O que se sabe sobre os laboratórios de investigação biológica na Ucrânia financiados pelos norte-americanos

14 mar 2022, 22:00
Laboratório (AP Photo/Alexander Zemlianichenko)

Moscovo acusa Ucrânia de ter laboratórios onde se desenvolvem armas químicas. Os Estados Unidos garantem que a alegação é falsa, mas esta tem ganho tração entre os meios de comunicação russos. Os norte-americanos temem que a Rússia utilize a narrativa para justificar ataques químicos contra os ucranianos

Depois de recusar classificar a invasão militar da Ucrânia como uma guerra, o Kremlin está a avançar uma nova teoria para justificar o escalar da violência em solo ucraniano: acusam os Estados Unidos de estarem a trabalhar em laboratórios ucranianos para desenvolver armas químicas e usá-las contra a Rússia. Segundo os EUA, a alegação de que estão a ser desenvolvidas armas químicas não é verdadeira. No entanto, a teoria tem ganho tração entre a propaganda russa e chinesa.

Os laboratórios existentes são de investigação biológica e são financiados, em parte, pelos Estados Unidos. Podem até ter agentes patogénicos perigosos, mas isso não significa que estejamos a falar de armas químicas. Afinal, o que se sabe acerca destes laboratórios?

O que diz a Rússia

A informação começou por ser vastamente disseminada em canais televisivos estatais russos e em algumas das plataformas mais utilizadas pelo movimento QAnon, como o 8chan e em vários grupos do Telegram, mas foi com um tweet do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo que a informação ganhou toda uma nova dimensão. Na publicação, o Ministério chefiado por Serguei Lavrov acusou os Estados Unidos de trabalhar com o governo ucraniano para levar a cabo uma "limpeza de emergência" de um suposto "programa biológico militar", afirmando que os militares russos no país descobriram documentos que provam a existência desses programas. 

Pouco depois, a agência de comunicação russa TASS citou fontes oficiais de Moscovo, que garantem ter descoberto documentos que confirmavam que “estudos de alto risco” estavam a ser conduzidos por cientistas ucranianos em colaboração com o Pentágono. A mesma fonte sublinhou também a existência de uma "profunda disparidade salarial" entre os cientistas ucranianos e os seus homólogos americanos, algo que a imprensa russa aponta como prova do “desrespeito americano” para com os profissionais da Ucrânia. "O objetivo desta investigação biológica financiada pelo Pentágono na Ucrânia é criar um mecanismo para a disseminação furtiva de agentes patogénicos mortais", disse o porta-voz do Ministério da Defesa russo, Igor Konashenkov, num dos seus briefings sobre o conflito na Ucrânia.

Na terça-feira, foi a vez da China abraçar esta teoria. A mensagem veio através de um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China, o mais poderoso aliado de Moscovo, que sugeriu que os EUA estariam a desenvolver armas químicas no território ucraniano. Zhao Lijian insistiu para que os norte-americanos forneçam “detalhes relevantes” sobre aquelas instalações “o mais depressa possível”. "De acordo com os dados divulgados pelos EUA, têm 26 laboratórios biológicos e outras instalações relacionadas na Ucrânia, que de facto atraíram grande atenção", disse o porta-voz, numa conferência de imprensa, em Pequim. O Ministério dos Negócios Estrangeiros acusou ainda os Estados Unidos de ter 336 laboratórios em mais de 30 países sobre o seu controlo, incluindo 26 na Ucrânia.

O que dizem os norte-americanos

Durante uma audição no Senado, a subsecretária de Estado para Assuntos Políticos dos Estados Unidos, Victoria Nuland, confirmou a existência de “instalações de investigação biológica" na Ucrânia, como existem em vários países, incluindo Portugal. A governante esclareceu que a cooperação científica entre os EUA e a Ucrânia faz parte de um programa de cooperação de redução de ameaças biológicas, formado após a queda da União Soviética, para garantir a segurança destas instalações e dos agentes patogénicos neles guardados. “A Ucrânia tem instalações de investigação biológica, com que estamos bastante preocupados, porque acreditamos que as tropas russas estão à procura de ganhar o seu controlo. Estamos a trabalhar com os ucranianos para ver como é que podemos prevenir que estes materiais biológicos caiam nas mãos das forças russas.”, afirmou Nuland, em resposta a uma pergunta do senador republicano Marco Rubio, sobre se a Ucrânia possui armas químicas.

Estes comentários viriam a ser utilizados pelos meios de comunicação russos e de vários setores da sociedade americana para provar a existência de um programa de desenvolvimento de armas químicas. A insistência do lado russo levou a embaixadora americana na ONU, Linda Thomas-Greenfield, a afirmar: "A Ucrânia não tem um programa de desenvolvimento de armas biológicas. A Rússia é que mantém um longo historial de violações à lei internacional no que toca a armas biológicas".

A embaixadora referia-se à utilização de substâncias químicas para eliminar opositores, como os casos de Alexei Navalny, envenenado com Novichok, e de Sergei Skripal, antigo espião russo, que foi envenenado em 2018. 

O que se sabe sobre os laboratórios

Uma pesquisa ao site da embaixada norte-americana em Kiev revela que um dos gabinetes disponíveis é o Escritório de Redução de Ameaças de Defesa (DTRO, em inlgês), cujo propósito é a implementação da Agência de Redução de Ameaças de Defesa (DTRA, em inglês). Um dos quatro programas desenvolvido por este departamento é o Programa de Redução de Ameaças Biológicas (BTRP, em inglês) que tem como objetivo "colaborar com países parceiros para combater a ameaça de surtos (deliberados, acidentais ou naturais) das doenças infecciosas mais perigosas do mundo".

O programa começou depois da criação da Lei Soviética de Redução de Ameaças Nucleares de 1991, que foi projetada para "reduzir o risco de bioterrorismo e impedir a proliferação de tecnologia de armas biológicas, experiência e patógenos extremamente perigosos" nos antigos estados soviéticos. Desde o colapso do regime soviético que os EUA subsidiam vários destes programas para garantir que nenhum agente patogénico escapa, como foi o caso de um laboratório no Uzebequistão, onde foram descobertas e eliminadas 12 toneladas de Anthrax.

Na página do programa, é possível aceder a uma lista de 16 PDF’s que detalham a informação acerca de 12 laboratórios na Ucrânia que têm, ou estão em processo de ter, “permissão para trabalhar com agente patogénicos”. Os laboratórios, construídos entre 2009 e 2012, estão dispersos por oito cidades: Zakarpartska, Vinnytsia, Ternopil, Lviv, Lugansk, Kherson, Kharkiv e Dnipro. Segundo os documentos, estas instalações custaram aos contribuintes norte-americanos 21 milhões de dólares (aproximadamente 18 milhões de euros).

Existem agentes patogénicos perigosos nos laboratórios?

Ao que tudo indica, sim, mas isso não significa que estejamos a falar de armas químicas. Quase todos os laboratórios que trabalham na investigação de doenças incluem patogénicos perigosos, como a SARS e a MERS, ou até o vírus do Ébola. Contactado pela CNN Portugal, Miguel Prudêncio, investigador do Instituto de Medicina Molecular, explicou que a existência destes agentes depende do tipo de pesquisa que se faz num determinado laboratório. "Um laboratório de investigação biomédica terá uma maior probabilidade de ter esse tipo de recursos do que um laboratório de investigação da área da Física. Depende sempre do tipo de investigação que se está a fazer”, afirmou.

Isso não significa que todos os laboratórios vão ter agentes patogénicos perigosos, nem que os laboratórios que os investigam são perigosos para a saúde pública. "Nem todos os laboratórios vão ter agentes patogénicos perigosos. Depende da área de investigação dos laboratórios. Aqui no Instituto de Medicina Molecular, por exemplo, nós temos alguns, que são necessários para a nossa investigação", sublinhou.

Porém, o conflito pode levar a que aconteça um acidente e a Organização Mundial de Saúde (OMS) já apelou à Ucrânia para destruir os seus agentes patogénicos mais perigosos, para evitar “os riscos desastrosos” de um derramamento que seria responsável por espalhar doenças entre a população. Especialistas em biossegurança da OMS afirmaram que o movimento de tropas da Rússia na Ucrânia e os bombardeamento de várias cidades aumentaram o risco de derrame de patógenicos, caso alguma instalação de saúde pública seja danificada. “Como parte deste trabalho, a OMS recomendou fortemente ao Ministério da Saúde da Ucrânia e a outros órgãos ​​para que sejam destruídos todos os agentes patógenicos de alto risco para evitar possíveis derramamentos", afirmou fonte da OMS à Reuters, no dia 11.

A ONU também já veio assegurar que não tem quaisquer provas da existência de programas ilegais, e Washington acusou Moscovo de "espalhar intencionalmente" teorias da conspiração e mentiras. "Essa desinformação russa é um absurdo total e não é a primeira vez que a Rússia inventa tais falsas alegações contra outro país. Além disso, essas alegações foram desmascaradas de forma conclusiva e repetida ao longo de muitos anos", indicou o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Ned Price, em comunicado.

Segundo Price, em causa está a tentativa da Rússia de justificar as "suas próprias ações horríveis na Ucrânia" através da invenção de falsos pretextos. "Os EUA não possuem ou operam nenhum laboratório químico ou biológico na Ucrânia, estão em total conformidade com suas obrigações sob a Convenção de Armas Químicas e a Convenção de Armas Biológicas, e não desenvolvem ou possuem tais armas em nenhum lugar (...) A Rússia tem um histórico de acusar o Ocidente dos mesmos crimes que a própria Rússia comete", frisa o comunicado.

Pretexto para ataques químicos russos

Washington salientou ainda que é a Rússia que tem programas ativos de armas químicas e biológicas e viola a Convenção sobre Armas Químicas e Armas Biológicas. Os Estados Unidos acreditam ainda que esses tipos de alegações por parte da Rússia se prolonguem no tempo, considerando tratar-se de uma "manobra óbvia da Rússia para tentar justificar mais ataques premeditados, não provocados e injustificados" à Ucrânia.

Nesse sentido, a porta-voz da Casa Branca alertou que a Rússia pode estar a preparar-se para “usar armas químicas ou biológicas na Ucrânia”, depois das acusações de Moscovo. Jen Psaki classificou as alegações russas como “absurdas” e observou que funcionários do governo chinês também ecoaram as “teorias da conspiração” da Rússia. “Agora que a Rússia fez essas falsas alegações, e a China aparentemente defendeu essa propaganda, todos nós devemos estar atentos a que Rússia possivelmente use armas químicas ou biológicas na Ucrânia ou crie uma operação de bandeira falsa para utilizá-las. É um padrão claro”, frisou.

O presidente ucraniano rejeitou as acusações russas de que a Ucrânia possui armas químicas "ou outras armas de destruição maciça", alegações que afirmou serem parte da propaganda russa para justificar a invasão. Volodymyr Zelensky disse que "não foram desenvolvidas armas químicas ou outras armas de destruição maciça na Ucrânia". E "todos sabem disso", sublinhou.

Zelensky ameaçou a Rússia de que, se fizer alguma coisa contra os ucranianos, "receberá a resposta de sanções mais duras", num discurso na plataforma de mensagens Telegram, no início do 16.º dia da invasão russa."Os nossos laboratórios, que vêm principalmente da era da União Soviética, estão envolvidos em tarefas comuns, não têm tecnologia militar", acrescentou.

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