Cinco problemas na guerra da Rússia na Ucrânia (e o porquê de um súbito desânimo)

29 mai 2022, 19:01

De repente, deixámos de acreditar na Ucrânia e na sua capacidade de combater a invasão russa; com a queda do Donbass, acabou quase tudo; a rendição do batalhão de Azov (ou a parte dele que se refugiou na Azovstal) foi o início do fim; e, verdadeiramente, mesmo com o apoio de tantos países, a força da Rússia é demasiada; e quem tem razão é Kissinger.

Tudo o que acima foi referido é “verdadeiro”, pelo menos em parte; mas nada do que acima é referido justifica interpretações desses factos tão pessimistas e negativas. Estamos sujeitos a uma espécie de ciclotimia analítica, em que ontem estava tudo no papo e hoje tudo é uma desgraça. Penso, no entanto, que não se justificam tais excessos de humor. Mas não penso menos que cometemos alguns erros que agora estamos a pagar.

Há uma coisa que é verdadeira: este será um dos conflitos em que a comunicação e a propaganda têm sido mais avassaladoras, e um em que a parte mais fraca e agredida está, nesse campo, a ganhar por muito – e não vejo que possa perder. Ora, se ganhar na comunicação é sempre uma vantagem, e uma que não é de desprezar, pode ter alguns inconvenientes. Por exemplo, o de a comunicação ser tão boa que se transforma numa adição.

Esse será, talvez, o primeiro dos nossos problemas, um dos que perturba a nossa avaliação. Isso é tanto mais verdade quanto, muitas vezes, a eficiência da propaganda foi tal que enfeitiçou o comunicador. Vimos, várias vezes, ser afirmado que a Rússia já era; que Azovstal era inalcançável; que a Rússia estava num estertor e o seu armamento roçava o ridículo; que Putin ou estava para morrer, ou com problemas do foro psicológico, ou prestes a ser derrubado. Que o armamento das forças russas era obsoleto e estava a acabar, mais semana menos semana; que a falência da Rússia era um dado adquirido.

O próprio princípio das negociações, portanto, devia arredar-se (a certa altura, transmitiu-se com escusada sobranceria a ideia de que era a Rússia que quase implorava para se sentar à mesa com o adversário); e por aí adiante. Este processo comunicacional foi decisivo para manter o moral ucraniano e motivar a determinação robusta da comunidade internacional – e o mérito vai, quase todo, para o Presidente ucraniano. Porém, há um momento em que é preciso desmamar da pantalha, das redes, da frase impactante, e preparar o povo ucraniano para um tempo muito mais longo de sacrifícios e incerteza. A ideia de que qualquer conversa só poderá ser com Putin, de que, de todo o modo, o contacto servirá apenas para registar a rendição da Federação Russa, como disse há tempos o Presidente do Conselho de Segurança e Defesa ucraniano? Não me cabe fazer juízos fáceis, parecendo-me, porém, que nesta fase da travessia algum recato se justifica, nem que seja para que, quando a contraofensiva surgir, poder ser devidamente valorizada.

Temos, depois, um segundo problema.

Concentrámo-nos em excesso, legitimamente fascinados, a acompanhar o andamento da guerra, o teatro de operações tal como nos foi sendo mostrado – com a convicção crescente de que era coisa para pouco tempo, só vitórias. Com análises e comentários para todos os gostos (ainda bem), com gráficos soberbos, mapas interativos, flechas para cima e flechas para baixo, ficámos peritos em estratégia, discorremos quantos de nós sobre a resistência no Donbass, citando esta ou aquela localidade. A dado passo, aquilo era tão bonito que desligámos da realidade e passámos a ver um jogo virtual, muito digital, com os nossos heróis, os ucranianos, quase imortais, incansáveis e bravos; e o vilão menos forte do que se “dizia”, cansado, a falhar os seus objetivos e a comer rações fora de prazo. Desta forma, terão alguns pensado quando o mapa começou a ficar mais vermelho a leste, basta sair e “fazer” “new game”. Muitos terão tentado. Terá verificado, suponho, que o resultado não foi satisfatório.

Pior do que isso, qual é afinal o jogo que está a ser jogado? A Rússia “ganha” se ocupar o Donbass? Eufóricos e inebriados, cometemos um erro de palmatória. De facto, aceitámos a definição de vitória que o agressor desenhou quando percebeu que tinha falhado o essencial dos seus objetivos. Devíamos, isso sim, ter admitido que a Rússia até podia ocupar o Donbass, por ainda estar mais forte. Mas que este haveria de voltar para a soberania ucraniana, tão certo como o destino. Esta é, hoje, a mensagem oficial ucraniana. Mas, ainda há tempos, a batalha do Donbass tinha sido erigida à grande decisão do conflito, uma espécie de batalha final, de tira-teimas, e esta construção foi verbalizada por Kiev, não por Moscovo. Erro grave, agora trata-se de afinar o tiro, quer da comunicação, quer no plano militar (que tem outros “tempos”).

O terceiro problema com que nos deparamos é o do cansaço, de uma certa fadiga dos materiais.

Queremos tudo depressa e para ontem, não temos paciência, só aceitamos fins felizes. Afinal, era tudo fácil, a guerra em maio estaria terminada. A Ucrânia vai ganhar e entrar na mitologia guerreira, a Rússia vai perder, a Finlândia e a Suécia já deviam estar dentro da NATO, que maçada esta coisa da Turquia, e, afinal, como é que Kiev não tem garantida a entrada plena na União Europeia daqui a seis meses? A culpa só pode ser da Alemanha e da França. Além do mais, continuavam outros, quem está a pensar como deve ser sabe de ciência certa que, perante a Rússia, tem de ir-se sem limites e de peito feito. Afinal, ser a Rússia uma potência nuclear importa pouco porque é suficiente a dissuasão, o equilíbrio do terror. E quem disser o contrário é tíbio. Pois, não é.

O quarto problema é, afinal, um com que nos debatemos desde muito cedo no conflito e que vem na sequência do anterior.

Por muito que nos desagrade e nos impaciente, o prazo da nossa vitória é mais longínquo do que o tempo da incrustação das forças russas no terreno ucraniano – e, para os Estados Unidos, para a NATO e para a maioria da União Europeia, a “vitória” sobre a Federação Russa é, ainda por cima e para complicar, não a um, mas a dois tempos. Um, o primeiro, em que a Ucrânia sofrerá a destruição, a ocupação, a morte, as lágrimas, com a esperança de vir a renascer – como vai “renascer”. O outro, de banda muito mais larga, em que não só a Rússia não terá capacidade de reposição de capacidades para conseguir manter a ocupação como, além disso, ficará demasiado desgastada para conseguir pensar em agredir quem quer que seja – aquilo que o Secretário da Defesa Austin disse preto no branco quando viajou até à Ucrânia.

Custa a todos ou a quase todos ver aquele que parece ser um avanço inexorável da Rússia: mas o conflito está ainda agora a chegar aos cem dias! Ora, para que os astros se alinhem, para que – de forma objetiva – consigamos dizer “a Ucrânia, enfim, foi libertada” e “a Rússia, até que enfim, perdeu de vez”, poderemos ter que esperar até ao fim do ano (como diz agora a Ucrânia) ou, muito provavelmente, muito mais meses do que isso.

Talvez seja o quinto problema aquele que mais nos deveria fazer refletir, porque ainda não se exprimiu no terreno. A Ucrânia já não está (de vez) perante um desafio de sobrevivência como Estado independente. A Rússia não tem, nem vai ter, meios, capacidade e competência para se apropriar daquela que um dia teve o seu nome, acompanhado do “pequena”. No entanto, não se desvalorize: a Ucrânia tem em risco a sua integridade territorial, pela destruição e ocupação “colonial” do Sul e do Donbass, ancorada em alegadas repúblicas e outras invenções secessionistas.

A reversão deste estado de coisas não está ao alcance da Ucrânia (só por si), pela desproporção de meios evidente e por muito brava que seja a resiliência perante o agressor. Só será possível – mas não o sabíamos desde o início? – se os aliados da Ucrânia, à cabeça dos quais os Estados Unidos, mantiverem inalterado, ou até reforçarem, o fluxo do auxílio militar ao agredido, para poder fazer frente ao agressor, por si e por nós. Só será possível, também, se o barco mantiver o rumo. Já estaremos cansados de tantos “game changers” em três meses e tal, mas é verdade que a Ucrânia vai necessitar que eles cheguem sempre, aconteça o que acontecer. Talvez tenhamos querido “castigar” em demasia a Rússia. E talvez (insisto no talvez) tenhamos menosprezado que, a cada pacote, estávamos a colocar mais tensão nos nossos consensos, deixando que o adversário explorasse cada divisão, cada sinal de pequena fratura.

Somos, quase todos, democracias. Quando as sondagens mais recentes nos Estados Unidos mostram que uma maioria significativa dos americanos discorda da forma como o Presidente Biden está a gerir esta crise, o sinal é preocupante para todos. Claro, são sondagens. Mas as sondagens numa democracia traduzem sinais de alerta, num regime autoritário são irrelevantes, até porque nesse caso, se forem más, o “erro” é logo corrigido. As próximas eleições intercalares nos Estados Unidos? Importantes para a Ucrânia, claro, tanto como para os americanos.

E quanto às consequências económicas da guerra, por muito que se saiba que a responsabilidade é da Rússia? Pesam nas opiniões públicas, como é natural. Esse é o maior risco para a Ucrânia: é preciso, com efeito, e para que tudo isto termine bem, que quem apoia o agredido não hesite demasiado devido aos impactos internos desta ou outra decisão; mas não é menos preciso que a Ucrânia interiorize que isso vai acontecer, espera-se que pouco.

Também por isso, doeu a Zelensky ouvir o que Kissinger foi dizer a Davos. São quase cem anos, mas cada palavra daquele homem pesa mais do que um paralelepípedo de granito. Contudo, diminuir Kissinger como velho caduco e colocá-lo em 1938 (para uma enésima comparação com Chamberlain, que passou a ser pau para toda a obra) foi uma estratégia mal pensada. Também terá doído que Macron e Scholtz, aliás em coerência com o que sempre têm defendido, estivessem hora e meia à conversa com Vladimir Putin, a defenderem um regresso à paz que continuam a considerar possível. Mas, é assim mesmo.

O unanimismo não existe, ainda bem. Francamente, não creio que se justifique tanto desânimo e tanta súbita descrença. Ainda se verifica um consenso muito forte sobre duas ideias que, aliás, não se confundem: a Rússia não pode vencer (mas pode não perder), a Ucrânia não pode perder (mas pode não ganhar).

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