Karina com os balões entre a chuva: Ucrânia » Polónia » resto do mundo

Germano Oliveira , Enviado especial da CNN Portugal
22 mar 2022, 10:27
Estação de transportes de Cracóvia: março de 2022

Como uma estação de comboios e autocarros servida por um centro comercial se tornou um dos sítios mais contrastantes mas também mais delicados da crise de refugiados provocada pela guerra na Ucrânia: basta subir ou descer umas escadas. E foi assim que encontrámos Karina. A CNN Portugal em Cracóvia

Piso de cima: Starbucks, Bershka, Calvin Klein, Hugo Boss.

Piso de baixo: Natalia Romanova menciona a sua mercearia, apenas isso, "a mercearia", e depois esconde os olhos com as mãos, ouve-se os olhos dela a chover, às vezes o desespero cai pelos olhos, está a cair, Natalia esconde com as mãos a tempestade e fá-lo por vergonha, tem vergonha de si própria, Natalia não quer que Anastasia, a filha de 13 anos, veja o dilúvio, a filha está sentada junto a ela, a filha baixa a cabeça, a tradutora, que está de cócoras, levanta-se e abraça Natalia, chovem juntas.

Piso de cima: Intimissimi, Lacoste, Mango, Nespresso.

Piso de baixo: Oksana Titarenko menciona o marido e o irmão, evoca o nome deles, somente isso, dois nomes e Oksana chove, Oksana não faz como Natalia, não usa as mãos para fazer de chapéu-de-chuva dos olhos porque a mão direita de Oksana agarra a mão esquerda desde que começou a falar, agarra e aperta, aperta e contorce, contorce e espreme, as mãos são uma metáfora do diálogo em curso, Oksana não queria falar, a tradutora diz-lhe que há russos que dizem que tudo isto é mentira, que não há refugiados, que não há Oksanas, que é chuva encenada, e que por isso é preciso mostrar e contar a verdade, Oksana já quer falar mas fala como as mãos dela, é preciso espremer as palavras, são poucas e apertadas pela guerra, e a tradutora, que está de cócoras, está dessa maneira porque é preciso mostrar humildade pelas circunstâncias, a tradutora levanta-se e aperta as mãos de Nátalia, são agora quatro mãos contorcidas pela invasão de Putin, abraçam-se, enquanto isso Tymofii, 11 anos, o filho de Oksana, fica a olhar aquelas mãos e aquele abraço que são aguaceiros também.

Piso de cima: Massimo Dutti, Parfois, Tommy Hilfiger, Rolex.

Piso de baixo: Marina Seleznova menciona "os homens" e depois conta-os, "os dois homens", ela agora não os tem junto a ela, está sentada com oito menores, a irmã dela e outra criança estão no piso de cima à procura de calçado porque há crianças ali que têm o delas roto, é preciso ver o que há de barato para calçar e proteger os pés do frio de quem fez 1371 km de Kharkiv até este piso de baixo para a seguir fazer mais 1591 km até à Finlândia, a guerra está a matar e a expulsar, há expulsos neste piso, encenação é dizer que há encenações, Marina menciona "os homens" e depois conta-os, "os dois homens", chuva nos olhos dela, Marina tem Karina ao colo e por isso Karina, a bebé Karina, ouve e sente a chuva e junta-se àquela tristeza pluviosa, e então a tradutora, que está de cócoras, está sempre, a distância entre estar de cócoras e estar de rastos é tão curta, e então a tradutora levanta-se e sai.

Estação central de transportes de Cracóvia, Polónia, 24 de fevereiro / 22 de março de 2022: mais de dois milhões de refugiados ucranianos entraram em território polaco e por isso muitos deles passaram por um lugar, este, onde num mesmo edifício em que há comboios e autocarros que unem Cracóvia ao resto do planeta há um centro comercial que vende as marcas do capitalismo - nos pisos de cima percorre-se o sucesso da globalização e no piso de baixo o triunfo do transporte moderno, era assim até 24 de fevereiro, nada de anormal nisso, mas desde 24 de fevereiro, e até um dia que não se sabe qual, nos pisos de cima vai continuar a percorrer-se o sucesso da globalização mas nos piso de baixo o triunfo do transporte moderno está ao serviço do socorro das vítimas desta guerra: há muitas maneiras de se ser vítima e estas são as vítimas em fuga, mães que vieram com as suas crianças para salvaguardar que uma geração de ucranianos não desapareça sob os crimes de guerra russos, crianças que ninguém sabe agora se vão ser crianças sem pai, avó, tio, padrinho, primo, se vão ser crianças sem o país e a nacionalidade da sua glória ucraniana, e tudo isto ocorre numa estação de transportes onde basta subir um lanço de escadas e de repente a compra de um perfume ou de um iPhone azul parece um extraordinário ato de paz e basta descer aquele mesmo lanço e eis a explicação de como tudo se perde subitamente, 24 de fevereiro foi praticamente ontem e esta é já a maior crise de refugiados desde o início da Segunda Guerra Mundial, basta um lanço de escadas para vermos 1939-1945 ou sairmos dele, que acontecerá se as escadas levarem com um míssil de Putin?

Natalia Romanova, 40 anos, sabe o que acontece quando as casas levam com mísseis de Putin, ela é de Kiev, cidade cercada mas cidade não tomada mas ainda assim cidade onde o marido não quer que Natalia e a filha Anastasia estejam: ele fica, ele tem de ficar e quer ficar, mas enviou-as para a casa de uns amigos nos arredores, não resultou porque os bombardeamentos atingiram aquela zona também, por isso Natalia e Anastasia entraram num comboio até Lviv, a cidade que é ponto de chegada e de saída de milhares de refugiados, eram meio milhão por lá no sábado, Natalia e Anastasia chegaram rapidamente a Lviv mas não é fácil sair de Lviv, é tanta gente a querer sair e os comboios são escassos e estão lotados, há malas sem dono na estação, malas de refugiados que para caberem no comboio tiveram de deixar as suas casas-malas para trás, cada mala abandonada daquelas não é um crime de guerra para ser julgado em Haia mas é um crime contra a dignidade dos seus donos, são refugiados que vão chegar ao refúgio quase sem nada ou nada mesmo que lhes pertença, Natalia e Anastasia estiveram 10 horas para conseguirem sair de Lviv, vão para Olsztyn, na Polónia, o pai-marido está a lutar pelo que resta e que é tão pouco, "antes da guerra tínhamos um negócio em Kiev, uma mercearia, vivíamos bem", diz Natalia, "agora a loja está destruída, a minha mercearia...", chove, Oksana Titarenko, 31 anos, está sentada ali perto, "sou de Donetsk, quando a guerra começou passei dia em Kiev e depois em Khmelnitsk, mas como a zona deixou de ser segura", já nada é seguro mesmo, "como a zona deixou de ser segura viemos ontem num autocarro humanitário para a fronteira em Lviv, estivemos lá 16 horas", Tymofii, o filho, interrompe em inglês para dizer que tem 11 anos, a mãe sorri e retoma, "chegámos aqui a Cracóvia e vamos para a República Checa, onde temos um amigo em Praga, estamos à espera de um comboio que nos leve para lá, para que possamos ter algum apoio ou proteção durante este tempo, mas o meu marido, o meu irmão e a família do meu irmão continuam na Ucrânia, em Khmelnitsk", Oksana fala devagar, a voz treme tanto, é impossível não lhe olhar para as mãos enquanto elas se apertam, Oksana está a controlar-se como pode, a tradutora pede desculpa e Oksana prossegue, afinal se há quem diga que os refugiados são encenação aquelas mãos de Oksana devem estar a apertar os inventores das mentiras, ela prossegue mas só aguenta mais uma frase, "os meus pais continuam em Donetsk, não têm possibilidade de vir, têm problemas de mobilidade", chove, atrás de Oksana está uma família numerosa, são nove ali mas faltam mais dois, procuram calçado, "somos todos de Kharkiv", é das cidades-mártires desta guerra e  Marina Seleznova, 37 anos, uma das pessoas que tiveram de fugir para salvar as suas crianças, "de Kharkiv fomos para Lviv, de Lviv para Cracóvia, agora esperamos um comboio para Varsóvia e vamos ficar uns dias lá à espera até que voluntários da Finlândia nos venham buscar, umas das pessoas da nossa família tem familiares na Finlândia", Marina está acompanhada de oito menores, entre crianças e adolescentes - uns são filhos dela, outros da irmã e outros de uma tia -, Marina e a irmã são as únicas adultas nesta viagem, "os nossos maridos ficaram em Kharkiv para defenderem as nossas casas", os maridos podiam ter saído porque cada um deles tem mais de três filhos mas ficaram, "ficaram para defender as nossas casas dos soldados russos", que coragem, "os soldados russos estão a pilhar as casas, os russos estão a matar quem fica, mataram mulheres e crianças, matam e depois pilham", Marina passa as mãos pelos olhos, chovem, Marina tem Karina ao colo, uma criança não devia estar em 1945 mas no lanço de escadas de cima onde decorre o 2022 em paz, Karina fica como Marina, chovem juntas, a tradutora levanta-se, corre, desaparece, Marina diz "sorry", sorry porquê, Marina?, mas sorry porquê?, a tradutora reaparece, tem balões, os balões são enchidos, Karina pega nos balões, Karina sorri, Marina abraça Karina, a família quer tirar uma fotografia para ficar com a prova daquela breve felicidade, a tradutora pede a seguir para cada um escrever o seu nome, o apelido e a idade, "o jornalista precisa disso para vos apresentar", Kristina Bezgubenko, 16 anos, pega no telefone do jornalista e começa a escrever, Kristina devolve o telefone ao jornalista e está lá Angelina Seleznova 13, Marina Seleznova 37, Anastasia Riabka 11, Artem Riabka 14 e assim sucessivamente, e quando é a vez do nome de Karina está só "Little Karina with balloons", só isso mesmo, "a pequena Karina com os balões", eles não querem que ela seja apresentada com o nome e a idade, não querem que ela seja uma formalidade, ela é mais do que isso, aquele momento é maior que isso, ela vale mais do que um nome e uma idade, é um símbolo e o futuro, "a pequena Karina com os balões", chuva.

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