"Não é fácil desligar". O relato de uma enfermeira portuguesa que esteve na Ucrânia e na Polónia

9 abr 2022, 18:00
Ana Teresa Afonso em Medika (Foto: DR)

Ana Teresa Afonso é enfermeira há praticamente 15 anos e grande parte do seu percurso foi feito fora de Portugal. Esteve em vários cenários de pós-conflito, mas os 10 dias em que esteve na Ucrânia e na Polónia foram diferentes

Já passou um mês e meio desde que a guerra na Ucrânia começou. Este é o tempo de quem assiste a este flagelo do lado de fora. Para quem lá esteve, o tempo é contado de forma diferente. Uma semana pareceu um mês e foi isso que sentiu Ana Teresa Afonso, enfermeira portuguesa, especializada em emergência, cuidados críticos e pediatria, que esteve na Polónia e na Ucrânia. "A intensidade das situações é de tal forma grande e a rapidez com que os eventos acontecem é de tal forma rápida… Eu estive 10 dias e sinto que estive um mês ou mais", conta em entrevista exclusiva à CNN Portugal.

Regressou a Portugal no dia 16 de março, mas a cabeça e os pensamentos ficaram lá. "Fica a incerteza, a insatisfação, a preocupação com a capacidade que estas pessoas têm ou não de conseguir aguentar estas situações. Fica a preocupação do atual conflito e possível acordo de paz e também sobre se os sistemas de saúde vão conseguir dar resposta e absorver as vítimas que já são muitas. De que forma é que o país se vai reerguer?", questiona.

Ana trabalha como enfermeira há praticamente 15 anos e grande parte do percurso profissional foi feito fora de Portugal em posições de coordenação e gestão clínica. Esteve presente na crise de refugiados do Bangladesh, no Sudão do Sul, em Laos e no Médio Oriente. Mas a ida à Ucrânia foi diferente.

"É um contexto em termos de conflito que é difícil de gerir diariamente, a situação muda muito rapidamente e, para mim, comparativamente com as minhas experiências anteriores, foi complicado. Os outros conflitos onde estive eram prolongados no tempo e tínhamos muito mais informação", explica.

No aeroporto de Lisboa a caminho da Ucrânia (Foto: DR)

Apesar de já ter estado em cenários de conflito, não deixou de sentir medo e considera que "é bom" tê-lo presente e respeitá-lo. "Tive algum receio, pensei várias vezes, particularmente porque é uma situação de conflito ativo. É um contexto que nós não sabemos como vai evoluir." Ainda assim, o apoio aos sistemas de saúde e os cuidados prestados, confessa, "colmatam o medo". Para além disso, existe a ansiedade e o stress que têm de ser geridos a três dimensões. Ana conta que sempre que vai para fora em trabalho "isso tem de ser bem explicado para quem fica à distância", nomeadamente a família. "É pensar no que é que se diz e não se diz. O que é que eu posso dizer por telefone que não vai criar mais ansiedade? É um cuidar de nós, de quem fica e de quem lá está [na Ucrânia ou na Polónia]."

Os centros de deslocados internos e os hospitais

Depois é preciso gerir aquilo que se vê, ouve e vivencia em locais de guerra. Esta enfermeira portuguesa trabalha para uma organização não-governamental no Reino Unido, a UK-Med, e quando viajou para a Ucrânia e para a Polónia tinha como principal função avaliar as necessidades de saúde do ponto de vista médico e cirúrgico, para que depois esta mesma organização enviasse equipas médicas especializadas. Em contexto de guerra são avaliadas duas realidades diferentes: a dos centros de deslocados internos e as dos hospitais. Ana esteve em ambas. A principal dificuldade destas unidades hospitalares é a obtenção de equipamentos cirúrgicos portáteis que pudessem ser transportados para as linhas da frente, porque é lá que as vítimas são recebidas e estabilizadas antes de serem transportadas para uma enfermaria. Ana esteve nos hospitais de Lviv e Vinnytsia que definiu como "centros de trauma muito grande". A realidade dos centros de deslocados internos é outra. Aqui, "a necessidade tem mais a ver com doenças crónicas, de medicação para diabetes e hipertensão".

Uma das coisas que Ana reparou é que o pico de deslocados internos aumenta e diminui consoante as negociações de paz entre a Ucrânia e a Rússia. Sempre que surgem notícias positivas, as pessoas tendem a ficar. "Estas vagas vão continuar e vão oscilando consoante o que vai acontecendo em termos de negociação política e em termos da própria capacidade de resposta do país", diz.

Em Lviv durante a avaliação de um hospital (Foto: DR)

A resiliência

A guerra na Ucrânia tem chocado o mundo pela violência dos crimes, pelas imagens, pelas atrocidades que são relatadas todos os dias. Uma guerra é sempre uma guerra. Mas não é só este retrato dramático que vai ficar na memória das pessoas e nos livros de História das próximas gerações. A resiliência do povo ucraniano também vai constar num destes capítulos. Nos pensamentos de Ana ficaram dois extremos relatos por colegas: uma senhora de 80 anos e um jovem de 16.

Esta idosa saiu sozinha de Dnipro para Drohovych, entre autocarros e comboios lotados. Atravessou o país e com ela tinha apenas uma mala. Para trás, ficou a casa e o marido que tinha morrido na sequência dos ataques russos. "Uma das coisas que ela tentou explicar, no seu inglês reduzido, é que tinha ficado com problemas de audição na sequência dos ataques naquela zona". O adolescente de 16 anos vivia em Kiev, viajou com a mãe e a avó até à cidade de Drohovych, mas não conseguia parar de pensar no pai: "tinha ficado na linha da frente de Kiev para combater".

"É difícil para as equipas conseguir dar apoio a este tipo de situações (…) A questão da resiliência é, para mim, e do ponto de vista da minha experiência de outros contextos, das coisas mais marcantes", aponta.

Medika, um dos pontos de entrada de refugiados na Polónia (Foto: DR)

Os planos pensados desde 2014

Além da resiliência, o mundo ficou surpreendido com a forma rápida, estruturada e organizada com que a Ucrânia reagiu a esta invasão. O país governado por Volodymyr Zelensky sempre viveu com a ameaça russa e desde a invasão da Crimeia que foi desenhando planos de contingência e emergência. "Há toda uma preparação que foi feita nos últimos oito anos para que os sistemas pudessem dar resposta a um eventual conflito. Toda essa arquitetura que se foi montando é muito visível no sistema ucraniano, a preparação de profissionais de saúde, dos equipamentos que solicitaram, das anteriores ligações internacionais em relação aos serviços de saúde".

Para um enfermeiro ou médico estrangeiro prestar cuidados nos hospitais ucranianos tem de haver uma negociação entre o Ministério da Saúde e os serviços locais para colmatar as reais necessidades médicas.

"A primeira linha de resposta é feita pelos próprios profissionais pela questão da língua. Nesse sentido, as equipas internacionais têm de conseguir trabalhar com os profissionais locais e conseguir entender também a cultura de saúde para poderem responder", explica Ana. Depois, é também preciso fazer-se toda uma gestão de recursos para que "não haja duplicação de esforços".

Apesar de estar agora em Portugal, Ana continua a ajudar a Ucrânia à distância. Senta-se à secretária, liga o portátil e tenta colocar os pés e a cabeça junto dos colegas que lá estão. É uma luta constante contra a impotência, até porque o número de mortos, feridos e refugiados continua a aumentar. Para quem vê à distância, por vezes, são só números. Mas para quem lá esteve, são pessoas, são sofrimentos reais, são traumas e, por isso, "não é fácil desligar".

Ana em Medika, um dos pontos de entrada de refugiados na Polónia (Foto: DR)

 

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