhões de toneladas de trigo neste verão, em comparação com os 32,2 milhões do ano passado. 

O consultor Dan Basse, da consultora AgResource, com sede em Chicago, disse ao podcast AgriTalk, no final de junho, que devido aos desafios logísticos duvida que as exportações russas possam compensar o défice de trigo ucraniano e que o mercado mundial pode ficar aquém de cerca de 10 milhões de toneladas de trigo este ano. 

Após uma recente queda, os preços do trigo estão perto dos níveis mais elevados do ano. 

Parte do que teria sido a produção ucraniana está agora em território controlado pelos russos e seus aliados nas autodeclaradas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk (RPD e RPL). O líder da RPD, Denis Pushilin, disse na semana passada que a colheita de trigo seria muito maior do que em 2021. 

Pushilin publicou fotografias de reuniões com agricultores e disse que tinham discutido "a venda de produtos". Disse também que a RPD planeia utilizar o porto de Mariupol para exportar a colheita. 

A Agritel estima que até 3,7 milhões de toneladas de trigo poderão ser colhidas de algumas regiões do sul e leste sob controlo russo. Os operadores russos estão a esforçar-se para disfarçar as origens do trigo num esforço para vendê-lo no estrangeiro. Estão a transferir cereais para o mar num aparente esforço para disfarçar a sua origem, segundo imagens de satélite analisadas pela CNN, e os navios mercantes estão a desligar os seus identificadores. 

O que não é claro é se as autoridades apoiadas pela Rússia em áreas ocupadas estão a pagar os preços de mercado pelos produtos. As autoridades ucranianas disseram que, em algumas áreas, os russos insistem em descontos acentuados. Há indícios casuais de que alguns agricultores ucranianos preferiram não fazer a colheita. 

"Estratégia cínica" 

O ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba, disse na semana passada que a Rússia tinha uma "estratégia bem pensada e cínica" para destruir a agricultura da Ucrânia. 

"O bloqueio naval russo dos portos ucranianos já destruiu cadeias globais de abastecimento alimentar", disse Kuleba. "Para piorar a situação, a Rússia rouba cereais ucranianos e bombardeia celeiros ucranianos." 

"A Rússia está essencialmente a brincar aos 'jogos de fome' com o mundo, mantendo o bloqueio naval dos portos ucranianos com uma mão e transferindo a culpa para a Ucrânia com a outra," acrescentou Kuleba. 

O ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergey Lavrov, acusou a Ucrânia de causar a paralisação do transporte marítimo mercante ao colocar minas nas águas costeiras. As negociações sobre a passagem segura para navios mercantes, intermediadas pela Turquia, ainda não produziram quaisquer progressos. 

Não é só a colheita deste ano que está em perigo. Os agricultores independentes compõem grande parte do sector agrícola na Ucrânia e não têm os bolsos cheios. 

Basse, da AgResource, disse ao AgriTalk: "O financiamento está a esgotar-se. Digo-vos, quando falo com os meus amigos e clientes, fico com a noção de que teremos agricultores na falência. E depois, claro, com isso a acontecer, teremos problemas reais com a próxima colheita de trigo e com a próxima colheita de milho. Portanto, estou mais preocupado com a produção de 2023 do que estou com a de 2022". 

Tal como Serhienko, que diz que uma combinação do fecho dos portos, custos de transporte mais elevados e preços mais baixos significam que "não há dúvida" de que o seu lucro desaparecerá este ano. Ele estima os seus prejuízos até agora em cerca de 10 milhões de dólares, em termos de produção perdida e infraestruturas destruídas, e não sabe se a quinta da família sobreviverá até 2023. 

Europa

Mais Europa

Patrocinados