"Quando o Kremlin nega alguma coisa ou quando fica em silêncio é porque 98% das coisas são verdade": dois ou três apontamentos sobre as suspeitas de envenenamento de Abramovich e de negociadores ucranianos

29 mar 2022, 09:00
Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky no Palácio do Eliseu, Paris, em dezembro de 2019 (Ian Langsdon/Pool - AP)

Foi avançado esta segunda-feira pelo The Wall Street Journal (WSJ) que o oligarca russo Roman Abramovich e outros dois negociadores ucranianos apresentaram sintomas que indiciam uma tentativa de envenenamento após uma reunião em Kiev, na Ucrânia, no início do mês. Na reação, o governo ucraniano falou em "especulação" e "teorias da conspiração". Já os Estados Unidos apontaram para um "fator ambiental", mas sem avançar com mais detalhes. Do Kremlin houve silêncio

O contexto em que tudo isto acontece não é irrelevante. No início do mês, mais concretamente a 3 de março, as delegações russas e ucranianas voltavam novamente à mesa de negociações, na Bielorrússia, após uma ronda falhada a 28 de fevereiro. Nessa altura, tinha passado precisamente uma semana desde o início da guerra. Putin ainda acreditava que era possível conquistar toda a Ucrânia num curto espaço de tempo. No entanto, já passou mais de um mês e isso não aconteceu. O que pode indiciar que o plano A do presidente russo falhou. Pelo menos no que às operações militares diz respeito.

Por isso, quem seria o principal beneficiado de uma sabotagem das negociações de paz? Moscovo. "Putin não está disposto a comprometer-se de modo algum com a Ucrânia. Está determinado a conquistar aquilo que queria, mas desta vez através das negociações de paz. Negociações de paz na doutrina russa são uma forma diferente de alcançar os mesmos objetivos que não foram alcançados militarmente", explica à CNN Portugal Victor Madeira, especialista em relações diplomáticas e contrainformação e subversão russas. 

"É sempre uma maneira de coagir o adversário. E é importantíssimo não pensarmos que os russos estam determinados a sentarem-se numa mesa e a discutir uma situação. Chama-se a isto que estamos a ver uma 'pausa estratégica', que serve para dar tempo às forças armadas de reabastecer, estudarem a situação e retomarem a ofensiva", acrescenta Victor Madeira. 

Recorde-se que a Reuters avançou entretanto que um oficial dos Estados Unidos confirmou, em anonimato, que o mal-estar sentido pelo oligarca russo e pelos negociadores ucranianos foi provocado por um "fator ambiental" e não por envenenamento. Esta fonte cita os serviços de informação norte-americanos. Mas o "fator ambiental" é um conceito vago e os Estados Unidos não avançaram com mais explicações. "Essa notícia pode ser uma tentativa de alguém reduzir o risco de confronto entre o Ocidente e a Rússia, até porque retomaram as negociações", justifica Victor Madeira. Esta segunda-feira as delegações russa e ucraniana iam arrancar com mais um ronda de negociações, desta vez na Turquia. Mas esse arranque foi adiado para esta terça-feira.

Para Victor Madeira existe ainda outro pormenor importante: o silêncio do Kremlin. A não reação por parte de Moscovo "é normal" e pode indicar duas coisas: ou os russos estão envolvidos neste alegado envenenamento e por isso estão em silêncio; ou estão surpreendidos com a quantidade de informação que foi divulgada e, por isso mesmo, "estão a tentar ver a reação internacional para reagirem depois". Em qualquer dos casos, "quando o Kremlin nega alguma coisa ou quando fica em silêncio é porque 98% das coisas são verdade".

Estaria Putin disposto a sacrificar Abramovich para matar Zelensky?

O presidente da Ucrânia também terá participado neste encontro em Kiev, não tendo sido, no entanto, afetado por este alegado envenenamento. Qual poderia ser o interesse da Rússia neste envenenamento? A resposta não é simples. Para o especialista em relações diplomáticas e contrainformação russa, existem três cenários possíveis:

- Atingir estas três pessoas para sabotar as negociações de paz; 
- Uma espécie de ensaio para numa segunda tentativa matar Zelensky;
- Um mero acidente.

Na primeira opção, e para quem estuda o Kremlin, esta forma de atuação não é totalmente incomum. "O que muitas pessoas não se apercebem é que os russos estão mais dispostos a sofrer perdas, desde que isso os ajude a alcançar seja qual for o objetivo estratégico. Na altura em que isto aconteceu, o contexto era eliminar os nazis da Ucrânia, remover o governo e o seu presidente". 

Além disso, Abramovich não é um alvo qualquer: "Se puderem matar Zelensky e, ao mesmo tempo, puderem matar outra pessoa que sabe muitos segredos sobre o Kremlin, é quase como matar dois de uma só cajadada". 

O segundo cenário coloca a hipótese de estas três pessoas terem servido como uma espécie de cobaias. Ou seja, imaginando que se trataria de um agente biológico ou químico, Moscovo poderia estar só a testar os efeitos desse produto para depois mais tarde atingir Zelensky. Pode até ter servido como uma mensagem para o presidente ucraniano. 

A terceira hipótese, referida pelos Estados Unidos, significa que isto não passava de um mero acidente. No entanto, conhecendo a forma de atuação dos russos, "é muito duvidoso", defende Victor Madeira. Recorde-se que nenhuma destas informações divulgadas pelo WSJ foi oficialmente confirmada ou desmentida. Porém, não seria inédito sob o comando de Putin. Já houve pelo menos seis casos de envenenamento.

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