Nascido a 7 de outubro de 1952, o presidente da Rússia foi agente do KGB e teve uma fulgurante ascensão na cena política de Moscovo. Falámos com quem o estudou para perceber quem é, o que o move e como sairá desta guerra
Diz-se que, quando Vladimir Putin vai à casa de banho num país estrangeiro, nada fica para trás. Há uma equipa que o acompanha e garante que nenhum vestígio do presidente é deixado ao acaso, em nome da segurança nacional. "Tudo será tratado com cuidado, para não se saber a verdade sobre eventuais doenças de Putin", afirma Miguel Pina e Cunha, um dos autores, juntamente com Arménio Rego, do livro "Putin", publicado em junho passado.
Muitos dos cuidados extremos nas deslocações terão a ver, provavelmente, com o passado do presidente russo como agente secreto e, segundo Pina e Cunha, "é muito difícil chegar a ele". Com a pandemia, o círculo já restrito de Putin restringiu-se ainda mais e estar face a face com o presidente russo é "um exercício difícil, mesmo para as pessoas mais próximas", refere o professor universitário.
A ideia é de que ele é um homem que vive numa realidade ultraprotegida, como um czar numa torre de marfim, com o estatudo de um semi-deus que tem de ser protegido de todo o mal".
O problema, diz Miguel Pina e Cunha, não são "os russos comuns: são os agentes da NATO ou de Israel, que é a mesma narrativa do Irão, por exemplo". "Quando tenho uma visão do mundo que é paranoica, como a dele, eu vejo inimigos em todo lado. Ainda que, admitamos, mesmo os paranoicos têm inimigos", comenta, entre risos.
Esta sexta-feira, 7 de outubro, Vladimir Putin faz 70 anos e muito se tem escrito sobre o líder russo que nasceu em São Petersburgo, então Leninegrado, estudou direito e foi agente secreto do KGB, antes de começar a subir a escada do poder local e chegar a primeiro-ministro pela mão de Boris Yeltsin em 1999. Foi com a saída inesperada de Yeltsin que Putin se perfilou para o suceder e, desde 2000, tem acumulado mandatos presidenciais, intercalando-os com a função de primeiro-ministro, entre 2008 e 2012, período durante o qual a presidência foi de Dmitry Medvedev.
Em 2007, a revista Time nomeava Vladimir Putin a "Pessoa do Ano", uma distinção que a publicação norte-americana faz desde 1927. Assinalando sempre que não se tratava de um "prémio de popularidade" ou sinal de concordância com o distinguido, antes um "reconhecimento dos indivíduos e forças que moldam o mundo", a revista explicava o porquê de destacar o líder russo: "Com custos significativos para os princípios e ideias que as nações livres valorizam, Putin desempenhou um feito extraordinário ao impor estabilidade numa nação que raramente a conheceu e trouxe a Rússia de volta à mesa do poder". A Time dizia ainda que Putin conseguira colocar o seu país no mapa, mas que queria ser ele a "redesenhar" esse mapa.
"Nenhum líder nasce ditador, mas quando alguém quer ser ditador começa a esvaziar as instituições e a trocar as regras institucionalizadas por apaniguados e amigos. É um caminho muito perigoso nas democracias e vê-se, por exemplo, na nomeação dos juízes ou na forma como a imprensa é tratada", diz Pina e Cunha. "Em retrospectiva, podemos reinterpretar os sinais. Mas muitos já estavam ali. Putin começou com ações agressivas em vários momentos anteriores, invadiu países. Era evidente que os sinais não tornavam obrigatório que chegássemos a este momento, mas no fundo talvez não tivéssemos visto porque não queríamos acreditar ter uma guerra aberta e não enquadrada legalmente na Europa no século XXI", admite o autor do livro sobre Vladimir Putin.
"A ideia com que ficamos dele, e que é usada num contexto da psicologia, é de que se trata de um narcisista", explica Pina e Cunha, "Ele tem uma visão, que é a dele, que quer seguir para garantir o seu lugar na História. E o que caracteriza estas pessoas é o facto de prestarem mais atenção a si próprias do que às pessoas que servem. Putin, desde há anos, está a tentar ser na História o homem que devolveu à Rússia um certo orgulho imperial", reflete.
E se, no início, foi uma figura que impôs "alguma ordem" na Federação Russa do pós-URSS, recuperando "relevância internacional" para Moscovo, Putin "acabou por descambar com o esvaziamento das instituições", explica o professor universitário. "No fundo, é como dizia Lorde Acton: o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente".
A vida privada num patamar secreto
Sónia Sénica, professora universitária e investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova, assinala que é muito difícil "dissociar o perfil" de Putin da Rússia que ele tem moldado, com base no seu ideário da "grande Rússia, do grande poder, do grande país que deve ser reconhecido pelos seus pares". Recorde-se que Putin considerou o fim da URSS a maior catástrofe geopolítica do século XX e , por isso, "o seu percurso político tem sido no sentido de uma grande exaltação do que é o ethos russo", explica a investigadora.
Putin era quase um desconhecido antes de chegar ao topo da governação russa e a sua ascensão fulgurante, depois de mais de uma década de dedicação ao KGB, pode justificar-se, admite Sónia Sénica, por vir responder às "ânsias dos cidadãos russos, sobretudo desde a turbulência da década pós-soviética, mas também no cumprimento dessa promessa de regresso desse mundo da Grande Rússia", reflete a investigadora.
"Ao longo destes 22 anos, excetuando o interregno entre 2008 e 2012, com a subida à presidência de Medvedev, a liderança de Putin tem sido conotada com uma certa imprevisibilidade. Mas, do meu ponto de vista, há características de uma estabilidade, um projeto que parece preparar-se há muito, com diferentes ciclos de política externa mas que tende para este momento em que nos encontramos na atualidade", diz Sónia Sénica. "Há uma tentativa de glorificar o papel da Rússia na cena internacional, sobretudo depois da época tenebrosa da governação Yeltsin".
Para a investigadora, há entre o próprio Putin e a política interna e externa russa denominadores comuns. Sénica destaca, nomeadamente, a "existência permanente do outro, de uma ameaça externa e a necessidade de encetar medidas para defender o país", mas também da Rússia "quase como o último reduto dos valores da Europa". A investigadora assinala também a tentativa de Putin de estender "linhas de ação externa na questão dos russofalantes, a defesa do mundo russo que vai muito além das fronteiras agora existentes no pós-implosão da União Soviética".
Putin conseguiu ascender ao poder pela mão de mentores, até chegar à chefia dos serviços secretos e ser, depois, designado sucessor de Yeltsin, indo a eleições em 2000. "O sonho de infância de se tornar oficial dos serviços de segurança russos, ter testemunhado a desintegração do ideal soviético, o impactante cerco de Leninenegrado, com a morte do irmão", assinala Sónia Sénica, são dimensões que se refletem nas linhas de ação de Putin, até aos dias de hoje.
"Um traço que lhe é reconhecido, não só por mim mas como por alguns analistas, é o de deixar as questões pessoais num patamar completamente secreto, porque há a assunção de que as questões da vida privada podem denotar fragilidade", aponta a investigadora.
O que contrasta com a decisão que tomou, em 2013, de anunciar na televisão o divórcio da então mulher Lyudmila, terminando uma união de 30 anos, da qual nasceram duas filhas - as únicas que se lhe conhecem oficialmente. "Foi dado a conhecer publicamente para não haver mais perguntas ou vontade de aflorar questões de índole mais pessoal, com as quais ele tem sido muito reservado. Tem sido o mesmo com outros relacionamentos depois do divórcio ou o número de filhos", diz Sónia Sénica, que identifica ainda em Putin uma "necessidade de exacerbar a sua masculinidade" para garantir uma liderança viril.
Ainda recentemente, os líderes do G7, reunidos em cimeira na Alemanha, recordaram as fotografias de Putin a cavalo em tronco nu, quando Boris Johnson perguntou na frente dos jornalistas se despiam os casacos e Trudeau sugeriu esperarem pela fotografia oficial. "Temos de mostrar que somos mais duros do que Putin", disse o então primeiro-ministro britânico, que não ficou sem resposta do canadiano: "Vamos exibir-nos a montar a cavalo de peito à mostra", ironizou Trudeau, referindo-se a imagens divulgadas em 2009 e 2010, quando o líder russo, de férias na Sibéria, permitiu ser fotografado nos seus momentos de lazer. "Tudo isso remete para uma construção, para a mensagem que tenta passar de uma liderança muito forte. Ainda agora, tenta preservar exatamente esse cuidado com a aparência", diz a investigadora, que realça ainda a fé de Putin, responsável por reavivar a ligação do regime e do estado russos com a igreja ortodoxa russa, que tem sido apoiante da invasão da Ucrânia.
Sucessão a longo prazo
Richard Stengel, editor da Time, procurou justificar as razões da revista norte-americana para a controversa escolha de Putin para "Pessoa do Ano" de 2007: "Ele é um novo czar na Rússia e é perigoso no sentido em que não se importa com as liberdades civis; não se importa com a liberdade de expressão; importa-se com a estabilidade. Mas estabilidade é do que a Rússia precisava e é por isso que os russos o adoram".
Mas, depois de mais de 20 anos a dominar a cena política da Rússia, e a entrar na sétima década de vida, será que Putin ainda tem muito mais para dar? Ele parece pensar que sim: segundo as alterações constitucionais que fez aprovar em 2020, pode ainda candidatar-se a mais dois mandatos presidenciais, ficando no poder, potencialmente, até 2036, altura em que completará 84 anos. E, segundo Sónia Sénica, este cenário não deixa de ser provável: "Não me parece que se vislumbre, a curto ou médio prazo", a saída de Putin, diz a investigadora. Mesmo apesar dos obstáculos que encontrou na Ucrânia.
"Putin é considerado um estabilizador do próprio regime russo, não tem dado nota de considerar sair ou avançar com um sucessor".
E se Medvedev era um potencial candidato à substituição de Putin, Sónia Sénica diz que o antigo presidente, por pressão e divulgação do opositor russo Navalny, ficou "muito exposto com alegados casos de corrupção, branqueamento de capitais e enriquecimento ilícitio", pelo que terá menores possibilidades de ascensão como sucessor natural de Putin.
"Há alguns, no círculo próximo de Putin, que podem ter essa ambição pessoal. O que me parece é que Putin, se algum dia equacionar não continuar no poder, será no momento em que considerar que o seu legado irá ser preservado. E, eventualmente, um sucessor do presidente russo que não seja Putin dificilmente trará uma mudança substancial", admite a investigadora.
"Acho que o caminho dele é até onde o deixarem ir. A Hitler também foram dando espaço para continuar", assinala, por seu lado, Miguel Pina e Cunha, um dos autores de "Putin". "Assumindo que a guerra na Ucrânia, como inicialmente estava desenhada, está perdida, Putin vai sair da guerra com a possibilidade de proclamar uma vitória qualquer. A anexação dos territórios ocupados pode servir para contar uma história de vitória", admite o professor universitário.
"Neste caso, é difícil de imaginar o que vai na cabeça dele. Neste momento, a preocupação deve ser o desenvolver de uma narrativa que lhe permtia dizer que alcançou os seus objetivos militares, nomeadamente devolver à Rússia regiões que a Rússia reclama como suas historicamente. Será um plano B, o plano A era ganhar a guerra em poucos dias e substituir o regime, agora Putin terá de arranjar maneira de sair de uma forma relativamente airosa desta situação. E esta conversa pode ser aceite na Rússia, mas não acredito que a comunidade internacional vá aceitar a Rússia nas condições em que o fazia até agora", conclui Pina e Cunha.