"Rússia foi apanhada com as calças na mão". Como a contraofensiva na Síria não podia vir "em pior altura" para o Kremlin

4 dez 2024, 07:00
Rebeldes sírios queimam uma imagem de Bashar al-Assad (AP)

Enquanto o Kremlin está de olhos postos na Ucrânia, uma tempestade inesperada formou-se no Médio Oriente e ameaça virar do avesso um das mais ambiciosas intervenções russas desde o fim da União Soviética.

Era um dos maiores sucessos da política externa russa. Oito anos depois da intervenção de Moscovo na Síria, que salvou o regime de Bashar al-Assad, tudo parecia indicar que a operação era uma enorme vitória estratégica de Putin e que lhe garantiu um porto militar no Mediterrâneo capaz de desafiar a hegemonia americana. Mas uma contraofensiva relâmpago dos rebeldes, que obrigou à retirada de forças russas para a capital, pode estar prestes a fazer ruir a influência do Kremlin na região. Com as mãos atadas na Ucrânia e recursos limitados, os especialistas acreditam que a Rússia enfrenta agora escolhas muito difíceis que podem ter consequências dramáticas para as suas aspirações.

“A Rússia foi apanhada com as calças na mão. Os grupos rebeldes aproveitaram um momento de fraqueza da Rússia e do Irão e a situação é de tal forma crítica que parte dos militares russos tiveram de abandonar posições e material. Para a Rússia, isto é uma tragédia”, explica o major-general Isidro de Morais Pereira.

Depois de anos de combate de baixa intensidade, poucos esperavam que os grupos rebeldes sírios tivessem força suficiente para montar um contra-ataque, muito menos uma ofensiva capaz de levar ao colapso parcial da linha da frente. Mas enganaram-se. No dia 29 de outubro, a ofensiva em larga escala viu posição atrás de posição defensiva do exército sírio cair nas mãos dos rebeldes. O espanto foi ainda maior quando Aleppo, a segunda maior cidade do país, caiu em menos de dois dias com pouca ou nenhuma oposição.

Anos antes, esta cidade foi palco de um dos mais violentos confrontos militares do século XXI. Durante quatro anos, entre 2012 e 2016, as forças sírias lutaram casa a casa, prédio a prédio, pelo controlo da cidade, mas com pouco sucesso. Em 2015, um ano depois da invasão e anexação da Crimeia, Vladimir Putin decidiu sair em defesa do seu aliado histórico e prestar apoio militar a Bashar al-Assad, a troco de um porto militar em Tartus. O resultado foi uma intensa campanha de bombardeamento da força aérea russa, que acabou por expulsar a resistência dos rebeldes para fora da cidade, um ano depois.

Para já, a resposta da Rússia foi limitada a dezenas de ataques aéreos contra posições e colunas de rebeldes sírios. Apesar de a aviação ser útil para atrasar e danificar a logística dos rebeldes, é necessária infantaria para travar os avanços no terreno. Só que hoje a posição de Putin é muito diferente daquela que a Rússia tinha em 2015. Quase três anos após ter começado a invasão de larga escala da Ucrânia, o Kremlin fez desta guerra uma questão “existencial” para o país e mobilizou a economia, a indústria e centenas de milhares de soldados para derrotar o lado ucraniano. No entanto, os recursos são finitos e correm o risco de ficar ainda mais dispersos caso a Rússia decida voltar a adotar uma posição mais assertiva para apoiar Bashar al-Assad.

“A Rússia está a bombardear posições dos rebeldes, mas o problema é que os aviões não ocupam o terreno. Grande parte do dispositivo terrestre russo que estava empregue na Síria, ajudando as forças leais a al-Assad, foi transferido para o esforço de guerra na Ucrânia. Para conseguir ajudar a Síria, Moscovo teria de o fazer em detrimento do esforço na Ucrânia”, refere Isidro de Morais Pereira.

No mês de junho, Vladimir Putin afirmou que 700 mil soldados russos estão envolvidos nas operações na Ucrânia, espalhados por uma frente que tem mais de mil quilómetros de comprimento. Ainda assim, estes números parecem não ser suficientes para o esforço necessário na frente de batalha e a Rússia recorreu ao auxílio de 11 mil soldados da Coreia do Norte para ocupar posições na região de Kursk, ocupada pela Ucrânia no final do verão. No passado, Moscovo impôs as suas ambições na Síria através da utilização pioneira do então recém-formado grupo de mercenários Wagner, que participou em operações de combate contra rebeldes, protegeu refinarias e outras instalações. Dessa forma, o Kremlin não só minimizou as perdas no conflito como também conseguiu lucrar da exploração de recursos naturais sírios.

Tudo viria a mudar no verão de 2023, quando o líder do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, desafiou o ministério russo da Defesa e marchou com os seus homens em direção a Moscovo, em protesto contra a decisão de incorporar os seus mercenários na estrutura do exército russo. O fim do grupo levou a que o Kremlin obrigasse os dois mil mercenários veteranos a abandonar a Síria. Ao mesmo tempo, as necessidades na frente na Ucrânia intensificavam-se e Moscovo transportou aviões e defesas antiaéreas que protegiam o regime sírio para as unidades na Ucrânia.

A Rússia tem duas bases militares importantes no país, a base aérea de Khmeimim e a base naval do porto de Tartus. Esta base naval é particularmente vital para as ambições geopolíticas do Kremlin. A partir deste porto, as forças armadas russas conseguem projetar a sua marinha de guerra a qualquer ponto do Mar Mediterrâneo e aumentar a sua influência noutras regiões do norte de África, como a Líbia ou na Argélia. Caso as forças leais a Assad sejam incapazes de travar o avanço dos rebeldes e a Rússia não intervenha diretamente, Vladimir Putin poderá ser obrigado a abandonar aquela que foi a sua primeira intervenção militar longe das fronteiras russas.

“Como a Rússia teve de retirar oficiais e militares da Síria por causa da guerra na Ucrânia, houve um vazio de poder que deu aos grupos rebeldes uma oportunidade. O exército sírio é um exército de papel que não é capaz de combater sem o apoio da Rússia ou do Irão”, afirma o professor Tiago André Lopes, especialista em Relações Internacionais.

O timing quase perfeito do ataque dos rebeldes também não ajuda Moscovo. Não é só a Rússia que tem as suas forças armadas ocupadas. O Hezbollah, que durante anos utilizou a Síria como base de treino e enviou várias unidades para defender o regime, está severamente enfraquecido depois de mais de um ano de guerra com Israel. Em simultâneo, o Irão, outro dos grandes apoiantes de Bashar al-Assad, está cada vez mais focado num possível conflito direto com Israel e aparenta não estar preparado para prestar apoio imediato a Damasco. Esta conjunção de fatores acaba com o sonho russo de uma presença na Síria a um “custo reduzido”. Para o Kremlin, não existem escolhas fáceis na Síria - e muito menos baratas.

Um conflito de larga escala e a maior onda de sanções económicas algumas vez imposta começam a causar alguns problemas na economia do Kremlin, levantando questões acerca da capacidade financeira do Kremlin em gastar mais recursos num conflito onde as perspetivas são cada vez menos animadoras. A Rússia prevê gastar mais de 6,3% do PIB ou 137,2 mil milhões de euros em Defesa em 2025, enquanto o seu banco central reforça os alertas de que está a ficar “sem instrumentos” para lidar com a crescente inflação, apesar de ter aumentado as taxas de juro para 21% no final de outubro, e com a falta de mão de obra. Além disso, o rublo está cada vez mais pressionado, o que levou a governadora do Banco Central a tomar medidas extremas.

Ao mesmo tempo, Donald Trump prepara-se para chegar à presidência no dia 20 de janeiro. Durante a campanha eleitoral, o candidato republicano ganhou popularidade após prometer negociar um acordo de paz entre a Rússia e a Ucrânia, acabando com a guerra “em 24 horas” após a tomada de posse. Esse motivo faz com que Putin esteja a intensificar as operações na frente de batalha, de forma a chegar à mesa de negociações com o máximo de território possível. E esse cenário tira quase completamente de cima da mesa a possibilidade de desviar recursos da frente de batalha na Ucrânia para a Síria. E essa possibilidade é corroborada por um relatório dos serviços secretos ucranianos que sugere que a Rússia está prestes a desviar forças paramilitares que estão destacados em África para apoiar o aliado no Médio Oriente.

“A maior parte dos grupos paramilitares russos estão a ser utilizados em África, em países como o Mali, Niger ou o Burkina Faso. É possível que sejam destacados. Mas também é provável que os chechenos do batalhão Akhmat sejam enviados. Seriam muçulmanos a combater lado a lado com muçulmanos e poderia desequilibrar as forças no campo de batalha”, refere Tiago André Lopes.

Na Rússia, muitos sugerem que esta recente ofensiva dos grupos rebeldes conta com o apoio militar ucraniano, particularmente devido à utilização maciça de drones FPV. Estes drones têm revolucionado o campo de batalha na Ucrânia e permitem a Kiev equilibrar a falta de munições. Agora, os grupos islâmicos que enfrentam o regime sírio estão a utilizar a mesma tática e com a mesma eficácia. Alexander Lavrentiev, enviado presidencial russo à Síria, sugeriu à TASS que Moscovo tinha provas de que vários especialistas dos serviços secretos ucranianos estão a operar em Idlib, capital dos rebeldes sírios. O diplomata russo garante que estes militares ensinaram os rebeldes a fazer e a pilotar drones.

O que é certo é que o Kremlin não contava com a abertura de uma nova frente, neste momento. Prova disso é que menos de três dias depois do ataque surpresa dos grupos rebeldes, o militar responsável por comandar as forças russas na Síria, o general Sergei Kisel, foi afastado pelos seus superiores. De acordo com os serviços secretos ucranianos, o seu substituto é o general Alexander Chaiko, que liderou os militares russos na Síria entre 2017 e 2019.

A velocidade a que a ofensiva inicial aconteceu surpreendeu as forças leais a Bashar al-Assad, mas as principais reservas do exército sírio e das milícias que apoiam o regime estão mais a sul. Neste momento, os objetivos dos grupos de rebeldes ainda não são claros, mas tudo indica que os rebeldes poderão tentar capturar mais cidades. Numa altura em que o Kremlin está bastante limitado, a Rússia enfrenta escolhas difíceis que podem fazer encolher ainda mais a influência russa no mundo.

“Para Putin, esta é a pior altura para acontecer uma coisa destas. A Rússia tem o dispositivo demasiado esticado. Tem ambições maiores do que as suas capacidades. O objetivo principal continua a ser a Ucrânia e este ataque pode colocar em causa a influência que Moscovo se esforçou para conquistar no Médio Oriente”, frisa o major-general Isidro de Morais Pereira.

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