A violação da Ucrânia

15 abr 2022, 17:12

Introdução

Não é um relato, são muitos. Relatos, testemunhos de violações de mulheres, raparigas, idosas e rapazes cometidos pelas forças russas desde o início da invasão. São crimes de guerra, pode tratar-se de crimes contra a Humanidade ou, em casos circunstanciados, de atos genocidas.

É uma frase feita e, talvez por isso, bastante irritante: numa guerra, acontecem sempre as situações de violação e de agressão sexual, da mesma maneira que não se conseguem travar outros crimes como a tortura, a escravatura ou a brutalidade em geral. Não há como contestar a verificação, a não ser pelo seu lado fatalista e passivo. Não poucas vezes, parece (parece é simpatia) um ligeiro encolher de ombros, como se estas coisas fossem um facto da vida: “olha, para amanhã dão bom tempo”; ou “hoje está de ananases”. Não é um “facto” da vida, pelo menos no sentido quase complacente que transparece da expressão. E até poderá continuar a suceder em qualquer conflito, mas sempre ficaremos constituídos no dever de tratar estas situações como crimes muito graves e no não menos importante dever de responsabilizar os violadores.

A proibição do direito

O direito é inequívoco quanto a este assunto, tanto no campo do direito internacional humanitário (IV.ª Convenção de Genebra, relativa à proteção dos civis, art. 27) como no do direito internacional criminal (Estatuto do Tribunal Penal Internacional, arts. 7 e 8). Nem que não houvesse texto, porém, sempre se trataria de normas imperativas de direito internacional geral.

No Estatuto do TPI, é feita referência, no art. 7, n.º 1, al. g), a “violação, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez à força, esterilização à força ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável” (como crime contra a Humanidade) e, no artigo que se refere aos crimes de guerra, a referência que nos importa surge, mais ou menos exilada no art. 8, n.º 2, b), xxii.

É capaz de já ser mania da perseguição ou teoria da conspiração, e teria de ler mais sobre o assunto para fundamentar melhor a minha convicção. Mas, de alguma maneira, é impossível não admitir (pelo menos, admitir) que a colocação na lista dos crimes de guerra reflete a relevância, a “prioridade” que se lhes atribui. Ora, na mesma alínea b), mas em ii (não em xxii!) aparece-nos “atacar intencionalmente bens civis, ou seja, bens que não sejam objetivos militares”. E, além disso, na alínea a) do preceito se enuncie aqueles que se consideram – por isso se destacam – os crimes de guerra mais importantes.

Também se justifica um olhar mais atento para a Convenção de Genebra atrás referida. No art. 27, 2.º par., a forma como se protege a mulher toma como ponto de partida a sua “honra”, só depois chega à violação enquanto crime: “As mulheres serão especialmente protegidas contra qualquer ataque à sua honra, e particularmente contra violação, prostituição forçada ou qualquer forma de atentado ao seu pudor”. A violação, portanto, integra os ataques à honra da mulher, é de alguma forma referida em segundo plano. Estávamos em 1949, talvez isto explique aquilo.

A violação como expressão de um domínio absoluto

Desde tempos imemoriais, o “uso” das mulheres é algo que até a lenda e a mitologia nos contam. É ver-se Leda e o cisne (que Paul Cézanne pintou) ou a história do rapto da “nossa” Europa por um touro, ser poderoso que afinal era Júpiter (o cisne também, já agora).

Nas lendas, o rapto das Sabinas pelos Romanos, que assim se apropriaram, pela força, das mulheres de que precisavam para crescerem como povo é um dos exemplos mais conhecidos. Sempre me fez um pouco de confusão que o episódio fosse apresentado de forma neutra. Os homens romanos precisavam de mulheres, foram buscá-las, jovens e bonitas, a quem as tinha. Mereceram-nas, foram mais fortes.

Se sairmos das lendas e da mitologia, voltamos a uma realidade mais cruenta. A mulher é uma das vítimas mais óbvias, mais até do que pelo “prazer” que pode dar, pela glória, pelo poder, pelo domínio que representa a sua violação. Esta representação de poder bárbaro, selvático e sem limites está também associada ao prémio, a uma forma de “pagamento”, a um “despojo” ao dispor do guerreiro vencedor.

Era assim: durante dias, quem ganhava tinha direito ao saque: e as mulheres eram parte dele.

A violação, por isso, é não só um crime dos mais brutais e repugnantes: pode ser, e muitas vezes é, a forma de maior humilhação que se pode impor a uma comunidade (sendo a mulher simples instrumento, desvalorizado). Os vencedores têm domínio absoluto sobre os vencidos, as mulheres dos outros são suas e, através da sua “posse” irrestrita, desalma-se o adversário.

Outros conflitos, as mesmas práticas

É tremendo como, no essencial, todas estas “características” foram descritas, mais coisa menos coisa, a propósito de outros conflitos – com tantos aspetos similares que se trata de um “padrão”, de algo “comum”, não de uma exceção. A violação em massa, a violação de grupo, a violação em público ou de forma semipública, a violação da mulher ao lado do marido, ao lado do cadáver do marido, mas com os filhos presentes, a violação reiterada, constante e sistemática até que a mulher engravide, a violação de meninas ou de velhas. Não é algo que por vergonha do crime, se queira esconder. É algo que quer sabido, esta é a proclamação da vitória e o terror que se espalha e quebra a resistência. Durante o conflito no Paquistão Oriental que veio a redundar na independência do Bangladesh, as forças paquistanesas violaram centenas de milhar de mulheres. Antes, no episódio que ficou conhecido como da “violação de Nanquim”, as forças imperiais japonesas, em menos de dois meses (entre dezembro de 1937 e janeiro de 1938), executaram mais de 150.000 homens e violaram dezenas de milhar de mulheres. Também do período imperial japonês, já muitos terão ouvido pelo menos falar das chamadas “mulheres de conforto”.

Agora, um pequeno pormenor. O general Matsui Iwane deu a ordem de destruição de Nanquim e das suas gentes. E Tani Hisao general era, tendo participado diretamente em execuções e violações. Ambos foram julgados e condenados à morte pelo Tribunal Internacional Militar do Extremo Oriente, logo a seguir ao fim da Segunda Guerra. Ambos foram executados.

Em 1978, a memória de Matsui Iwanwe e dos outros seis criminosos de guerra japoneses condenados à morte e executados por decisão do Tribunal Internacional Militar foi consagrada numa cerimónia religiosa no santuário Yasukuni, em Tóquio. Ainda hoje, altos responsáveis japoneses visitam respeitosamente o santuário. Ainda hoje, muitos países (China, Coreia, entre outros) protestam de cada vez que isso acontece. Ainda hoje, o santuário em causa é visitado, anualmente, por mais de 8 milhões.

A violação das mulheres alemãs pelo Exército Vermelho em 1945

Veio a Segunda Guerra Mundial, e não houve forças a quem não tenham sido atribuídos casos de violação. Destacam-se, porém, dois casos marcantes: a violação e assassinato em massa de mulheres pelas forças nazis durante a invasão da URSS. E, na volta, ainda em dimensão e gravidade superiores, a violação sistemática de mulheres alemãs quando o regime nazi colapsou, às mãos das forças soviéticas. Certamente, este é um dos episódios mais miseráveis do conflito.

Há mesmo quem considere que a violação sistemática das mulheres alemãs durante este período foi o caso mais grave que a História registou, falando alguns de 2 milhões de casos. Foi, aliás, algo que começou na Prússia oriental, que teve o seu expoente mais dramático durante a conquista de Berlim (130.000 violações) e continuou, depois, pelo menos até 1948 – até que, finalmente, as forças soviéticas foram separadas da população civil. Em consequência direta ou indireta (por exemplo, pela propagação de doenças) desta selvajaria, calcula-se que tenham morrido, aproximadamente, 200.000 mulheres e raparigas alemãs. Delas se falou pouquíssimo, até recentemente.

Talvez melhor: delas praticamente se evitou falar até entrarmos neste século, quando Antony Beevor escreveu uma obra fundamental sobre a queda de Berlim, em 1945. Ali, por exemplo, descreve como, só em Berlim, podem ter-se suicidado 10.000 mulheres, ou porque sim, ou porque a tal eram induzidas por familiares, para dessa forma lavarem a “vergonha” que continham só por ainda existirem e estarem vivas.

No que mais interessa, pelo paralelismo sombrio com o presente, a União Soviética sempre recusou admitir o que quer que fosse, embora haja elementos mais do que suficientes (incluindo vários relatórios elaborados pelo NKVD sobre esta questão) que permitem concluir que Estaline estava, sem dúvida, ao corrente. O tempo pode passar, mas o germe da violência e do encobrimento vai sobrevivendo: ainda em 2015, várias instituições de ensino russas proibiram, pura e simplesmente, a leitura de Beevor. Não podia ser, o Exército Vermelho não podia ter mácula. Sem querer fazer analogias demasiado fáceis, é impossível não pensar no modelo de resposta da Rússia sobre as acusações relativas à prática de crimes de guerra e de crimes contra a Humanidade na guerra na Ucrânia: são provocações.

A guerra na ex-Jugoslávia

Já mais perto do fim do século passado, nas guerras na ex-Jugoslávia, confirmou-se, se necessário fosse, como a mulher é um dos alvos mais frequentes num conflito. Desta feita, os factos reportam-se, principalmente, à Bósnia-Herzegóvina, quando as forças bósnias-sérvias (associadas à República Sprska ou a forças paramilitares) foram responsáveis pela violação sistemática de mulheres e raparigas bósnias muçulmanas, em número difícil de determinar, mas que a União Europeia calcula andar em torno das 20.000. É bom, no entanto, que se deixe claro que também muitas mulheres sérvias foram violadas por croatas e bósnios muçulmanos, de forma menos sistemática – e menos conhecida porque, mais uma vez, “ai dos vencidos”!

De forma ainda mais nítida e “profissional”, a violação foi uma arma de guerra e, pelo menos, terá de se qualificar como crime contra a Humanidade. Pelo menos, porque em poucos casos se disporá de tantos elementos que nos permitam falar em atos genocidas.

Primeiro, porque se tratou de uma ação planeada, com a detenção de inúmeras mulheres naqueles que ficaram conhecidos como campos de violação. Depois, porque cada mulher foi em regra violada por um grande número de homens, para desumanizar e humilhar o mais possível aquele “objeto”. Em terceiro lugar, porque a conspurcação (a “desonra”) se tinha como mais ostensiva, uma vez que a religião desempenhou um papel muito concreto na prática em massa destes comportamentos e, até, na sua “publicitação”. Finalmente, porque, em muitas situações, as mulheres só eram libertadas quando engravidassem ou, pior ainda, quando não fosse possível (ou fosse pelo menos muito mais difícil) a interrupção da gravidez.

A “eliminação” individual e social das mulheres violadas

Quer dizer, além da gravidade da violação de direitos humanos, difícil de qualificar, as mulheres eram “eliminadas” como mulheres muçulmanas, porque tinham sido possuídas e destruídas por homens de outra religião ou credo. Assim, essas mulheres sentiam na carne a impossibilidade de voltarem a ser “mulheres”, eram obrigadas a conhecer o fruto da violação e, ou isso lhes era insuportável (houve muitos casos de suicídio) ou era insuportável para os elementos das respetivas comunidades, para os seus familiares, pais ou maridos. Não foram poucos os casos em que as mulheres, por terem sido brutalizadas, “desonravam” os seus, e casos houve em que as próprias famílias as mataram – como se, dessa forma, restabelecessem a desgraçada da sua honra.

Mas, quando não as matavam, ainda assim as mulheres e rapariga violadas transformavam-se em intocáveis. Nessa medida, embora vivessem, tinham sido mortas como mulheres e como mulheres muçulmanas. Este aspeto é de destacar de uma forma especial.

Com efeito, por vezes, mais do que falar-se na violação (porque se evita enfrentar o assunto), fala-se, muito mais, na desonra da mulher ou, de uma forma não assumida, mas latente, na desonra do grupo a que pertence. Ou seja, através da desonra da mulher, da menina ou da velha que foram violadas e brutalizadas, ressalta, em última análise, a desonra do homem, do marido, do filho, do irmão, vencidos e impotentes porque, como seres masculinos e viris, não conseguiram proteger a fêmea, falharam nesse seu dever. Ela, portanto, expõe a sua impotência ao ser violada. Ela, violada, acaba por ser o motivo da vergonha e sofrimento do homem. Por conseguinte, transporta em si a culpa de não ter conseguido resistir, de não ter morrido. Seria bom que, perante as notícias que nos chegam da Ucrânia, se voltasse, como num carrossel, a passar sempre pelos mesmos sítios e pelos mesmos processos que conhecemos, infelizmente, de muitos casos anteriores.

Os tribunais internacionais

Também no Ruanda e durante a sangrenta guerra na RDC a violação em massa, sistemática, foi usada como forma de atacar e destruir o grupo objeto de ataque. No genocídio do Ruanda, e a propósito destes casos de violação, pela primeira vez estes comportamentos foram tidos por um tribunal internacional como integrantes daquele crime, no caso Akayesu, de 1998, julgado pelo Tribunal para o Ruanda. Como parênteses, e perante a facilidade com que se fala a propósito ou com menos propósito do crime de genocídio, este foi o primeiro caso em que se verificou uma condenação pela prática do crime de genocídio – já quase encostados ao século XXI. tendo esta posição sido reforçada logo a seguir, no caso Pauline Nyriamasuhuko. Este último caso é, aliás, especialmente importante. Tratava-se de uma mulher, que ocupava uma posição importante no aparelho do poder ruandês e, quando foi caso disso, no aparelho do genocídio. Foi a única mulher acusada, e condenada, pela prática do crime de genocídio. E foi a única mulher acusada e condenada pelo crime de violação como crime contra a Humanidade. Porquê? Porque, independentemente do género, incitava diretamente os participantes no genocídio a violarem as mulheres, mesmo que depois as matassem. Neste tempo Pascal, não vou contar mais, a repelência é demasiada. Por uma ironia macabra, Pauline Nyriamasuhuko era, à data dos factos, Ministra do Bem-Estar da Família e do Desenvolvimento da Mulher. Um estafermo.

As coisas estão, no entanto, a mudar. Em mais de um terço das condenações proferidas pelo Tribunal Internacional Penal para a ex-Jugoslávia, estava também em causa uma qualquer forma de violência sexual. Como informa aquela jurisdição, mais de setenta indivíduos foram acusados da prática destes crimes. E quase trinta foram condenados. E o mesmo Tribunal foi também o primeiro a proferir condenações da violação como tortura e da escravidão sexual como crime contra a Humanidade. Em vários casos fundamentais, a violência sexual assumiu um papel protagonista. Aliás, pela primeira vez, um indivíduo foi condenado, exclusivamente, por esse motivo. Anto Furundžija, um croata, líder dos Jokers, unidade especial do Conselho Croata de Defesa na Bósnia, teve esse tristíssimo privilégio. Depois, no caso Kunarac e outros, o Tribunal para a ex-Jugoslávia decidiu num caso que qualificou como escravidão sexual, tendo condenado os acusados, sérvios, a penas pesadas pela prática de um crime contra a Humanidade.

A história continua. As mulheres yazidis e rohingya

Não deverá supor-se que as coisas estão melhor. Melhor, ou “menos tão mal”, talvez a consciência progressiva da gravidade destes comportamentos; talvez, a consolidação jurídica definitiva de um crime tão grave; talvez, a perceção de que o resultado não será sempre a impunidade ou o silêncio.

Porém, ainda são muito mais os casos repetidos do que aqueles que se impedem ou evitam.

Em 2015, durante a cavalgada que lançaram no Iraque a partir da Síria, as forças do Daesh tomaram como alvo privilegiado da sua sanha a minoria cristã Yazidi. Praticamente, destruíram a sua presença milenar no território de Sinjar, na Alta Mesopotâmia. Muito em especial, durante este genocídio, adotaram a estratégia do rapto e da violação sistemática das mulheres e crianças daquele grupo, para depois decidirem, às vezes por sorteio, o seu destino. São inúmeros os casos de violação de mulheres e crianças, de escravidão sexual, de compra e venda sucessiva de mulheres yazidis. Bom, factos banais, não é? Neste caso, com requintes de malvadez.

Houve muitos casos de comunidades com quem os yazidis conviveram durante tempos imemoriais que, para sobreviverem, denunciaram os esconderijos onde aqueles se refugiavam, assim quebrando, para sempre, a possibilidade de as vítimas poderem olhar, sem nojo, para outras comunidades. Há, calcula-se, vários milhares de crianças retidas por membros do Daesh, ainda hoje. Há muitos casos de mulheres yazidis rejeitadas pela sua comunidade depois de raptadas e escravizadas. Muitos, de mulheres que escolheram suicidar-se. Há, infelizmente, muitas crianças que nasceram de violações, que, por isso, ninguém quer. Não as querem os violadores, não as querem as mães, que só o foram por terem sido brutalizadas.

A mesma estratégia foi seguida em Myanmar, relativamente a outra minoria, dos Rohingya– uma minoria étnica muçulmana numa Myanmar essencialmente budista. Os Rohingya estão instalados naquele País há muitos anos. Porém, a partir de 1982, não lhes foi mais reconhecida o direito a serem nacionais, e viram-se de repente transformados no maior grupo apátrida do mundo. Foram, em virtude da perseguição, escorraçados. Mas, nada como a partir de 2017, quando a escala de massacres, violações e destruição atingiu um novo pico. Mais de 700.000 tiveram de procurar refúgio no Bangladesh, mais de metade deles são crianças. E, claro, as mulheres foram um alvo privilegiado da violência. Hoje, quase um milhão de Rohingya teve de procurar refúgio noutros Países, quase 900.000 estão concentradas em campos de refugiados no Bangladesh, alguns dos maiores do mundo. As Nações Unidas documentaram, numa investigação profunda, os incontáveis casos de violação e brutalidades de todo o género a que foram submetidas as mulheres rohingya. Genocídio? Sim, pode ser genocídio. Por isso, muitos aguardam com grande expectativa a decisão do Tribunal Internacional de Justiça no caso apresentado pela Gâmbia contra Myanmar, onde aquele Estado imputa (e não vejo como possa haver dúvidas) estes comportamentos a Myanmar e pede ao Tribunal que o responsabilize com a dureza necessária – justamente, por violação da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio.

Um dos momentos mais tristes terá sido aquele em que, em defesa de Myanmar, interveio perante os Juízes, naquela sala de audiências tão bonita do Tribunal, no Palácio da Paz, a então líder do País, Aung San Suu Kyi. A mesma que ali defendia que o seu País não era culpado (de algo que já estava documentado de forma esmagadora) era a que, com rara coragem, tinha enfrentado durante tantos anos a ditadura militar e merecido em 1991 o Prémio Nobel da Paz.

Hoje, não se falou talvez o suficiente da Ucrânia

A História fala-nos para sempre da violação de Nanquim, ou da violação de Berlim, de tal forma foi espantoso o número de casos de violação de mulheres. Na Ucrânia, talvez seja um pouco cedo para alcançar o que temos perante nós no que se refere à dimensão e caráter sistemático dos casos de violação e outros crimes sexuais.

Já é certo, no entanto, que os casos em que as mulheres brutalizadas falaram, e já são bastantes, contam uma história que parece a mesma que é contada desde há séculos, desde sempre.

Dos conflitos que tenho presentes, talvez seja este aquele em que a denúncia tem surgido de forma mais célere, e aquele em que, de forma organizada (devido, também, à ação mais do que meritória de várias ONG), se se tem procurado ter pronto e documentado o registo, para que o futuro não seja feito de “não sei” ou “talvez”. Deve ser verdade o que diz Christina Lamb num livro recente e importante sobre a violação como prática de guerra: as cabeças estão a mudar, o crime vergonhoso de que não se falava para não ferir ainda mais as vítimas é um crime que, com mais frequência, é exposto, assim como expostos são os violadores. Recorda ela, com razão, que em 2018 alguma coisa mudou quando o Nobel da Paz foi atribuído a Nadia Murad, membro da comunidade Yazidi e sujeita a escravidão sexual pelo Daesh, e a Denis Mukwege, cirurgião congolês que dedicou a sua vida e talento a tratar (e, quantas vezes, a salvar das feridas físicas e da alma) vítimas da violência sexual na República Democrática do Congo, que a certa altura tinha o sinistro título de capital mundial da violação.

O título do livro de Christina Lamb fala das mulheres e, muito melhor do que qualquer conclusão, diz tudo aquilo que é e tudo aquilo que falta fazer: “Os nossos corpos, campo de batalha deles”.

De Christina Lamb, “Our Bodies, Their Battlefield: What War Does to Women”, William Collins, 2021

De Antony Beevor, “The Fall of Berlin 1945”, Penguin Books, reedição, 2003

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