MIL DIAS DE GUERRA || A partir de hoje e ao longo desta semana a CNN Portugal irá publicar um conjunto de trabalhos que assinalam os 1.000 dias desde que a Rússia invadiu a Ucrânia. A invasão começou a 24 de fevereiro de 2022 e esta terça-feira passam mil dias desde essa data
Quando as primeiras sanções surgiram, após a invasão russa da Ucrânia, os especialistas eram unânimes: as restrições iam levar ao colapso inevitável da economia russa. Mil dias depois, o cenário é bem diferente. A economia russa mostrou-se mais resiliente do que o esperado e está a crescer mais do que todas as economias mais avançadas do mundo. Mas estes números escondem as brechas que estão a surgir na fortaleza económica do Kremlin e os especialistas alertam que existe uma ameaça e uma armadilha no caminho da economia de guerra russa.
“Em 2014 [após a invasão da Crimeia], as autoridades russas adotaram a estratégia “fortaleza Rússia” para ‘vacinar’ a sua economia contra potenciais sanções futuras. Como resultado, a Rússia começou 2022 menos vulnerável a sanções financeiras. Ainda assim, o impacto económico na economia russa foi grave. A economia da Rússia atingiu limites de capacidade", explica à CNN Portugal a economista Elina Ribakova, do Peterson Institute for International Economics.
Durante anos, Vladimir Putin preparou o seu país para o impacto de um confronto económico com o ocidente. A estratégia, que passava por tornar o país mais autossuficiente, ficou conhecida como “Fortaleza Rússia”. E este plano estava prestes a ser posto à prova no dia 24 de fevereiro de 2022, quando os parceiros da Ucrânia cortaram o gigante russo do sistema financeiro mundial e aplicaram-lhe mais de 20 mil sanções económicas, fazendo da Rússia o país mais sancionado do mundo. Para surpresa do Kremlin, o país viu o seu “cofre de guerra”, mais de 300 mil milhões em reservas de moeda estrangeira, ser congelado pelos países ocidentais. Mas apesar de um choque inicial, os líderes políticos russos foram rápidos e eficazes na sua resposta, conseguindo estabilizar a economia do país.
Só que na frente de combate os problemas multiplicavam-se e cedo a elite política percebeu que as vastas reservas de guerra soviéticas não eram suficientes para a dimensão dos combates na frente. Essa realidade obrigou a uma mudança drástica no pensamento económico no Kremlin. Era preciso algo diferente e depressa. A solução foi um cheque quase em branco para a área da Defesa que levou a um investimento massivo na produção de armamento estatal, aumentos de salários dos soldados e construção de bases militares. Em 2022, no ano da invasão, o orçamento russo para a Defesa era de 52 mil milhões de euros. Três anos depois, em 2025, o executivo russo prevê gastar mais de 6,3% do PIB ou 137,2 mil milhões de euros em defesa.
Este dinheiro é injetado diretamente na indústria da defesa e nas empresas que suportam este setor, incluindo indiretamente, os fornecedores de matérias-primas ou de serviços. E os efeitos deste “tsunami” de investimento tem-se feito sentir. Não só os salários dos militares subiram consideravelmente nos últimos três anos, de forma a continuar a atrair voluntários para o esforço de guerra, muitas fábricas de armamento começaram a produzir ininterruptamente, criando milhares de postos de trabalho bem pagos. Ao mesmo tempo, empresas de outros setores aumentaram os seus salários para continuar a atrair mão de obra qualificada. Como resultado, os salários no país aumentaram significativamente, particularmente nas regiões mais pobres da Rússia.
Este cenário fez com que os cidadãos russos tivessem mais rendimento disponível para gastar e, devido às medidas impostas pelo Kremlin para evitar a fuga de capital, poucos sítios para o gastar sem ser no próprio país. Esta combinação de fatores levou a uma explosão do mercado imobiliário, à indústria da joalharia, dos casinos e do turismo interno. A intervenção estatal estava a funcionar e causou o choque de todos quando no início do ano o Fundo Monetário Internacional anunciou que previa um crescimento económico de 3,2% do PIB russo, um valor bem acima de algumas das economias mais avançadas do mundo.
“A melhor palavra para descrever a economia russa atual é ‘resiliente’. Apesar de uma onda de sanções dos parceiros ucranianos, a Rússia regista um crescimento impressionante, utilizando as exportações de produtos petrolíferos para reforçar a aplicação interna de uma política de ‘keynesianismo militar’. Esta estratégia é, de certa forma, sustentável por enquanto, mas há sinais de sobreaquecimento: com uma inflação acelerada e escassez de mão de obra”, explica à CNN Portugal a investigadora Maria Snegovaya, do think tank Center for Strategic and International Studies (CSIS).
Brechas na fortaleza económica do Kremlin
Mas as notícias acerca de a economia russa ter superado todas as expectativas – incluindo as do Kremlin, que previa um crescimento bem mais modesto para 2024 – escondem os sérios problemas que o país tem pela frente. Em setembro, durante uma conferência na Ucrânia, Kyryllo Budanov, líder dos serviços secretos ucranianos, profetizou que a Rússia fazer o derradeiro esforço para terminar a guerra durante 2025 porque o Kremlin está “a prever um impacto negativo muito percetível por volta do verão” e vai ser confrontado com “um dilema”.
Budanov referia-se à ameaça de falta de mão-de-obra na Rússia. O país já atravessava uma profunda crise demográfica, mas a guerra veio acelerar ainda mais o processo. De acordo com a Rosstat, a agência de estatísticas estatal, o número de nascimentos atingiu o seu valor mais baixo desde 1999 e o país espera ver a sua população encolher em 608 mil pessoas este ano, exacerbando um problema que o próprio Kremlin descreve como “catastrófico para o futuro da nação”.
Em simultâneo, a indústria russa tem uma necessidade cada vez maior de mão de obra. Em 2023, o Banco Central da Rússia (BCR) informou que 60% das empresas enfrentavam uma escassez de trabalhadores (a maioria dos quais especialistas qualificados) e mais de 75% das empresas tiveram de aumentar os salários para manter os trabalhadores. Mais tarde, o próprio vice-governador do BCR, Alexei Zabotkin, admitiu que a “a capacidade de produção disponível” está esgotada.
De acordo com um relatório da BBC, a indústria da Defesa russa não está imune a estes problemas e está a ter sérias dificuldades em contratar dezenas de milhares de trabalhadores para diferentes posições. Entre 15 de agosto e 15 de setembro, apareceram mais de 90 mil vagas nos portais de trabalho russos, que continuam por preencher, apesar de oferecer entre três a quatro vezes mais da média do salário regional. O documento sublinha que a Rússia apresenta uma forte escassez de engenheiros, torneiros e operadores de máquinas.
Mas a mão-de-obra russa é necessária noutros lados, particularmente na linha da frente na Ucrânia. No primeiro ano da guerra, a falta de homens obrigou Vladimir Putin a decretar a mobilização de 300 mil reservistas para defender a linha da frente. Passados dois anos, as necessidades de soldados não diminuíram, muito pelo contrário. O exército precisa de 30 mil novos soldados por mês. Para os convencer a entrar no exército voluntariamente, o governo oferece uma combinação de elevados salários, mais benefícios e prémios de assinatura de contrato.
No entanto, o número de candidatos está a cair e, como consequência, o governo está a oferecer salários cada vez maiores, aumentando ainda mais os gastos em Defesa. A situação está a evoluir de tal forma que o exército já paga melhores salários do que o setor da energia, outrora uma das indústrias mais competitivas do país. Na região de Moscovo, um soldado pode receber 5,2 milhões de rublos (60 mil euros) no seu primeiro ano de contrato. Um valor aliciante, num país com um salário médio de cerca de 689 euros por mês.
“Com as forças armadas, as empresas de defesa e o sector privado a competirem para atrair soldados e trabalhadores no contexto desta escassa mão de obra, os rendimentos aumentam e alimentam a inflação”, insiste Maria Snegovaya.
E as contramedidas utilizadas pelas autoridades para travar a subida da inflação aparentam não estar a surtir efeito. No dia 13 de novembro, as autoridades admitiram que a inflação deve acabar acima dos 8,5% previstos no início do ano. Os principais aumentos de preços estão a fazer-se sentir no cabaz de bens essenciais russos, com produtos como a manteiga a subir cerca de 34% relativamente ao ano anterior. O aumento acentuado dos preços provocou uma onda de roubos de manteiga em alguns supermercados, de acordo com os meios de comunicação russos e alguns estabelecimentos começaram a colocar pacotes individuais de manteiga dentro de recipientes plásticos protetores para impedir os roubos.
Butter robberies continue in Russia.
— Anton Gerashchenko (@Gerashchenko_en) November 5, 2024
A store called “Milky Place” in Yekaterinburg was targeted – the assailants took all the butter, a few chocolate milkshakes and some cash from the register. https://t.co/rVoy71gqoN pic.twitter.com/a4aZrngW8G
Este é apenas um dos casos que confirma o diagnóstico feito pela governadora do BCR, Elvira Nabiullina, quando no final de outubro admitiu ao parlamento russo que a “procura ultrapassou significativamente a capacidade de produção da economia”. Em resposta, o BCR aumentou no final de outubro as taxas de juro no país para 21%, um valor recorde. A medida está a causar desagrado de alguns dos mais importantes empresários russos. Sergei Chemezov, diretor executivo da Rostec, um conglomerado estatal da área da Defesa, criticou uma medida que diz estar “a comer os lucros” das empresas, podendo levar a uma vaga de falências no país.
“O risco de sobreaquecimento [da economia russa] é real. Apesar da recente decisão do Banco Central da Rússia de aumentar as taxas de juro para uns impressionantes 21%, a inflação no país continua a ser um problema persistente. E é provável que o problema persista. A economia russa enfrenta uma escassez crónica de mão de obra”, garante Snegovaya.
Dependência de "inimigos naturais"
Todas as guerras de grande dimensão são diferentes, mas todas têm, pelo menos, uma coisa em comum: são extremamente caras. E a invasão russa da Ucrânia não é uma exceção. Para fazer frente ao aumento significativo dos gastos, Vladimir Putin baixou ou congelou o investimento público em áreas como a Saúde ou a Educação e anunciou um novo aumento de impostos para financiar a guerra. O governo espera conseguir receitas equivalentes a 1,7% do PIB em 2025, mas muitos economistas acreditam que não será suficiente.
O que tem sido suficiente para pagar pelas necessidades imediatas tem sido a exportação de hidrocarbonetos. A Rússia tem conseguido contornar as sanções impostas pelo ocidente e vender o seu crude e outros produtos petrolíferos através de uma “frota fantasma” de navios. Este esquema, acompanhado do preço de 72 dólares por barril, ajudaram a Rússia a conseguir manter o elevado esforço de guerra. Atualmente, as receitas desta indústria representam 27% das receitas do governo russo, segundo o ministro das Finanças, Anton Siluanov.
E há sinais de que o preço do petróleo possa vir a cair. A Arábia Saudita anunciou que está a planear aumentar a produção de petróleo para evitar perder quota de mercado, arriscando fazer com que os preços caiam abaixo dos 60 dólares. De acordo com Alexandra Prokopenko, uma economista do Carnegie Endowment for Internacional Peace, uma queda de 20 dólares do preço do crude pode representar uma perda de 20 mil milhões de dólares para o Kremlin, o que equivale a 1% do PIB russo.
As declarações do presidente-eleito dos Estados Unidos da América, Donald Trump, em relação à indústria petrolífera americana também antecipam um possível choque no mercado. O republicano prometeu durante a campanha que pretende ajudar os produtores americanos a “baixar os custos de energia em metade” nos primeiros 12 meses do seu mandato.
Como se isso não bastasse, estes estão longe de ser as únicas “armadilhas” que a economia russa enfrenta no curto e médio prazo. A Rússia tem encontrado na China uma das mais fiáveis alternativas ao ocidente não só para poder continuar a exportar as suas matérias-primas, mas também como alternativa para a importação de algumas tecnologias de ponta. O comércio entre os dois países disparou para 240 mil milhões de dólares, em 2023. Maria Snegovaya considera que a Rússia está obrigada a expandir esta relação, caso contrário enfrentará “sérias disrupções que causarão dores significativas na economia russa”.
E parece que a nova administração norte-americana planeia criar um fosso entre Pequim e Moscovo. Dias antes da sua eleição, Donald Trump afirmou numa conversa com Tucker Carlson que uma união entre os dois países é algo que “nunca quereria” e que fará tudo o que estiver ao seu alcance para “desuni-los”, sublinhando que a Rússia e a China são “inimigos naturais” um do outro. Embora os dois possam ter pontos de possível atrito, a necessidade de aproximação para combater a hegemonia norte-americana pode ser forte o suficiente para travar os planos de Trump.
Só que a dependência russa de importações tanto para o esforço militar como para a economia civil colocam o país em risco de ficar para trás tecnologicamente a longo prazo, mas também em risco de sofrer de empobrecer caso o rublo desvalorize, tornando a importação de bens progressivamente mais cara. “Devido às sanções e ao isolamento, pelo menos parcial, do Ocidente, a Rússia continuará a registar um atraso tecnológico em relação ao Ocidente, mas os efeitos reais desta tendência serão mais evidentes a longo prazo”, explica Maria Snegovaya.
Ao mesmo tempo, o aumento continuo dos gastos em defesa levam a economia russa a consumir as suas reservas de guerra a um ritmo expressivo, de acordo com um novo relatório da Stockholm Institute of Transition Economics. O Fundo de Riqueza Nacional (NWF) está a ser utilizado para cobrir os défices orçamentais. Moscovo está a vender os seus ativos líquidos, vendendo metade das suas reservas de ouro do fundo, desde 2022. Atualmente, o NWF tem apenas 54 mil milhões de dólares de reservas líquidas e o Kremlin espera gastar mais 13 mil milhões de dólares desse dinheiro, em 2024. A este ritmo, as reservas do fundo que Putin criou em 2014 para tornar a Rússia “uma fortaleza” impermeável às sanções ocidentais acabarão dentro de um ano e meio se o preço do petróleo se mantiver estável. Se este valor cair, o governo poderá ter necessidade de consumir estes fundos a um ritmo ainda maior.
“O aumento não é sustentável, pois a parte dos ativos líquidos no fundo de poupança fiscal da Rússia provavelmente durará apenas um ano, no máximo dois, a este ritmo de despesas fiscais. Se o preço do petróleo cair, não será suficiente para mais de um ano. A Rússia não tem recursos para sustentar a guerra indefinidamente”, garante Elina Ribakova.
Mesmo com a intensificação dos desequilíbrios da economia russa e o agravar da situação do país, não é certo que esses problemas façam com que o Kremlin decida alterar o rumo da militarização do país. O processo de reestruturação das forças armadas russas que levou toda a indústria militar a operar no limite sem interrupção é algo que a maior parte dos analistas acredita que se manterá muitos anos após o final da guerra na Ucrânia. Em parte, porque o exército russo já perdeu, pelo menos, 19 mil equipamentos militares pesados durante a invasão na Ucrânia, de acordo com os analistas do grupo Oryx, e a Rússia precisa de repor essas perdas.
Mesmo com o final dos fundos do NWF, o Kremlin pode continuar a financiar a sua militarização a “espremer” os lucros das empresas exportadoras de matérias-primas – particularmente as que exportam petróleo e gás-natural – e aumentar os impostos para outros setores e para os cidadãos. Este cenário de financiamento da indústria militar “custe o que custar” arrisca criar um paradoxo na economia russa. Se a indústria militar não crescer, a economia russa também não cresce. Mas se crescer, arrisca esmagar os restantes setores, criando uma “bolha de guerra”.
"O país vai enfrentar uma militarização prolongada. A economia russa parece-se agora mais com uma plataforma petrolífera que produz tanques. Sem grande exagero, a Rússia é uma economia fortemente dependente de recursos, sem fontes de crescimento mais sustentáveis. A Rússia colocou-se num canto onde a única saída é continuar a militarização. Esta 'bolha de guerra' será extremamente difícil de rebentar, tanto do ponto de vista económico quanto político”, frisa Elina Ribakova.