A analista de Kharkiv apostada em desarmadilhar as “bombas” da desinformação russa

José Miguel Sardo
6 abr 2022, 21:58
Maria Avdeeva, diretora de investigação da Associação Ucraniana de Peritos Europeus e especialista em temas europeus, segurança internacional e combate à desinformação

Da “desnazificação” da Ucrânia ao alegado “genocídio” no Donbass, os argumentos utilizados desde há mais de um mês por Moscovo para justificar o ataque à Ucrânia estão longe de ser uma novidade para Maria Avdeeva. Retrato e entrevista da analista em segurança que documenta nas redes sociais o dia a dia da guerra em Kharkiv

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“Se queres saber quais são os planos da Rússia, começa por ver quais são as suas acusações”, era assim que o presidente ucraniano Volodymir Zelensky reagia há cerca de um mês às alegações do Ministério da Defesa Russo de que Kiev estaria a preparar ataques com armas biológicas contra a população russófona de Kharkiv e que deveria dissimular a operação acusando a Rússia da sua autoria. Uma estratégia conhecida como “bandeira falsa”, que consiste em culpar o adversário das suas próprias ações para criar um pretexto para retaliar e que, como sublinha Maria Avdeeva, é uma prática recorrente da estratégia de “guerra híbrida” utilizada pela Rússia. A especialista em políticas de segurança e luta contra a desinformação, residente em Kharkiv, dedica-se há mais de oito anos ao estudo e à investigação das táticas de comunicação utilizadas pelo Kremlin, uma das armas da chamada “guerra híbrida”. Oito anos que coincidem precisamente com a revolta do Euromaidan e o início de uma campanha de desinformação russa que, segundo a investigadora, construiu uma narrativa que preparava já o terreno para a atual invasão militar.

A desinformação como arma de guerra

Se o confronto entre duas versões distintas de um mesmo facto parece hoje fazer parte da máquina de propaganda instalada durante uma guerra, a realidade, como sublinha Maria Avdeeva, é que do lado russo a campanha iniciou-se muito antes do exército de Moscovo pisar território ucraniano a 24 de fevereiro. “Ouvimos este tipo de campanhas de desinformação desde que Putin justificou o início da invasão com a ‘desnazificação’ da Ucrânia, mas esta narrativa iniciou-se há muito mais tempo”, afirma a diretora de investigação da Associação Ucraniana de Peritos Europeus, especialista em temas europeus, segurança internacional e combate à desinformação.

Entrevistada por telefone em Kharkiv, a segunda cidade ucraniana, a investigadora recorda como a revolta pró-europeia do Euromaidan, que afastou o então presidente pró-russo em 2014, deu início a uma engrenagem de desinformação baseada na ideia de que “nazis” ou “radicais” tinham tomado o poder na Ucrânia e que estariam prontos a dizimar a população civil russófona. Uma narrativa que da anexação da Crimeia ao conflito separatista do Donbass sempre foi utilizada para justificar as intervenções russas no país vizinho, do apoio aos rebeldes separatistas a alegadas operações autodenominadas de ajuda humanitária.

No início de março, e antes mesmo de invocar o risco de ataques biológicos na Ucrânia, Moscovo tinha assumido o controlo das principais centrais nucleares ucranianas depois de semanas a agitar o receio de que o governo ucraniano preparava um ataque com armas nucleares contra a população russófona do Donbass. A 16 de março, e depois de alertar para a possibilidade de que um grupo “nazi” pudesse bombardear civis refugiados num edifício em Mariupol e acusar a Rússia, um míssil russo caía sobre o teatro da cidade soterrando um número ainda indeterminado de refugiados que se encontravam no interior. A Rússia voltava, uma vez mais, a rejeitar qualquer responsabilidade no sucedido, culpando sem hesitações o “batalhão Azov” do exército ucraniano - que teria feito implodir o edifício com centenas de reféns russófonos no interior.

“Bandeiras falsas” e ameaças verdadeiras

Desde há um mês que todos os argumentos desenvolvidos durante quase uma década pelo Kremlin e meios de comunicação afins regressam agora em força para justificar cada movimento da operação militar russa. Para tentar neutralizar esta prática, desde os primeiros dias que Kiev não poupa esforços para antever todo o tipo de campanhas de desinformação, multiplicando os alertas para “operações de bandeira falsa” por parte da Rússia que possam ser utilizadas como pretexto para intensificar os ataques ou recorrer a armamento mais mortífero e mesmo ilegal.

Há várias semanas, a rede social Facebook anunciava ter suprimido um vídeo falso do presidente Zelensky no qual este anunciava a rendição do país, um dos cenários já anunciados como possíveis por parte do governo ucraniano. Desde meados de março que Kiev multiplica os alertas para a possibilidade de um falso ataque ucraniano em território bielorrusso que pudesse servir de pretexto a Lukashenko para enviar o seu exército para o país vizinho, uma situação que ainda não se produziu.

Esta semana, os serviços secretos ucranianos alertavam para a possibilidade de a Rússia estar a planear ataques “terroristas” contra as igrejas de Kharkiv, alegadamente para culpar os “nacionalistas ucranianos”. Entre as ameaças veladas da Rússia, a que mais preocupa atualmente o lado ucraniano – ecoada pelos Estados Unidos e pela NATO - é a que se refere precisamente ao recurso a armas biológicas ou armas nucleares táticas, sob pretexto de responder a um alegado ataque com este tipo de armamento.

Nesta outra frente de batalha da guerra, Maria Avdeeva afirma ter detetado uma intensificação de informações falsas em torno destes temas nas últimas semanas nos meios oficiais russos, o que, para a especialista, “poderia ser um sinal de que a Rússia está a preparar a opinião pública para uma ação deste tipo”, da mesma forma que há mais de um mês justificava a decisão urgente de invadir a Ucrânia depois de intensificar a campanha de desinformação sobre um alegado “genocídio” da população russófona.

Da desinformação ao descrédito russo em Bucha

Em Kharkiv, agora um dos possíveis alvos da nova fase da invasão russa, Maria Avdveeva alerta para a forma como os mísseis russos e as campanhas de desinformação são as duas armas mais temidas pela população civil da cidade. “Armada” com um telemóvel, a analista prossegue o seu combate contra a desinformação russa agora no terreno, gravando vídeos que publica nas redes sociais para documentar ataques russos contra zonas civis da cidade ou o lançamento de bombas de fragmentação em zonas residenciais, exaustivamente negadas por Moscovo.

É nesta outra frente de batalha, onde as imagens verificadas contra-atacam as bombas da desinformação russa, que Moscovo parece ter sofrido um duro golpe no início desta semana. Face às primeiras imagens e testemunhos das atrocidades cometidas contra civis na cidade de Bucha, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, acusava a Ucrânia de “encenar o ataque”, com o Ministério da Defesa russo a garantir que os cadáveres espalhados pelas ruas seriam posteriores à retirada das tropas russas da cidade. Uma fotografia de satélite analisada pelo New York Times e vários vídeos identificados nas redes sociais desmontavam de imediato a enésima versão alternativa russa e revelavam o limite da desinformação enquanto arma de guerra: o risco de descrédito total.

“Não tenho qualquer razão para acreditar em qualquer coisa que diga ou faça a Rússia, sobretudo quando todos os responsáveis russos asseguraram por várias vezes que não iriam invadir a Ucrânia e vemos hoje os militares russos no nosso país”, aponta Maria Avdeeva.

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