"Como se pede a alguém que seja o último homem a morrer por um erro?"
Foi um dos episódios mais estranhos da história militar, um acontecimento tão invulgar que foi inicialmente considerado um mito. Às 20:30 da véspera de Natal de 1914, nos campos de batalha húmidos e enlameados do norte da Europa durante a Primeira Guerra Mundial, um soldado britânico enviou um relatório para o quartel-general: os soldados alemães tinham iluminado as suas trincheiras e estavam a entoar cânticos enquanto desejavam aos soldados britânicos um feliz Natal.
Os oficiais britânicos ordenaram aos seus homens que ficassem em silêncio mas era demasiado tarde. Um soldado britânico respondeu cantando o refrão de "First Noel". Um soldado alemão gritou para a Terra de Ninguém – o território neutro e mortal, rodeado de arame farpado, que separava os exércitos – "sai, soldado inglês, vem daí ter connosco".
Os soldados saíram das trincheiras e encontraram-se a meio caminho. Os outros fizeram o mesmo e reuniram-se para trocar chocolate, vinho e lembranças. Até organizaram um jogo de futebol, que os alemães venceram por 3-2.
A maioria dos soldados que deu apertos de mão naquela véspera de Natal envolta em nevoeiro estaria morta antes de a guerra terminar, quatro anos depois. Mas as cartas de sobreviventes e fotografias desfocadas a preto e branco provam que não foi um mito. Estima-se que 100 mil soldados de ambos os lados simplesmente se recusaram a lutar porque estavam demasiado cansados e esgotados. As Tréguas de Natal chegaram a durar até ao Ano Novo, em alguns locais.
"Em dezembro de 1914, os homens nas trincheiras eram veteranos, familiarizados com as realidades do combate, tendo perdido grande parte do idealismo que tinham levado para a guerra em agosto e a maioria ansiava pelo fim do derramamento de sangue", segundo um relato das Tréguas de Natal na Revista Smithsonian.
Mais de um século depois, há poucas hipóteses de soldados russos e ucranianos trocarem presentes neste inverno. Mas a história das Tréguas de Natal é um exemplo de uma característica peculiar da guerra que é um aviso para o exército russo sitiado na Ucrânia: há momentos ao longo da História em que exércitos inteiros param subitamente de lutar, apesar de estarem equilibrados ou mesmo numericamente superiores ao inimigo.
O que faz os exércitos perderem a vontade de lutar? E como pode isso acontecer com o exército russo na Ucrânia?
Esta foi a pergunta que a CNN fez a veteranos de combate e historiadores militares. Apesar de a História estar cheia de exércitos em conflito – como o Exército Imperial Japonês na Segunda Guerra Mundial, que lutou com intensidade feroz mesmo sabendo que não ia ganhar – também regista outros exércitos que "desistiram silenciosamente" — pararam de atacar o inimigo ou fizeram o mínimo para se manterem vivos.
As tropas russas podem estar a aproximar-se desse precipício, diz Jeff McCausland, um veterano de combate da Guerra do Golfo e professor visitante de estudos de segurança internacional no Dickinson College, na Pensilvânia.
Diz que ficou claro que o exército russo está mal treinado e abastecido e que os seus soldados, em muitos casos, perderam a vontade de lutar.
"O medo e o pânico são mais contagiosos do que a covid" para um exército, diz McCausland, coautor de "Battle Tested! Lições de Liderança de Gettysburg para líderes do século XXI".
As fontes para o medo e o pânico são variadas. Mas McCausland e outros historiadores dizem que, ao longo da história da guerra, há pelo menos três razões pelas quais os exércitos perdem a vontade de lutar.
Perdem a fé na sua causa
McCausland viu de perto um exército destroçado perder a vontade de lutar.
Diz que comandou um batalhão durante a Guerra do Golfo entre 1990 e 1991 e viu tantos soldados iraquianos renderem-se que a sua unidade teve dificuldades em acomodar os prisioneiros. Acabaram por dar água aos soldados capturados e mandá-los para trás.
A guerra começou quando o exército iraquiano, sob o comando de Saddam Hussein, invadiu o Kuwait. Mas muitos soldados iraquianos simplesmente não achavam que valia a pena dar a vida pelo Kuwait ou pelo líder brutal do Iraque.
"Houve um caso em que soldados iraquianos se renderam a um drone que os sobrevoava", diz McCausland.
Um exemplo mais recente de um exército que perdeu a vontade de lutar veio do Afeganistão.
A meio da retirada dos EUA do país, em 2021, o Exército Nacional Afegão entrou em colapso. Permitiram que os talibãs assumissem rapidamente o controlo, apesar de os EUA terem investido anos e milhares de milhões de dólares a formá-los. Foi um ponto baixo para a administração do Presidente Biden.
A razão da rendição complexa do exército afegão pode ser avaliada numa pergunta, diz McCausland.
"Se perguntássemos a um soldado talibã 'por que raio estás a lutar?', ele diria que estava a lutar para libertar o seu país dos cruzados, tal como o meu avô libertou o país dos soviéticos e o meu tetravô libertou o país dos britânicos. 'E estou a lutar pela minha religião, pelo meu país e pela minha casa'", diz McCausland.
E se a mesma pergunta fosse feita a um soldado do exército afegão?
"Ele diria que está a lutar por um ordenado se o comandante da companhia não o roubar."
Os talibãs acreditavam na sua causa, o exército afegão não, explica McCausland.
Perdem a fé nos seus líderes
Cada guerra tem as suas imagens decisivas. A guerra da Ucrânia já nos deu algumas inesquecíveis, mostrando o contraste nos estilos de liderança do presidente russo Vladimir Putin e do seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky.
Fotos recentes de Putin normalmente mostram-no vestido de fato, sozinho à frente de uma mesa de reuniões absurdamente longa, numa sala grande e despida, com um general ou burocrata encolhido na outra extremidade. Na legenda podia bem ler-se "ditador paranoico e isolado em ação".
Há um claro contraste entre as imagens de Putin e as de Zelensky. Uma mostra-o de pé, confiante, com o seu círculo de conselheiros à noite, em Kiev, depois de jurar que não abandonaria a cidade, apesar de ele e a sua família estarem em perigo. Outras fotografias mostram-no de farda, em forma e com barba, distribuindo abraços pelos soldados nas linhas da frente.
McCausland, que também é consultor de segurança nacional para a rádio e televisão da CBS, diz que as imagens oferecem uma lição de liderança.
"Basta olhar para ambas as fotos em termos de para quem gostaríamos de trabalhar", diz McCausland, que dá workshops de liderança em empresas, instituições sem fins lucrativos e instituições governamentais através da sua empresa, a Diamond6. "Não me interessa se está no exército ou se está a trabalhar para uma empresa. É muito fácil de decidir."
Os exércitos perdem a vontade de lutar quando perdem a fé nos seus líderes, segundo McCausland e outros.
Dizem que os soldados não esperam que generais ou outros líderes se abriguem nas trincheiras da linha da frente com eles. Mas querem saber se os seus líderes gostam deles e respeitam o seu sacrifício.
Se quer saber como um líder pode inspirar um exército a atingir níveis de resistência sobre-humanos, pense nesta história popular de um dos maiores comandantes da História - Alexandre, o Grande.
Alexandre liderava o seu exército - que estava sedento de água - ao longo de um deserto implacável - estavam em busca de um inimigo. Entretanto, alguns batedores aparecem com uma pequena quantidade de água preciosa dentro de um capacete, que entregam a Alexandre. Este, por sua vez, agradece aos soldados e, à frente dos seus homens, deitou a água para o chão. Anunciou que não beberia água a não ser que todos os seus homens também pudessem beber. As suas tropas aplaudiram.
Alexandre, o Grande, nunca perdeu uma batalha.
"Tão extraordinário foi o efeito desta ação que a água desperdiçada por Alexandre foi tão benéfica como uma bebida para cada homem do exército", escreveria um cronista mais tarde.
Perdem o apoio do seu país
Ouvimos os comentadores alertarem para os perigos da hiperpolarização na política americana, do poder corruptor do "dinheiro de origem duvidosa" não regulamentado e praticamente indetetável e da quebra das normas cívicas.
O que muitos não dizem é que estas tendências podem tornar-se uma questão de segurança nacional em tempos de guerra. Simplificando, um exército pode demitir-se quando o seu país se torna demasiado corrupto ou dividido para o apoiar.
Um exemplo clássico é o colapso em massa do exército sul-vietnamita na primavera de 1975. Os militares norte-americanos foram o "irmão mais velho" e benfeitor do Vietname do Sul durante uma década enquanto ambos os países lutavam contra o Viet Cong e o exército norte-vietnamita.
Mas o governo sul-vietnamita estava pejado de corrupção. Os seus líderes e os seus comparsas desviavam a ajuda militar para proveito próprio e nunca conseguiram apoio popular entre o povo que supostamente serviam.
Após a retirada das tropas de combate dos EUA em 1973, o exército norte-vietnamita lançou a sua última ofensiva em Saigão, dois anos depois. O exército sul-vietnamita recusou-se a lutar. Fotos da imprensa desse período mostram o equipamento do exército abandonado nas estradas enquanto os soldados abandonavam as suas unidades e tentavam esconder-se entre a população civil, diz Derek Frisby, historiador da Middle Tennessee State University.
"Uma vez que parecia que o Norte ia dominar o Sul, não havia nada que o exército sul-vietnamita pudesse fazer", diz Frisby. "Assim que os americanos partiram, a derrota do Vietname do Sul parecia inevitável."
As guerras não são apenas travadas por soldados. São travadas por um país, pelo seu povo e pelas suas instituições. São o que o historiador Michael Butler chama 'esforços sociais'.
A saúde das instituições de um país – o seu governo, forças militares e meios de comunicação social – importam tanto como a vontade que um soldado tem de lutar, diz Butler, autor de "Selling a 'Just' War: Framing Legitimacy and U.S. Military Intervention".
Butler referiu "Da Guerra", o trabalho pioneiro do estratega militar prussiano do século XIX Carl von Clausewitz, que escreveu que as "forças da paixão" são tão vitais para um esforço de guerra bem-sucedido como os militares e o governo.
Se um governo é corrupto e não tem a confiança do povo, os seus exércitos podem perder a vontade de lutar, afirma Butler. Diz que isso parece estar a acontecer na Rússia, onde a sociedade é há muito afetada por um "mal-estar social".
Os seus cidadãos viveram a rutura traumática da União Soviética, a corrupção desenfreada, a apatia política e o esmagamento de meios de comunicação independentes e vozes dissidentes, aponta. A apatia política cresceu.
O mal-estar que aflige a Rússia civil pode estar a espalhar-se para os seus militares, diz, acrescentando que os sinais já existem nos milhares de homens que fogem da Rússia para escapar ao recrutamento.
"É uma prova bastante convincente de que as forças da paixão não estão efetivamente ligadas a esta guerra", diz Butler, que também é professor de ciência política na Clark University, no Massachusetts. "Não é surpreendente ver esse fator presente no campo de batalha, com militares a desertar ou a desistir."
No entanto, as forças da paixão agora parecem favorecer a Ucrânia. Os homens e mulheres do exército do país (as mulheres soldados servem em unidades de combate nas forças armadas ucranianas) sabem pelo que estão a lutar.
"Os ucranianos são motivados talvez pela força mais poderosa que um soldado pode sentir – a defesa do seu país, das suas famílias e das suas casas", diz McCausland.
A grande questão para as tropas russas neste inverno
Os militares norte-americanos enfrentaram uma crise de moral há meio século no Vietname.
As tropas norte-americanas nunca se renderam durante a Guerra do Vietname. Nunca perderam uma grande batalha durante a guerra. A Ofensiva do Tet, em 1968, uma campanha fracassada do exército do Vietname do Norte e do Viet Cong, foi uma vitória militar para os EUA.
E, no entanto, foi também uma perda política devastadora. O público americano virou-se contra a guerra. Protestos antiguerra abalaram o país. O público americano enfureceu-se quando soube que os líderes políticos e militares do seu país lhes tinham mentido sobre o propósito e o sucesso da guerra.
Muitos soldados americanos simplesmente perderam a vontade de lutar. A retirada abrupta dos EUA do Vietname foi um dos capítulos mais humilhantes da história dos Estados Unidos.
O contexto político da guerra dos EUA no Vietname era diferente da atual guerra na Ucrânia. Na Rússia, os protestos contra a guerra foram reprimidos e os meios de comunicação têm sido, em grande parte, acríticos quanto à conduta de Putin.
Mas, no campo de batalha, muitos soldados russos estão a descobrir o que alguns soldados americanos perceberam no Vietname - que estão a lutar por uma mentira.
John Kerry, um veterano de combate do Vietname e futuro senador que mais tarde viria a opor-se à guerra, disse-o durante uma audiência no Congresso de 1971:
"Como se pede a alguém que seja o último homem a morrer por um erro?"
Esta é a questão que pode assombrar os soldados russos na Ucrânia neste inverno. Se Putin não lhes der uma resposta que faça com que os seus sacrifícios valham a pena, a migração em massa de homens que fogem da Rússia após o recrutamento pode espalhar-se para o campo de batalha.
E numa noite gelada de inverno, quando os únicos sons podem não ser de cânticos de Natal mas sim de homens a morrerem no campo de batalha, os soldados russos podem perguntar uns aos outros:
Como se pede a alguém que seja o último homem a morrer por um erro?